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a) A positivação, internacionalização e universalização dos Direitos Humanos

Com a Declaração de 1948 (...) a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.

Norberto Bobbio112

As circunstâncias próprias do período do pós-Segunda Guerra Mundial configuraram um segundo grande marco na história dos Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 deu início, em primeiro lugar, à

positivação dos direitos do homem (BOBBIO, 2005; BIELEFELDT, 2000; LAFER,

2001; FERRAJOLI, 2004).

Os instrumentos jurídicos criados neste período são: a Carta das Nações Unidas (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e a Convenção para Prevenção e Repressão do Genocídio (1948). Mais adiante, teremos os dois Pactos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais (1966), que juntos conformaram a base fundamental do direito internacional nesse campo, compilando, em boa medida, todos os Direitos Humanos consagrados na História (ainda que não estejam presentes, ipsis litteris, os chamados direitos de terceira geração).

Segundo Lafer, a dicotomia entre direito natural e direito positivo enfraqueceu-se, ou mesmo anulou-se, com a positivação dos Direitos Humanos. Para usarmos as

expressões técnicas e características, os Direitos Humanos deixaram de ser puramente postulações morais (e antecedentes ao contrato político) para serem leis positivas, acordadas entre os homens e vistas como dever dentro de um ordenamento jurídico.

A positivação dos Direitos Humanos deu constância à noção de obrigatoriedade dos Estados nessa matéria – ao mesmo tempo que, não podemos omitir, serviu (e serve) como plataforma ideológica para inúmeras intervenções militares, inclusive sem anuência da ONU. 113

Decerto, o sentimento e a reflexão dos atores internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial ampliou e robusteceu a defesa dos Direitos Humanos, fazendo com que a Declaração Universal dos Direitos do Homem fosse incorporada ao direito internacional e servisse de parâmetro para a construção ou reforma de diversas constituições nacionais.

Outra característica que se evidencia nesse período é de que os Direitos Humanos se tornam “internacionais”. Ou, como defende Alves, os Direitos Humanos tornam-se cada vez mais “universais”. Infelizmente o autor não se aprofunda nessa defesa, e não nos possibilita saber qual a diferença entre o “internacional” e o “universal”. 114 Na realidade, a ideia do “universal” para Alves só aparece enquanto uma característica da amplitude geográfica de países – o que, dessa forma, não se diferencia do “internacional”. O autor sustenta que, quando a Declaração foi submetida à votação na Assembleia Geral, esta continha “apenas” 56 Estados, sendo “aprovada por quarenta e oito a zero, mas com oito abstenções (África do Sul, Arábia Saudita e os países do bloco socialista)”. (ALVES, 2006, p. 24) O embaixador, especialista no tema, conclui: “(...) a Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi, portanto, ao nascer, ‘universal’ sequer para os que participaram de sua gestação”. (ALVES, 2006, p. 24)

113 Para nos restringirmos ao pós-Guerra Fria, período contemporâneo, ver a intervenção da OTAN

na Iugoslávia e as intervenções dos EUA e alguns outros países no Afeganistão e no Iraque.

114 Se bem entendemos, Alves define essa concepção do “Universal” como diferente (#) e maior (>)

que o “Internacional”, embora não se aprofunde nessa questão. Cita, para fazer jus, que essa concepção é “conforme proposição de René Cassin (ver M. Glen Johnson, Writing the Universal

Declaration of Human Right”, em The Universal Declaration of Human Rights – 45th Anniversary

1948-1993, pp.67-68). A declaração é o único instrumento de Direitos Humanos que se autoproclama “universal”; todos os demais são intitulados “internacionais”. (ALVES, 2006, p. 23, nota de rodapé, n.1)

Para o autor, essa “universalidade” dos Direitos Humanos só teve seu “passo mais significativo” em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Viena, visto que foi adotada por consenso em que estavam reunidos todos os países do mundo. 115

Ainda que observadas as restrições que bem fundamenta Alves, deve-se notar que a Declaração de 1948 dá um “passo significativo” com relação ao pressuposto de “universalidade”. Isso porque os Direitos Humanos tornam-se parte efetiva do direito internacional. E mais, 56 Estados não é “pouco”, tendo em conta o período histórico com que estamos lidando. Ainda que os Estados socialistas e demais tenham se abstido (e tantos outros não tenham participado), esse número de anuência é, quem sabe, histórico para um instrumento jurídico de direito internacional. Quanto mais para um tema como este.

Sem sombra de dúvida, a “universalização” dos Direitos Humanos, significando uma maior adesão de países a esses direitos, teve maior impacto na Conferência de Viena. Os tempos eram outros, mal havia se iniciado o período pós-Muro de Berlim e pós-fragmentação da URSS. Neste período (primeiro pós-Guerra Fria) havia uma espécie de consenso internacional, sustentado pelas chamadas “forças centrípetas” no cenário internacional, na expressão de Lafer e Fonseca116. O consenso pautava-

se, em grande parte, pela expectativa de funcionamento efetivo das organizações internacionais e por certos valores compartilhados, “universais”, como os Direitos Humanos. A Guerra do Golfo (1991), empreendida com o consentimento da ONU, demonstrou que essa organização poderia exercer seu papel legítimo e legal de

normatizar (no amplo sentido) as relações internacionais, dando alento às

esperanças internacionalistas-liberais-institucionais (para tentar caracterizá-las de alguma forma).

115 “O passo mais significativo – ainda que não ‘definitivo’ – no caminho da universalização formal da

Declaração de 1948 foi dado na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993. Maior conclave internacional jamais reunido até então para tratar da matéria, congregando representantes de todas as grandes culturas, religiões e sistemas sociopolíticos, com delegações de todos os países (mais de 170) de um mundo já praticamente sem colônias, a Conferência de Viena adotou por consenso – portanto sem votação e sem reservas – seu documento final: a Declaração e Programa de Ação de Viena. Este afirma, sem ambiguidades, no Artigo 1º. ‘A natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas ’.” (ALVES, 2006, p. 25)

116 Ver: LAFER, Celso e FONSECA JÚNIOR, Gelson. “Questões para a diplomacia no contexto

Por outro lado, concordamos com Alves quanto à observação de que os Direitos Humanos ainda não podem ser chamados de universais, no sentido de que precisam ser efetivados, se tornar práxis, para que possamos usar essa terminologia. Soma-se a essa compreensão o jurista Norberto Bobbio (Era dos

direitos), ao sustentar que para os Direitos Humanos serem verdadeiramente

universais é preciso que sejam efetivos, ou seja, que aconteçam de fato e sejam respeitados.

Não obstante esse debate, é possível entender a “universalização” como uma categoria diferente da “internacionalização”. Basta dizer que internacionalização nos remete principalmente aos Estados e universalização diz respeito a sujeitos mais amplos, aos indivíduos ou mesmo à humanidade. Isso porque o “internacional” na teoria política é entendido como “entre Estados-nações”. Quanto a “universal”, podemos dizer que o termo remete a um caráter mais amplo do que meramente os Estados, algo que implica a palavra “unus” (todo), que não pode ser reduzida meramente a instituições, como os Estados.

Temos, portanto, em síntese, a partir da Segunda Guerra Mundial: 1) Direitos Humanos positivados, no direito internacional e doméstico; 2) Direitos Humanos internacionalizados; 3) Direitos Humanos num caminho evolutivo de se tornarem plenamente internacionalizados ou universalizados (tendo em vista a sua hegemonia, que se demonstra pela aceitação dos princípios e Direitos Humanos nos mais diferentes sujeitos que não os Estados).

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Excurso: ruptura e vida

Devemos destacar que na Declaração Universal há uma outra “ruptura” ou novidade: a Declaração dá margem à interpretação de que a Soberania possa ser “menor” do que os Direitos Humanos, em certas situações. Disso nos ocuparemos posteriormente, basta aqui fazermos essa menção.

Por último, e não menos importante, está posta em relevo novamente a “questão da vida”. A vida, dotada de liberdade ao nascer, é também cristalizada no corpo jurídico internacional. Seguindo os passos do que ensinou o direito natural, a pessoa ao nascer é livre, como vemos no Artigo 1º.:

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948, MELLO, 1950, p. 827)

A liberdade, assim, é um bem inalienável da vida e tem início a partir do nascimento da pessoa. Este último destaque, a relação entre vida, nascimento e liberdade, marca uma característica central da concepção e identidade política e filosófica do homem contemporâneo.

Na realidade, o entrelaçamento dos elementos políticos é claro: se somos todos livres quando nascemos e se o nascimento representa o início da vida, logo, temos o direito à vida como fundamento dos Direitos Humanos. No artigo 3º da Declaração o primeiro direito a ser elencado como universal é a “vida”: “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. (Declaração Universal dos Direitos do

Homem, idem, p. 828)

Além da reafirmação da vida como o mais alto valor universal, é também nesse momento, no pós-Segunda Guerra Mundial, que uma outra espécie de direitos vai se incorporar à filosofia dos Direitos Humanos. São os chamados direitos econômicos, sociais e culturais dos indivíduos (DESC).

b) Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) e