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Introdução

Qual é nosso leitmotiv para sustentar que os Direitos Humanos são antinômicos em relação à Soberania? Que lugar ocupamos ao defender essa tese? São indagações importantes, pois ainda que, numa apreciação imediata, a formulação “Direitos Humanos versus Soberania” tenha cabimento lógico, de igual maneira cabe a expressão “Direitos Humanos e Soberania”, ou mesmo, “Direitos Humanos ao lado

da Soberania”. Todas essas formulações são válidas, desde que consideradas sob

diferentes perspectivas.

No pequeno painel histórico que buscamos traçar no capítulo I, procuramos deixar claro que na transição da Idade Média para a Idade Moderna houve rupturas de grande magnitude, ao mesmo tempo que se mantiveram algumas características da velha ordem (Ancien Régime).

Uma das grandes rupturas foi o desaparecimento do súdito para o surgimento do

cidadão. Essa mudança reflete também a compreensão, no âmbito institucional, de

que o Estado passou a ser visto como tendo deveres frente ao cidadão. O Estado se transforma e, levando essa lógica ao extremo, passa a fundamentar-se no cidadão; o Estado existe para o cidadão. E o cidadão, por sua vez, torna-se um sujeito político e de direito; passa a ser um sujeito ativo na constituição do governo e a ter direitos que devem ser respeitados e promovidos pelo Estado/governo.

Outro conceito que também se modifica: é o da Soberania, enquanto direção ou atividade legislativa. No caso inglês, a Soberania passa das mãos do Rei para o Parlamento. No caso francês, passa do Rei para a Nação.196 Destarte, conclui-se

da seguinte forma a síntese política revolucionária: a morte do Estado Absolutista, o nascimento do cidadão e a emergência da Soberania nacional.

196 No caso dos Estados Unidos, como vimos, a palavra soberania não é mencionada nem na

Declaração de Independência, nem na Constituição e tampouco no Bill of Rights. A tradição estadunidense utiliza, não obstante, a ideia de poder derivado dos governados.

Não obstante, é uma tarefa evidenciar que há um aspecto central da Soberania que é mantido, a despeito dos esforços empreendidos para eliminar o Rei – às vezes literalmente – e para dar fim ao poder absoluto. Enfim, acontecidas uma série de modificações substanciais na Política, a Soberania mantém seu estreito vínculo com o Território, a Fronteira e a Comunidade. É mantida, portanto, a lógica de que um Estado está para uma Soberania, um Direito e um Território.

Se os Direitos Humanos surgem revolucionários, como uma força prática e teórica contra o Poder Absolutista, em nada afetam, por outro lado, um dos grandes legados dessa mesma sintaxe histórico-política: a Soberania e a soberania territorial. Daí a possível perplexidade: como isso aconteceu, uma vez

entendido que a Soberania foi incorporada no discurso político para justificar a monarquia absoluta? Vejamos.

A Soberania, em sua forma summa potestas superiorem non recognoscens, nasce lado a lado com o Poder monárquico absolutista, para justificá-lo. Segundo Foucault:

(...) não se pode esquecer: nas sociedades ocidentais, e isto desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder régio. Foi a pedido do poder régio, foi igualmente em seu proveito, foi para servir-lhe de instrumento ou de justificação que se elaborou o edifício jurídico de nossas sociedades. (FOUCAULT, 2005, p. 30)

E mais adiante: “O papel essencial da teoria do direito (...) é o de fixar a legitimidade do poder: o problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da soberania”. (FOUCAULT, 2005, p. 31)197 A Soberania nasceu íntima do Rei, nasceu íntima do Poder Absoluto.

Esta também parece ser a compreensão de Bodin, segundo sua célebre definição: “A soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma república”. (BODIN, 1576, 2006,

197 Aula de 14 de janeiro de 1976, curso no Collège de France. A passagem que segue em sua aula,

à citação, é digna de nota: “Dizer que o problema da soberania é o problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência. O sistema do direito é inteiramente centrado no rei, o que quer dizer que é, em última análise, a evicção do fato da dominação e de suas consequências”. (FOUCAULT, 2005, p. 31)

p. 47) Somemos a ela a ideia de que a Soberania bodiniana se concretiza, idealmente, através da figura do monarca soberano.198 Logo, a Soberania não serve apenas para justificar o poder absoluto. A Soberania é, entre outras coisas, o próprio poder absoluto. A presença do verbo “é” pode representar uma definição, sinônimo ou mesmo trazer a ideia de algo que se confunde com a coisa dada. Assim sendo, a formulação bodiniana constitui uma métrica contínua e inseparável entre a

Soberania, o poder absoluto e o príncipe.

Faça-se a ressalva de que, conquanto na definição de Bodin não esteja presente a ligação entre Poder Absoluto e Monarquia Absoluta – e que sua definição possa transbordar, extrapolar essa relação, obviamente –, ainda sim é possível fazê-lo pois, como sabemos, a melhor forma de república para Bodin é a monarquia. 199 Tentando dar conta de um fenômeno complexo, seria justo que identificássemos, durante a Idade Média, a construção histórica de uma outra tríade: Soberania/Poder Absoluto/Lei, como nos ensina Kritsch:

É possível assegurar com alguma convicção (...) que as questões vinculadas à noção de soberania eram simultaneamente políticas e jurídicas. Eram políticas porque envolviam a construção de um sistema de poder, fosse ele hierocrático ou estatal. A imagem do

rex in regno suo imperator est – que viria a ser muito em breve

reivindicada pelos governantes dos Estados territoriais emergentes – evocava, ao mesmo tempo, a concentração do comando territorial (relações internas) e a pretensão de independência em face de potência externas, fossem elas os não-cristãos ou os territórios vizinhos. E jurídicas porque todas as pretensões eram apresentadas como legais. (KRITSCH, 2002, p. 225)

198 “(...) o príncipe soberano, que somente está obrigado a prestar contas a Deus...” (BODIN, 1576,

2006 p. 49) Ou ainda: “Dado que, depois de Deus, nada existe de maior sobre a terra do que os príncipes soberanos, instituídos por Ele como seus representantes para mandar nos demais homens (...) ” (BODIN, 1576, 2006, p. 72)

199 Já tratamos da questão, contudo, cabe ainda uma citação esclarecedora. Alberto Barros sintetiza

em quatro argumentos a preferência de Bodin pela forma de estado monárquico. Ele cita o “argumento histórico”, o argumento que “vem da autoridade tanto dos grandes pensadores quanto das leis de Deus”, o “argumento metafísico” e o argumento que o autor julga o mais “decisivo, em favor da monarquia, (...) que ela se adapta melhor à natureza da soberania, que requer a unidade de comando”. (BARROS, 2001, p. 322) Todas as citações que Barros faz de Bodin encontram-se no livro VI do Six Livres... Também, a esse respeito, comenta Schmitt (Teologia Política I): “O conceito de soberania de Bodin nasceu no século XVI a partir das dissolução definitiva da Europa em estados nacionais e da luta do principado absoluto contra os estamentos”. (SCHMITT, 2004, p. 30, tradução própria)

Na construção do conceito e da prática da Soberania, Raquel Kritsch destaca a importância da “redescoberta” do direito romano, em particular o Digesto de Justiniano200, as teses de alguns canonistas201, as querelas entre os monarcas e a Igreja202, entre outros. O conceito vai adquirindo forma na Idade Média por meio de

várias influências: fontes jurídicas, lutas políticas e, se tivermos em conta Maquiavel, até da Fortuna. Importa-nos sublinhar que é a partir do Direito – sua capacidade de definir e legitimar – que o conceito de Soberania transforma-se em um atributo do Estado Absolutista e do Rei (e com eles se funde); nesse sentido a Soberania está, sempre, ao lado da Lei. 203

Assim, nosso propósito é menos definir e aprofundar a correlação da Soberania com a monarquia absolutista e a Lei do que marcar, com letras maiúsculas, que esses três termos nascem conjuntamente, seja no âmbito teórico, seja no âmbito prático (da história). Soberania, Monarquia absoluta e Lei compõem uma tríade

200 Como também destaca José Marin: “Es evidente que algunos de los principios insertos en el

Derecho romano que ahora se recibía (...), aunque referidos originariamente al emperador (no se olvide que en el código de Justiniano 1, 14, 12, 3 se consignava que leges condere soli imperatori

concessum est), habrían de favorecer las expectativas políticas de los reyes, especialmente

interesados em potenciar su discutido poder frente al reino. La conocida afirmación de Ulpiano quod

principi placuit legis habet vigorem y aquella otra que, como complemento de la anterior, consideraba

a los reyes desligados del cumplimiento de las leyes (Princips a legibus solutus est), ambas insertas en el Digesto justinianeo, constituirán el cimiento legal sobre el que se proyectará una copiosa doctrina defensora del absolutismo regio”. (MARÍN, 1998, p.5)

201 Afirma Kritsch: “A ideia de que a vontade do soberano, e não a justiça, constituía o elemento

essencial da lei foi posta por um canonista do século XIII, Laurêncio Hispano, contra uma das mais firmes tradições da política medieval. Separando a vontade do príncipe do conteúdo da lei, Hispano tornava a lei plenamente caracterizável sem referência à moralidade ou a qualquer conceito transcendente de justiça. Esse é um exemplo de como, aos poucos, delineava-se a noção da vontade (autorictas) como fonte da lei”. (KRITSCH, 2002, p. 228)

202 O conflito entre o regnum e o sacerdotium, ao qual Kritsch dedica todo seu capítulo 1 (“A questão

das investiduras e seus desdobramentos”), já se anuncia no século XI entre Henrique IV e o papa Gregório VII com a querela das investiduras e, podemos dizer, segue-se até, pelo menos, o século XVII quando Armand Jean du Plessis, o cardeal Richelieu, aplicou a raison d’état – expressão que viria a se tornar célebre nas relações internacionais – opondo a França à pretensão dos Habsburgos de reconquistar a Europa sob a bandeira católica. A França, católica, unia-se aos países protestantes, na Guerra dos Trinta Anos, fazendo prevalecer o interesse nacional sobre os princípios religiosos.

203 Comenta Pedro Gala sobre o processo de criação de um novo Direito pós-feudal: “Colocar esses

problemas como uma questão a ser resolvida, constituiu a tarefa que se impôs a um grupo de homens – juristas, historiadores, funcionários – para os quais a superação da crise (...) apenas poderia se solucionar na constituição de uma instância inapelável capaz de instaurar e assegurar a concórdia e a paz. (...) Com efeito, desde o final do século XIII os juristas burgueses haviam colocado a auctoritas de seu saber laico a serviço do fortalecimento das prerrogativas reais. (...). Foram assim abrindo caminho, ao longo dos séculos, para a ideia de um Estado centralizado, unificado e laico e, o que é mais importante, lograram, mediante fórmulas simples e precisas inculcar na consciência social a ideologia absolutista”. (GALA, p. XIII, tradução própria)

fundamental, na qual uma não pode ser entendida sem a outra, na edificação política do Estado moderno.

Retornando aos Direitos Humanos, é importante notar que estes tornaram-se argumentos revolucionários. As ideias dos Direitos Humanos serviram de plataforma ideológica para pôr fim ao Antigo Regime, no caso europeu, e iniciar um novo Estado (desvinculando-se do colonialismo inglês) no caso dos EUA. Na Inglaterra os "direitos humanos” ingleses fizeram diminuir o poder do Rei, aumentar o do Parlamento e abriram caminho para que os “cidadãos” tivessem direito a diversas garantias enquanto parte de um processo judicial (cite-se novamente o exemplo do

Habeas Corpus). Nos EUA, os direitos de liberdade, tais como o de opinião,

expressão, organização, isonomia em relação à lei etc., constituíram o ethos político e jurídico da sociedade nascente. Na França, a grande batalha pelo fim dos privilégios de nascimento e do clero se traduzia, necessariamente, em uma batalha por uma igualdade de direitos204 (materializada pela anulação dos estamentos e das

leis particulares e distintas).

Então, sob a perspectiva dos Direitos Humanos enquanto formadores e constitutivos de um novo Estado e, não menos, enquanto fundamentos de uma nova sociedade, a seguinte frase, incessantemente repetida, faz sentido: “os Direitos Humanos estão

pari passu com o Estado” (diga-se: Estado-Soberano). Logo, desde o momento em

que os Direitos Humanos propriamente ditos se afirmaram e ganharam força política, tornaram-se também íntimos do Estado, íntimos desse Poder.

Podemos, então, afirmar que foram os Estados-Soberanos contemporâneos, nascidos das revoluções, que fortaleceram institucionalmente os Direitos Humanos, seja no âmbito doméstico seja no internacional. Neste último, pode-se inclusive dizer que foram os Estados-Soberanos os responsáveis pelo aparecimento dos Direitos Humanos em sua forma positivada.

204 James Robinson resgata dos arquivos parlamentares franceses, de 1789, a posição do “povo de

Lyons”, que bem pode representar as ideias do terceiro estado (mas não só) como um todo: “that since arbitrary Power has been the source of all evils which afflict the state, our first desire is the establishment of a really national constitution which shall define the righs of all, and provide the laws to maintain them”. (Archives Parl., III, 608 apud ROBINSON, 1899, p. 657) No que tange ao clamor por uma igualdade de direitos, direitos nacionais etc., Robinson sustenta, apoiando-se em citações da época, que essa ideia estava presente também nas demandas dos representantes da nobreza e do clero.

Recentemente, foram os Estados que aprovaram a Declaração Universal dos

Direitos Humanos em 1948. Foram, de igual maneira, os Estados que firmaram os

documentos da Conferência de Viena em 1993.

Nesse sentido, há certamente uma proximidade, e quiçá uma complementaridade, entre os Direitos Humanos e a Soberania. Quando os atuais defensores dos Direitos Humanos, oriundos da corrente liberal por excelência, nos dias de hoje, advogam pela supremacia do indivíduo diante do Estado, ou ainda o colocam na posição de vítima corriqueira do Estado, prontamente os realistas fazem a pergunta: quem vai defender os Direitos Humanos senão os próprios Estados Soberanos?205

De fato, a partir dessa perspectiva, seja sob o prisma histórico (ver a Declaração de

Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) seja sob o prático (em termos de

exequibilidade, por exemplo), os Direitos Humanos convivem em uma relação não- antagônica com a Soberania. Sob essa perspectiva analítica, não há antinomia possível.

No entanto, a proposta aqui é analisar estes dois corpus teóricos a partir de outra abordagem, que em um primeiro momento pensar-se-ia mais teórica, mas que, no exame detido, revela-se igualmente de ordem prática.

Essa abordagem específica parte do pressuposto de que, para compreender os Direitos Humanos e a Soberania, é necessário levá-los às últimas consequências. Isso significa, respeitar os corpus teóricos – levá-los a sério – e tentar descobrir aquilo que é distintivo ou mesmo essencial em cada um deles (abordagem ôntica,

205 Sobre esse aspecto – ainda que esteja longe de se configurar como uma autora realista – Hannah

Arendt destaca: “Os direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como ‘inalienáveis’ porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los”. (ARENDT, 2006, p. 325) Na mesma perspectiva Todorov alerta: “Existe um Direito Universal, escreve no meio do século XVIII Christian Wolff, um dos mais influentes entre esses autores, é ‘aquele que pertence a cada homem enquanto homem’. Obviamente, esses direitos naturais não têm o mesmo estatuto daqueles que gozam enquanto cidadão, já que na ausência de um Estado provido de seu aparelho de justiça nada garante que se possa usufruí-los. Desse ponto de vista, esses direitos universais se aproximam dos princípios morais, que, sem ter uma força restritiva, são sentidos como desejáveis”. (TODOROV, 2008, p. 120- 121)

portanto). Aquilo que, uma vez retirado, faz com que o corpus se desconfigure por completo. Efetuando essa abordagem, encontramos assim a antinomia em carne viva: a antinomia parte da ideia do universal como antinômico ao particular.

Observamos que a proposta do kosmopolites (universal) é antinômica à proposta da cidadania nacional (particular); a proposta universal dos Direitos Humanos, em uma perspectiva cosmopolita, é antinômica à ideia-prática da Soberania territorial. Será a partir desses parâmetros – dessa abordagem definida – que discutiremos.

São parâmetros teóricos, é certo, que no entanto não deixam de encontrar sua concretização, sua determinação material, naquilo que se denomina, há muito tempo, fronteiras nacionais. Falamos, portanto, de território, de fronteiras territoriais, de delimitações. Ou, como prefere Schmitt, de maneira muito mais sofisticada: o nomos da terra (título de seu livro de 1950).

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Excurso: diáspora migratória

Um fenômeno extremamente atual, no qual irrompe a oposição cosmopolita(ismo)

versus nacional(ismo), ou estrangeiro versus nacional (neste caso inexiste o

cosmopolita), é a grande diáspora migratória – sejam os migrantes refugiados políticos ou não 206.

A questão vem à tona na agenda dos organismos internacionais e dos Estados – para não dizer da sociedade civil de maneira geral –, dentre outros motivos, pela sua magnitude. Tendo em conta apenas os valores numéricos: são 190 milhões de imigrantes no mundo hoje, e as remessas feitas por eles constituem, para alguns países, fonte mais que abundante de recursos.207

206 E aqui cabe uma consideração: seria possível tratar os migrantes que saem de seus países para

procurar trabalho e melhores condições de vida em outros países (os de baixo) como refugiados econômicos?

207 “O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que durante 2005 os trabalhadores

estrangeiros enviaram ao menos U$S 180.000 milhões a seus países de origem. Em 2005 chegaram a América Latina e Caribe mais de US$ 54.000 milhões desde o resto do mundo (…).” (TERRY, 2006, p. 91, tradução própria) Essas cifras são extremamente relevantes, pois superam “o total combinado

Os migrantes – bem como, de certa forma, os ciganos – podem ser vistos como um desafio para o Estado Soberano Nacional e seu sistema hermético. Quando os migrantes passam para a categoria de Imigrantes (uma face do migrante – que também pode ser Emigrante), não possuem status de cidadãos mas, tampouco, são considerados como estrangeiros usuais (como é o caso dos turistas, por exemplo). Na órbita jus-geo-política estão de fato e de iure num limiar: não votam no país em que residem, mas são regidos por suas leis e governo. Em outras palavras, não elegem aqueles que os governam. Segundo Bourdieu:

Como Sócrates, o imigrante é atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável. (...) nem cidadão nem estrangeiro, nem totalmente do lado do Mesmo, nem totalmente do lado do Outro, o "imigrante" situa- se nesse lugar "bastardo" de que Platão também fala, a fronteira entre o ser e o não-ser social. (BOURDIEU, 1998, p. 11)

Se a condição política (cidadãos, estrangeiros, ilegais etc.) é incerta, diga-se o mesmo com referência à sua condição identitária ou cultural. Os imigrantes estão no

limiar, representando uma condição mista de “aqui” e “lá”. A condição quase

indiscernível dos imigrantes, seja cultural, seja jurídica, faz saber que eles, muitas vezes, podem sentir-se atopos, não se identificando com a cultura e o direito do país em que vivem e tampouco com a cultura e o direito do país de origem. O aspecto que resulta original nisso tudo, é notar que se por um lado estes seres humanos podem ser vistos como extremamente frágeis, representam, por outro lado, em função de seu simbolismo e de sua existência prática, um desafio às estruturas políticas-emuralhadas. De fato representam, em certo sentido, um desafio ao Estado Soberano208, que, por sua vez, promove atitudes (respostas ao fenômeno migratório)

muitas vezes incoerentes com o discurso e a prática dos Direitos Humanos.

Examinemos dois exemplos recentes. O primeiro é relativo ao USA Patriot Act (26 de outubro de 2001), promulgado na esteira dos atentados do 11 de setembro de 2001, que permite prender e manter preso o estrangeiro suspeito de atividades

de investimento estrangeiro direto e a ajuda exterior para a região”. (TERRY, 2006, p. 91) O Anexo IV mostra uma tabela de remessas em relação ao PIB de alguns países receptores.

208 Se, por um lado, os imigrantes são seres humanos e apenas por esse fato são detentores de

direitos, por outro, são, sob a ótica do Estado, “ilegais” e marginalizados da sociedade. Ainda, sob um terceiro ponto de vista, os imigrantes são necessários economicamente.

terroristas. De acordo com Agamben, a “novidade da ‘ordem’ do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”. (AGAMBEN, 2005, p. 14) Permite-se, assim, a suspensão de Direitos Humanos básicos consagrados naquele país desde o século XVIII.

No entanto, seria possível arguir que esse exemplo estaria inserido em um contexto