• Nenhum resultado encontrado

Vimos que o intuito deste capítulo é procurar, de maneira sucinta, o nascimento da

Soberania, seus contornos teóricos e sua história. Ou seja, sua base genética. Em

seguida, trata-se de atualizá-la com base naquilo que podemos chamar de sua maior revolução, ou de sua primeira grande revolução histórico-conceitual: a mudança da Soberania de cunho divino-real para a Soberania de cunho popular. Qualquer pesquisador da Soberania deve observar a grandeza dessa mudança paradigmática, fonte, no mundo de hoje, da moral e hábitos políticos constitucionais e da ideia democrático-contemporânea, entre outros.

A fim de sistematizar este capítulo, antes de concluí-lo, sugerimos os seguintes sete pontos como cruciais para o entendimento da Soberania:

1) A dupla política moderna: Estado-Soberania.

Os Estados modernos nascem ligados à ideia-prática da Soberania. Esta passa a ser uma característica central do Estado. Mais que isso, a Soberania torna-se uma espécie de essência do Estado (a alma do Estado, segundo Hobbes).192 Na modernidade, não é possível compreender o Estado sem Soberania e vice-versa.

191 Concorda Goyard-Fabre: “Ao resumir para Émile as teses principais do Contrato Social, Rousseau

escreve: 'Examinaremos se é possível que o povo se despoje de seu direito de soberania para com ele revestir um ou vários homens'. Desde Grotius, a questão é clássica. Todos os jurisconsultos da Escola do direito natural, Pufendorf, Barbeyrac, Burlamaqui, Jurieu, etc. admitam que, originariamente, a soberania pertence ao povo. Mas, nas perspectivas contratualistas da teoria jusnaturalista deles, 'desde que um povo transferiu seu direito a um Soberano, não se poderia supor, sem contradição, que ele continua a ser seu senhor'. Diante de tal afirmação, Rousseau se indigna: na política assim concebida, é sempre possível 'despojar os povos de todos os seus direitos para com eles revestir os reis com toda arte possível'. No Estado do contrato, a soberania do povo como corpo coincide com a vontade de um ‘ser coletivo’ que ‘só pode ser representado por si mesmo’”. (GOYARD-FABRE, p. 181, o grifo é meu)

192 A diferenciação que fazemos de uma simples característica para uma essência reside na noção de

que uma característica pode, mais do que uma essência, ser retirada de seu ente referencial sem desfigurá-lo. Ou seja: a essência se configura como uma parte fundamental do ser em referência; retirando a essência de uma coisa, esta será ou desconfigurada totalmente ou “morrerá” enquanto

coisa. No nosso caso, queremos dizer que o Estado só pode ser conhecido ou entendido, enquanto ser, tendo em conta a Soberania, como marca central e constitutiva de seu ser.

2) Soberania do Estado absolutista, de legitimidade divina

O nascimento da Soberania moderna deu-se no contexto do nascimento e cristalização dos Estados absolutistas, resguardados pela noção de legitimidade divina. O Soberano era entendido e representado como imago Dei.

3) Absolutismo, centralização, direito e controle dos “seus”

O Estado soberano absolutista foi marcado, predominantemente, por uma centralização administrativa no âmbito do reino (autoridade e competência, principalmente no que tange ao exercício legislativo). O reino, por sua vez, foi responsável pela execução de um crescente controle do interno: pessoas e coisas estavam diretamente referenciadas/controladas pelo direito-força do reino.

4) Soberano-particular versus Igreja-universal

Uma das características centrais da Soberania, comumente exemplificada pelo paradigma-Westphália, situa-se na emergência de um poder particular soberano tendo mais valor do que o poder universal da Igreja. Em outras palavras, o poder temporal e particular do Rei se sobrepõe ao poder espiritual universal do Papa.

Cuius regio, eius religio.193

5) Igualdade soberana, direito internacional e anarquia internacional

A Soberania moderna inaugurou um novo sistema internacional pautado pelo status de igualdade entre todos os entes soberanos; essa igualdade encontra respaldo na expressão latina suprema potestas superiorem non recognoscens. Destarte, a Soberania serviu de embrião para a formulação do Direito Internacional Público e possibilitou o diagnóstico realista das relações internacionais e da anarquia

internacional.194

193 Schmitt explica que: “Materialmente esta frase responde à realidade do Estado europeu que

estava surgindo a partir do século XVI, e cujo direito mais importante era, em todas partes, o ius

reformandi, ou seja, a determinação da religião estatal e da Igreja estatal”. (SCHMITT, O nomos,

2002, p. 109-110, nota n. 64)

194 A expressão “anarquia internacional” é amplamente utilizada pelos autores que tratam das

relações internacionais e quer dizer, simplesmente, que os Estados soberanos vivem num “estado de natureza”, isto é, não encontram nem reconhecem poder superior a si mesmos. Portanto, encontram- se, em última instância, em um estado “sem direito vinculante” e sem “ordem”; anárquico. Para uma perspectiva introdutória e clássica sobre a questão ver Raymond Aron, Paix et Guerre entre les

6) Guerra

Por fim, a guerra se cristalizou como fenômeno dos Estados soberanos. Os Estados detêm o monopólio de declarar e fazer guerra.

7) Soberania popular

Rousseau e a Revolução Francesa195 podem ser considerados os referenciais

históricos e teóricos do início de uma nova Soberania: a soberania popular, que se caracteriza, principalmente, por modificar a titularidade ou a residência da soberania. A Soberania passa a residir no povo/nação, e não mais no príncipe. O povo torna-se a fonte e o depositário do sumo poder.

A soberania territorial

Conquanto nenhuma das obras estudadas (Bodin e Hobbes, respectivamente, Les

Six Livres... e O Leviatã...), trate de modo específico – em suas definições sobre

Estado, República ou Soberania – a questão territorial, cabe ressaltar que esse “elemento” era constitutivo de seus pensamentos.

Claro está que as ideias de fronteira territorial e de soberania territorial moderna só iriam aparecer de modo mais intenso na criação dos Estados absolutistas, consolidando-se após a paz de Westphália e completando sua hegemonia política com os Estados modernos organizados depois das revoluções americana e francesa. Porém, a preocupação política com as fronteiras já ocorrera de longa data na chamada civilização ocidental: desde as cidades-Estado da Grécia Antiga, passando por Roma (Republicana e Imperial) e as cidades fortificadas da Idade Média.

Ao menos em duas obras de Carl Schmitt – Terra e Mar e O nomos da terra... – é possível observar a relação do homem com o espaço político, em seu intuito e exercício de delimitar as fronteiras territoriais. No livro O nomos da terra, o autor recorda, por exemplo, as divisões territoriais dos séculos XV e XVI que repartiram o

Novo Mundo, fundamentais para a compreensão de uma nova “ordem” internacional e de um direito internacional.

Enfim, se o território não aparece como uma das preocupações centrais do pensamento de Bodin e Hobbes, talvez seja porque essa não era uma questão emergencial, como o eram, por exemplo, as questões da autoridade, do direito

centralizado, da obediência, da unidade, do mando e da decisão.

Nesse sentido, Afonso Arinos, em uma breve passagem de seu livro-tese sobre a influência do índio brasileiro na Revolução Francesa, reflete sobre as “demarcações de fronteira” que estavam em voga nessa época. Diz ele que “o grande esforço se concentrava na demarcação de fronteiras sempre vagas e confusas, que deveriam separar o poder espiritual do temporal”. (FRANCO, 1937, s/d, p. 48) De acordo com nossos estudos, a afirmação é pertinente. A grande batalha política do final da Idade Média, em termos de legitimidade e busca de hegemonia (da forma sócio- organizacional e de direito), se situava na demarcação do poder temporal em contraposição ao espiritual.

Não obstante, dentre todas as questões suscitadas ao longo deste capítulo – atinentes a essa grande disputa política medieval (legitimidade, exercício da força e do direito, autoridade, unidade etc.) – qual delas não pressupõe, em termos históricos e práticos, um território definido?

Nas bases da disputa entre o poder temporal e espiritual estava posta, indubitavelmente, a questão do nomos, do ordenamento espacial, do ordenamento juspolítico do território.

Nesse sentido, como oitavo ponto crucial para o entendimento da Soberania, é mister realçar as fronteiras territoriais. A Soberania não pode ser vista, nem entendida, senão no e a partir do território. Fundamentaremos melhor essa apreciação no próximo capítulo da tese, pois é através dela que constituiremos as antinomias.

CAPÍTULO IV

Universal e Particular, Cosmópolis e