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CAPÍTULO 4 – A EDUCAÇÃO POPULAR E O AGIR CRÍTICO EM NUTRIÇÃO: FUNDAMENTOS E ANTECEDENTES

4.1. Educação Popular

Num mundo no qual parecem impor-se por um lado as perspectivas do pensamento neoliberal e, por outro, a fragmentação e o ceticismo da pós- modernidade, emergem novas potencialidades políticas e educacionais capazes de abrir o continente no conhecimento, na política e na cultura a partir da recolocação destas questões de maneira crítica. Conformam-se perspectivas teóricas com o ressurgimento das lutas dos povos historicamente excluídos, como os povos negros e indígenas na América Latina. É nestes termos que se construiu, e permanece viva nos dias de hoje, a Educação Popular como possibilidade de um diálogo feito a partir das regiões excluídas, subordinadas pelos conhecimentos dominantes (LANDER, 2006).

A busca de alternativas à conformação profundamente excludente e desigual do mundo moderno exige um esforço de desconstrução do caráter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer o questionamento das pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalização e legitimação dessa ordem social (LANDER, 2000).

Construída ao longo do Século XIX, a obra de Karl Marx e Friedrich Engels configurou-se, a partir do final deste mesmo século e marcadamente em todo o Século XX, num robusto legado epistemológico. Tal obra vem, desde então, conferindo importantes bases filosóficas e teóricas para se pensar a produção do conhecimento numa perspectiva dialética que tem como ponto de partida, necessariamente, o mundo concreto e suas contradições.

Compreende-se o homem como um ser social e sujeito da história, que está em movimento (ou vir a ser) e que, por meio do trabalho, produz condições objetivas para sobreviver e, nesse processo, produz conhecimentos. Agrega-se, então, à dimensão da práxis - uma atividade teórico-prática cuja teoria se modifica, constantemente, com a experiência prática e com a realidade mesma, que se modificam constantemente com a teoria. A práxis é entendida como a atividade que transforma as circunstâncias, que nos determinam a formar ideias, desejos, vontades, teorias, que, por sua vez, simultaneamente, impõe-nos a criar, na prática, novas circunstâncias, e assim por diante, de modo que nem a teoria se cristaliza como um dogma, nem a prática se cristaliza como uma alienação.

Tais fundamentos, aqui muito brevemente explicitados, foram delineados por Marx e Engels a partir de estudos nos quais se destacou a dimensão econômica e a análise de sua relação dialética com os modos de produzir conhecimento e organizar as sociedades ao longo dos tempos. Contudo, o legado de Marx e Engels não se restringiu a uma análise exclusivista do ponto de vista econômico, mas tendo a economia pensada como uma instituição composta de sistemas de produção, poder e significação. Formas culturais através das quais os seres humanos são transformados em sujeitos produtivos.

A economia não é apenas, nem sequer principalmente, uma entidade material. É, antes de mais nada, uma produção cultural, uma forma de produzir sujeitos humanos e ordens sociais de um determinado tipo (ESCOBAR, 1995: 59; LANDER, 2000).

Nessa perspectiva, as bases epistemológicas da obra de Marx e Engels conferiram subsídios para a emergência de perspectivas de pensar e

produzir o conhecimento onde elementos como a libertação dos oprimidos, a superação do capitalismo e a emergência do socialismo estão articulados de forma dialética, constituindo princípios éticos inegociáveis. E, para além disto, oportunizaram o empoderamento de protagonistas de uma produção de conhecimentos nascida na opressão, na luta social contra as injustiças e desigualdades, bem como na obstinada procura por novos paradigmas sociais capazes de fazerem-se vislumbrar ideais utópicos como revolução e transformação social.

A Educação Popular nasce em meio ao cenário diverso das perspectivas críticas de pensar o fenômeno da Educação na América Latina e passa a ser sistematizada desde o final da década de 1950, a partir de sua permanente realização nos espaços de educação de jovens e adultos, bem como nos movimentos de cultura popular. Nesse percurso, a Educação Popular foi paulatinamente se consolidando como perspectiva teórica de pensar a educação de forma crítica, o que se deu a partir dos estudos de diferentes intelectuais, os quais dedicaram esforços no sentido de evidenciar uma teoria da educação encharcada de compromisso social e político, e articulada sobremaneira aos anseios latino-americanos de construção de uma sociedade pautada por princípios como participação, democracia, justiça social e autonomia (GADOTTI, TORRES, 1994; LANDER, 2006).

Dentre outros fundamentos teóricos, esta perspectiva educacional crítica foi construída a partir de elementos significativos da obra de Marx e Engels (1996), a qual conferiu bases filosóficas e teóricas significativas para se pensar a produção do conhecimento numa perspectiva dialética que tem como ponto de partida, necessariamente, o mundo concreto e suas contradições. Estando radicalmente inserida nas lutas contra opressão na América Latina e nos movimentos de cultura popular, aos poucos a Educação Popular foi ganhando espaços em outros campos do conhecimento e em diferentes áreas profissionais, na medida em que subsidiava bases para se questionar a aplicação tradicional das ciências, reivindicando processos educativos que garantissem uma atuação da ciência comprometida com a geração de processos emancipatórios nos contextos de exclusão social onde se insere. Nesse sentido, a Educação Popular apresenta-se ainda nos dias de

hoje como eminentemente necessária, constituindo um marco teórico e uma teoria do conhecimento de relevância singular para trabalhos sociais e ação de políticas públicas com perspectiva educativa libertária, democrática e participativa (BRANDÃO, 2002). Para Calado (2008, p.230/231), significa

um processo formativo, protagonizado pela Classe Trabalhadora e seus aliados, continuamente alimentado pela utopia, em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária, culturalmente diversa, dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas, posturas correspondentes ao mesmo horizonte. No contexto dominante de afastamento das realizações educacionais da realidade social circundante e de seu tímido ou inexistente comprometimento com o sofrimento das camadas mais excluídas da população, a Educação Popular tem significado – em todo o país – uma oportunidade concreta de resistência e criatividade, apontando novos e promissores rumos para a formação e seu compromisso com as lutas populares. Através da EP, muitos atores sociais encontraram abrigo para o desvelamento de ações marcadas pelo encontro transformador do saber científico com o saber popular (CRUZ, 2011).

A Educação Popular não significa uma área específica a mais ou um setor em especial da educação como um todo. Implica uma abordagem diferente de pensar, conduzir e organizar as ações e práticas sociais. Compreende uma série de experiências onde os saberes populares e tradicionais são valorizados e constituem a base das ações extensionistas. Para tanto, o diálogo de saberes e a análise crítica da realidade compõem pré-requisitos básicos na construção de intervenções realizadas preponderantemente de modo coletivo e orientadas a partir dos interesses e anseios dos setores populares. Seu objetivo primordial é a mudança, por meio de ações coletivas e participativas para a transformação das condições objetivas de desconforto, dor e opressão que incomodam estes grupos e lhes alienam as possibilidades de realização de cidadania (CRUZ, 2011).

Melo Neto (1999) nos dá algumas pistas sobre como a Educação Popular inspira e orienta as ações sociais, destacando alguns elementos importantes inerentes a esta vertente educativa e ética. Afirma que ela

pressupõe: a crença no homem, nas expectativas de mudança para um sistema social mais justo, espaços abertos, compartilhados por todos, sem barreiras de classes; a dimensão da resistência e a superação da alienação das pessoas; a participação popular, a organização popular, a crença e o estímulo na construção da força do povo.

Para o referido autor, a EP é também um principio ético organizativo e uma prática moral que promova a cidadania; processos que envolvam o entendimento e a assimilação da realidade individual e coletiva e a capacitação para a ação, através da reflexão conjunta sobre as condições de vida e as ações programadas; uma oportunidade de cada um rever-se a partir do compromisso com grupos populares. Educação popular como uma oportunidade de ultrapassar o conceito de conscientização e de valorização da cultura popular para assumir a noção de conflito, o que implica tensões permanentes, numa prática educativa radical, que se coloca em relação com outros processos sociais, de construção de uma nova cultura e de um projeto de sociedade, de formação da identidade de classe e de construção de cidadania.

É um trabalho pedagógico voltado a construção de uma sociedade cujo poder esteja sendo encaminhado para as mãos dos responsáveis pela produção social – os trabalhadores, como ressalta Fleuri (1988). Para Melo Neto (1999), é um sistema educativo, caracterizado por um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionados entre si, ordenados segundo princípios e experiências. Constitui-se como o conjunto de processos educativos desenvolvidos pelas classes populares em suas lutas pela existência, pela vida em condições mais dignas. Muitas vezes, configura-se como uma estratégia de persistência destes setores, a qual vai se direcionando pela construção de hegemonia e de sua resistência à exploração e à dominação capitalista (MELO NETO, 1999; FLEURI, 1988).

Como categoria teórica, a Educação Popular exige fé nas pessoas. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. (...) A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo de que

ele se instale. O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles (FREIRE, 2005). Mas exige também luta e conscientização política.

Não há humanização, assim como não há libertação sem transformação revolucionária da sociedade de classes, em que a humanização é inviável. Analfabetos ou não, os oprimidos, enquanto classe, não superarão a situação de explorados a não ser com a transformação radical (FREIRE, 1984).

A Educação Popular é o instrumento desta luta. Uma pedagogia do oprimido, como fundamentou Freire:

tem de ser forjada com ele não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por uma libertação, em que esta pedagogia se fará e se refará (FREIRE, 2005). Então, reforçamos: fazer Educação Popular é propor a mudança da sociedade e das relações educativas nela presentes. É não apenas pensar, mas fazer diferente. E lutar contra todo tipo de verticalismo, autoritarismo, hierarquia, irracionalidade, exploração e desumanização. O corpo teórico e metodológico da Educação Popular provê bases pedagógicas que pressupõem a formação de cidadãos com consciência crítica, ativa e reflexiva; portanto, questionadora. Gente questionadora para o desenvolvimento de uma ciência humana, social e ambientalmente edificante (CRUZ, 2011).

É importante enfatizar que a Educação Popular não é a única perspectiva teórica para uma educação libertadora. No entendimento de Paludo (2001), ela faz parte do chamado Campo Democrático Popular (CDP), no qual atuam também perspectivas teóricas e filosóficas de relevância na educação como: a Teologia da Libertação; o Novo Sindicalismo; os Centros de Educação e Promoção Popular; o pensamento pedagógico socialista, cuja base está no materialismo histórico e materialismo dialético de autores como Marx, Lênin e Gramsci; as múltiplas experiências de movimentos sociais e populares ocorridas em toda a América Latina; além das experiências

socialistas do Leste Europeu e aquelas de países latino-americanos como Nicarágua, Chile e Cuba.

Destacam-se também, nesse pensamento social latino-americano, seja do interior do continente ou de fora dele, uma ampla gama de buscas, de formas alternativas do conhecer, questionando-se o caráter colonial/eurocêntrico dos saberes sociais sobre o continente, o regime de separações que lhes servem de fundamento, e a ideia mesma da modernidade como modelo civilizatório universal.

As ideias centrais articuladoras deste paradigma são, para Montero (1998), as seguintes:

- Uma concepção de comunidade e de participação assim como do saber popular, como formas de constituição e ao mesmo tempo produto de uma episteme de relação.

- A ideia de libertação através da práxis, que pressupõe a mobilização da consciência, e um sentido crítico que conduz à desnaturalização das formas canônicas de aprender- construir-ser no mundo.

- A redefinição do papel do pesquisador social, o reconhecimento do Outro como Si Mesmo e, portanto, a do sujeito-objeto da investigação como ator social e construtor do conhecimento.

- O caráter histórico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade de vozes, de mundos de vida, a pluralidade epistêmica.

- A perspectiva da dependência, e logo, a da resistência. A tensão entre minorias e maiorias e os modos alternativos de fazer-conhecer.

- A revisão de métodos, as contribuições e as transformações provocados por eles (MONTERO, 1998)

À procura de alternativas para essas universalistas de submissão e controle de todas as dimensões da cultura e da vida, Escobar aponta para duas direções complementares: a resistência local de grupos de base às formas dominantes de intervenção, e a desconstrução do desenvolvimento (ESCOBAR, 1995, p.223), uma tarefa que requer o esforço da desnaturalização e da desuniversalização da modernidade.

Neste novo século, a Educação Popular permanece em diálogo com estas diferentes perspectivas, mas mantém sua importância singular no contexto vivenciado pela sociedade, pois ainda está em voga uma educação hegemônica excludente, autoritária, direcionada a reafirmar a sociedade como aí está.

4.2. Educação Popular na reorientação de práticas sociais e