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Educação Popular na reorientação de práticas sociais e profissionais

CAPÍTULO 4 – A EDUCAÇÃO POPULAR E O AGIR CRÍTICO EM NUTRIÇÃO: FUNDAMENTOS E ANTECEDENTES

4.2. Educação Popular na reorientação de práticas sociais e profissionais

Quando falamos de Educação Popular, falamos de um referencial diferente de educação – identificado com a busca por um referencial humano, democrático e justo nas relações educativas, independente do espaço no qual estas se dêem. Falar de Educação Popular é falar de reflexão crítica sobre as práticas sociais, inclusive sobre nós mesmos. Portanto, estamos nos referindo a uma crítica profunda ao modo dominante como a educação vem sendo realizada nas várias práticas sociais.

Vivenciá-la é concretizar outros tipos de práticas sociais na vida em sociedade, que caminha na construção de uma organização social mais justa, humana e democrática. A EP recomenda lutar pela emancipação das classes e dos grupos desfavorecidos de nossa sociedade.

No que tange ao foco desta tese, qual seja o desenvolvimento de um agir crítico em Nutrição compromissado com ações de Promoção da Saúde e da Alimentação Saudável em caráter ampliado, percebemos ser a Educação Popular inspiração teórica e prática decisiva, agregegando dimensões sociais e políticas à compreensão do papel da ciência da nutrição em comunidades populares e da intervenção do nutricionista nestes espaços.

Conforme referido na apresentação deste trabalho doutoral, a Educação Popular vem se aprensentado cada vez mais como uma referência para a reorientação de práticas sociais e profissionais. Isso se intensificou, particularmente, na última década, quando passaram a se multiplicar estudos e pesquisas que demonstraram o papel singular dessa perspectiva educativa na constituição de novas metodologias, posturas e dinâmicas em trabalhos, práticas sociais e atuações profissionais em diferentes campos da vida

humana, como destacado na obra “Educação Popular – lugar de construção social coletiva”. No campo da saúde, a obra “A saúde nas palavras e nos gestos – reflexões da Rede de Educação Popular em Saúde” é uma referência nesse sentido (STRECK, 2013; VASCONCELOS, 2013b; VASCONCELOS, 2001).

A EP emerge como referência para outra prática social na medida em que o popular que a qualifica não remete sua perspectiva e seus princípios apenas à origem, mas fundamentalmente a uma intencionalidade política e uma dimensão metodológica, as quais podem ser aplicadas em quaisquer que sejam os espaços e as áreas de atuação.

Ao investigar como o termo ‘’popular’ é compreendido por aqueles que vivenciam, dirigem ou assessoram movimentos sociais, Melo Neto (2004) encontrou que algo é popular se tiver origem nos esforços das maiorias, das classes populares, aqueles que vivem e viverão do trabalho. Mas concluiu que a origem só não bastava para compreender essa categoria. Há uma dimensão política no popular, que exige que suas ações se voltem para a defesa dos interesses da maioria. Recomenda que se deve pensar em resistências a todo tipo de opressão. Para Melo Neto (2004, p.158), “uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político”. Para isso, popular também expressa uma dimensão do como fazer. Uma metodologia.

Assim, a Educação Popular inspira as práticas sociais a desenvolverem procedimentos, dinâmicas e abordagens coerentes com o efetivo enfrentamento da barbarização social e da emancipação dos excluídos, como um saber-fazer na contramão da conjuntura que aí está, traduzido por formas de conduzir que estejam coerentes com o sonho almejado. Se a busca é por justiça, igualdade de direitos, equidade, autonomia, dignidade e liberdade, esse processo educativo popular precisa se cristalizar em abordagens que respeitem esses princípios.

Para isso, afirma Melo Neto (2004), a metodologia que confirma algo como popular precisa promover o diálogo entre os partícipes das ações. Envolve o exercício crítico do pensamento, visando preparar os indivíduos

para a ação, para “desenvolverem metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a ação” (Melo Neto, 2004, p.159). Nesse processo, afirma sua identidade como indivíduo, grupo ou classe social. Por tudo isso, o corpo metodológico de algo popular requer que se pense em mudanças, vislumbrando caminhos para transformar as situações que geram desigualdades, que incomodam ou que oprimem. Para Paludo (2001), algo contra-hegemônico, desencadeado pelo efetivo comprometimento com a emancipação das classes ditas subalternas e da humanidade como um todo.

Assim, pensar em Educação Popular significa dispor-se a construir outras relações sociais e humanas (sociabilidades), o que inclui novas abordagens e intencionalidades para as práticas profissionais, que divirjam radicalmente daquelas hoje vivenciadas de modo predominante no mundo capitalista, dominado por lógicas outras que não aquelas humanizantes. Práticas sociais que guardem uma ética para com a vida e com a humanidade.

No campo dos movimentos sociais e suas interfaces com a Educação, estudos como o de Calado (2008), Batista (2004), Silva e Araújo (2010) e Caldart (2000) ressaltam a relevância da Educação Popular na reorientação de práticas social, particularmente quanto ao estabelecimento de novas bases nas relações humanas, educativas e políticas no seio dos movimentos sociais. Batista (2004) afirma que a luta dos sujeitos nestes movimentos proporciona para todos eles espaços privilegiados de vivencias para construção de novas sociabilidades. Ou seja, seus sujeitos vão ampliando suas visões ao irem se constituindo em seres culturais, sociais, éticos, coletivos, espaciais, históricos, afetivos, políticos, cidadãos. Para a autora, os processos educativos presentes nestas ações e a produção de saberes entre iguais reforça a comunhão de identidades e de objetivos, desvelando novas perspectivas para relação em coletividade, em sociedade. Espelham esse processo elementos como a música, o teatro, a mística, os símbolos, os textos escritos, a linguagem oral. Direciona-se assim a formação de sujeitos orientados por outra perspectiva ética de viver e conviver.

Além destas produções, merecem ser ressaltados trabalhos dissertativos e doutorais no âmbito da pós-graduação em Educação da

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde se evidenciaram novas possibilidades teóricas e práticas profissionais.

Kátia Ribeiro (2001) estudou a atuação da Fisioterapia na comunidade, a partir da análise de um projeto de extensão com estudantes desta área, e constatou que o projeto Fisioterapia na Comunidade é um espaço de experimentação dessa construção, na medida em que, na interação com outros profissionais, com os moradores e a partir das reflexões realizadas, podem despontar novos caminhos e possibilidades para a fisioterapia contribuir com o enfrentamento dos problemas de saúde das camadas populares (RIBEIRO, 2009). Dentre os aprendizados acumulados nesta prática social, ressalta-se que

há peculiaridades nos projetos de extensão que marcam sua vivência, atribuindo-lhes uma forma diferenciada de atuação, particularmente nos que se caracterizam como extensão popular. Contrariando a lógica da impessoalidade reinante em muitos setores da vida acadêmica, esses projetos de extensão apresentam-se como um espaço de estabelecimentos de relações solidárias, baseadas na afetuosidade, instituindo e mantendo vínculos de amizade, aumentando a teia de relações sociais. Ademais, o contato com o cotidiano dos moradores da comunidade, seus problemas e saberes, nos impele a relativizar o saber científico, quebrando a ilusão de um saber único e as certezas definitivas (RIBEIRO, 2009, p.344).

Em sua tese de doutoramento, Kátia Ribeiro deu ênfase ao processo de atenção à saúde pela valorização das redes sociais (RIBEIRO, 2007). Ela refere (2004, p.13) que,

além de exercerem a função de preencher as lacunas deixadas pelas políticas sociais liberais e de disseminar a noção de cidadania ligada à idéia de interdependência dos membros da sociedade, enquanto movimento social, elas podem representar um espaço de luta e elaboração de propostas visando à implementação de políticas sociais mais justas. A Educação Popular pode contribuir com o fortalecimento dessas redes. Cabe aos educadores envolvidos nesse processo subsidiar as ações dos grupos, tentando articular os diversos sujeitos que deles participam, facilitando reflexões acerca da participação política, discutindo a redistribuição do poder com vistas à autonomia. Para tanto, é necessário que se trabalhe com a concepção de que as redes de apoio não são apenas grupos ou iniciativas assistenciais. É preciso acreditar no seu potencial de conscientização política e de exercício da cidadania.

Na prática médica, Medeiros (2007) desenvolveu um estudo sobre as possibilidades de atuar como práxis no contexto da Estratégia Saúde da Família. Para o referido autor (2007, p.278),

a atitude dialogal, que define a prática médica educativa e popular, provoca uma mudança qualitativa na relação médico/paciente. Quando assumida, transforma o ser profissional e, nesse compasso, gera conseqüências que vão do nível interpessoal, ao comunitário, definindo uma nova sociabilidade interprofissional.

Por sua vez, Patrícia Batista desenvolveu um estudo onde se debruça sobre a ética nas práticas sociais de cuidado em saúde e na formação universitária. Neste estudo, a autora concluiu que

a atitude dialogal, que define a prática médica educativa e popular, provoca uma mudança qualitativa na relação médico/paciente. Quando assumida, transforma o ser profissional e, nesse compasso, gera conseqüências que vão do nível interpessoal, ao comunitário, definindo uma nova sociabilidade interprofissional (BATISTA, 2012, p.172).

Na tese de doutoramento de Marísia Oliveira, em que ela desvela caminhos e possibilidades para a atuação da Psicologia Humanista na Atenção Primária à Saúde através da Educação Popular (SILVA, 2013). Ela tomou como objeto a experiência vivenciada pelo Projeto de Extensão Universitária “Para Além da Psicologia Clínica Clássica”, da Universidade Federal da Paraíba, uma experiência que, como aconteceu em meio comunitário popular, utilizou, de forma articulada e complementar, os referenciais teórico-epistemológicos citados. Observou-se que,

no âmbito da Atenção Primária, a conjugação dessas duas perspectivas possibilitou o desenvolvimento de práticas de cuidado que surpreenderam por seu caráter inovador e humanista, que podem contribuir para melhorar o atual modelo de assistência do SUS e apontar para novas formas de inserção da Psicologia, no âmbito da atenção à saúde comunitária, que superem o modelo usual centrado no atendimento individual realizado em consultórios (SILVA, 2013, p.09).

Finalmente, destacamos o estudo de Gildeci Alves de Lira, em nível de doutoramento na PUC-RS, o qual indica possibilitou considerações sobre a valorização do contexto de vida do idoso como elemento importante como ponto de partida do trabalho em saúde. Para Lira (2014), o diálogo mostrou-

se elemento disparador do modo de cuidado desenvolvido com a pessoa idosa. O incentivo e a valorização da autonomia e do empoderamento do idoso foi considerado como aspecto fundamental para favorecer o envelhecimento ativo, bem como a atuação em rede, o aprendizado do autocuidado, a autonomia e o empoderamento do idoso no seu contexto familiar e comunitário.

Considerando todas as reflexões aqui compartilhadas, podemos caminhar para um entendimento de Educação Popular como reorientadora de práticas sociais e profissionais. Encontra-se, por isso, com o entendimento de Paludo (2001, p.99): um conjunto de valores éticos/políticos, entre os quais se destacam a construção de sujeitos populares (bases, lideranças, direções, formação de educadores das classes populares) capazes de construir a própria história de libertação como protagonistas desses processos, a busca de justiça e solidariedade e a busca da vivência de relações democráticas, participativas e transparentes, a autonomia e a democracia de base.

A Educação Popular também vem constituindo um significativo componente inspirador para a atuação em Nutrição, especialmente no contexto da ESF e das ações de promoção da SAN. Conforme ressaltam Vasconcelos (2013) e Cruz, Pereira e Vasconcelos (2011), como teoria da Educação (FREIRE, 2005; GADOTTI, TORRES,1994; MELO NETO, 2004), a Educação Popular traz elementos práticos e orientações teóricas para a formação de profissionais em Nutrição, sobretudo por posturas éticas compromissadas com os princípios como a Promoção da Saúde e a Segurança Alimentar e Nutricional (VASCONCELOS, PEREIRA, CRUZ, 2008; VASCONCELOS, 2013).

Esta tese de doutoramento não se restringe à Nutrição, pois os estudos e as reflexões aqui dispostos estão também preocupados em aprofundar esse movimento de reorientação das práticas sociais e profissionais tendo a Educação Popular como elemento norteador.