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Com “moderna” queremos dizer que a Soberania é, em primeiro lugar, do Estado. Frise-se: não de qualquer Estado, mas de um Estado que, em termos de poder,

não se submete a qualquer outra autoridade (não encontra outro superior,

encontra, no máximo, pares). Essa característica fundamental do Estado Soberano nasceu, obviamente, num contexto histórico que devemos mais uma vez precisar: quando se defendia que “o Estado não reconhece outra autoridade superior a si

medievais somente prepararam de um jeito mais ou menos vago a noção moderna de Soberania”. (MARITAIN, 1950, p.348)

mesmo” tinha-se em vista, principalmente, a autoridade do Sacro Império e do Vaticano. Assim, o Estado-Soberano-moderno nasce contrapondo-se a essas duas autoridades. Mais ainda, o qualificativo “moderno” implica afirmar que esse Estado, diferentemente dos “Estados” medievais, é territorialmente definido.

Essas características da Soberania moderna levaram a que – e este é um elemento fundamental para a disciplina das Relações Internacionais – os Estados se encontrassem em uma posição de igualdade soberana. Já que os Estados não reconheciam nenhum superior sobre si (summa potestas superiorem non

recognoscens), as relações internacionais europeias acharam-se num estado de

anarquia internacional.

A passagem emblemática de Hobbes sobre a tão famosa “anarquia internacional” das relações internacionais encontra-se no Leviatã:

For as amongst masterlesse men, there is perpetual war, of every man against his neighbour; no inheritance, to transmit to the Son, nor to expect from the Father; no propriety of Goods, or Lands; no security; but a full and absolute Libertie in every Particular man: So in States, and Common-wealths not dependent on one another, every Common-wealth, (not every man) has an absolut Libertie, to doe what it shall judge (…) most conducing to their benefit. But withall, they live in the condition of a perpetual war, and upon the confines of battel, with their frontiers armed, and canons planted against their neighbours round about. (HOBBES, 1651, 2007, p. 149)156

156 Outros autores como Kant (ver o capítulo IV desta tese, item “A construção do cosmopolitismo em

Kant”) e Hegel partem da mesma compreensão sobre o fenômeno. Hegel apresenta a mesma ideia, com outras palavras: “O princípio fundamental do direito internacional (...) é que os tratados, enquanto sobre eles repousam as obrigações dos Estados uns para com os outros devem ser respeitados. Mas porque as relações entre eles têm por princípio a sua soberania, eles estão uns para com os outros, nessa medida, no estado de natureza, e os seus direitos têm a sua realidade efetiva não numa vontade universal constituída em poder acima deles, mas na sua vontade particular”. (HEGEL, s/d, p.139) É interessante notar, trazendo a discussão para a área de relações internacionais, que Hans Morgenthau (A Política entre as Nações, 2003), reproduz a mesma diretriz hegeliana, a qual citamos para comparação: “No fundo, o direito internacional representa um tipo primitivo de legislação (...) porque é quase que completamente descentralizado.

Essa natureza descentralizada do direito internacional é o resultado inevitável da estrutura descentralizada da sociedade internacional. A legislação nacional pode ser imposta pelo grupo que detém o monopólio da força organizada, isto é, pelas autoridades do Estado. Já no caso da sociedade internacional, que é composta de Estados soberanos, os quais, por definição, constituem as autoridades supremas dentro de seus respectivos territórios, uma das características essenciais consiste na circunstância de que não pode haver tal autoridade central que dita as leis e as faz cumprir. As normas de direito internacional devem sua existência e operação a dois fatores, ambos de natureza descentralizada: interesses dos Estados individuais idênticos ou complementares e distribuição de poder entre eles. Onde não existirem nem comunhão de interesses nem equilíbrio de poder, não haverá direito internacional”. (MORGENTHAU, 2003, p 509-510)

Soma-se a todas as características supracitadas uma última: a guerra só pode ser executada pelos Estados soberanos (a guerra passa a ser um monopólio estatal). E mais, além de a guerra ser um monopólio do Estado, ela passa a ser sempre legitima, pois tem origem no interesse nacional. Este é o entendimento, por exemplo, de Carl Schmitt, para quem uma das mudanças fundamentais – e que está na origem do Direitos das Gentes moderno – reside no fato de que os Estados soberanos se tornam iusti et aequales hostes: em toda guerra entre Soberanos, exclui-se a figura do “delinquente criminal” e, por conseguinte, a doutrina medieval da guerra justa.157

Essas características, que definem em grande medida o vir-a-ser da Soberania moderna, estão, de uma forma ou de outra, presentes nas duas obras clássicas da filosofia política sobre o tema: Les Six Livres de la République, de Jean Bodin (1576), e o Leviathan Or The Matter, Forme and Power of A Commom Wealth

Ecclesiastical and Civil, de Thomas Hobbes (1651). Dezenas ou, quem sabe,

centenas de livros e artigos interpretativos e de comentários foram escritos sobre esses dois autores e suas obras fundamentais para a Política e a Ciência Política. Interessa-nos, mais do que nos atermos a uma discussão hermenêutica especializada, destacar as ideias-chave dos autores sobre a Soberania (ainda que isso já tenha sido feito, repito, pelos mais variados intérpretes e comentadores), com vistas à construção de nossas antinomias.

157 Para Schmitt, os primeiros teóricos do Direito das Gentes moderno são Baltasar Ayala e Alberico

Gentille (com tratados de 1582 e 1588, respectivamente), ainda que reconheça o papel dos juristas franceses, “encabeçados por Jean Bodin, foram os primeiros a formular as definições convincentes (...) sobre o Estado soberano”. (SCHMITT, 2002, p. 107)

A imagem ilustra um momento em que se percebe a hierarquia do poder espiritual (Igreja) sobre o poder temporal: Carlos Magno está sendo coroado pelo papa Leão III na catedral de São Pedro em Roma. Note-se que o futuro imperador vai a Roma para ser coroado e ajoelha-se para ser legitimado no trono. Miniatura do ano de 1460, Grandes Chroniques de France. Paris, Bibliothèque Nationale de France. A esse respeito, Kritsch escreve, referindo-se aos interesses dos monarcas: “O caráter sagrado conferido aos imperadores pela unção do papa interessava também aos monarcas, pois os colocava acima do povo: cada governante passava a ser qualificado como Rex gratia dei. Ou seja, com a unção, os reis recebiam diretamente de Deus o benefício de estar acima do povo para nele mandar e para governá-lo.” (KRITSCH, 2002, p. 67)

Fonte: Walter, Ingo e Wolf, Norbert, Códices ilustres – os manuscritos mais belos do mundo – desde

Jean Bodin

(...) esse comando supremo em que reside o princípio da república e que Aristóteles chamou de poder político supremo ou autoridade suprema, os italianos, senhoria e nós, soberania, enquanto os latinos empregaram o termo summa rerum e summum imperium. Uma vez que esse ponto seja esclarecido, muitas questões obscuras e difíceis referentes ao governo serão resolvidas. Entretanto, Aristóteles passou em silêncio sobre ele, seguido pela totalidade dos autores políticos. (Bodin, Método VI, apud BARROS, p. 200)

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Excurso: a Soberania é moderna ou se descobre na modernidade?

Essa frase de Bodin – epígrafe anterior –, presente no Método (Methodus ad facilem

historiarum congnitionem, 1566), anuncia sua preocupação e programa de pesquisa

sobre a Soberania. Mais ainda, abre as portas para uma pergunta de difícil resolução. Naquela frase Bodin mostra a Soberania como algo dado e que “sempre”

existiu.

Já existia a Soberania na Grécia Antiga? Já existia em outras sociedades, precisando então, tão-somente, ser descoberta? Devido à clareza de seu entendimento, Bodin nos aproxima de uma pergunta histórica: será que a Soberania já existia enquanto forma última e/ou decisiva de poder? Será ela apenas uma

descoberta da modernidade? Não haverá nada de inventivo, de novo, na Soberania

que Bodin descobre e que outros autores irão descobrir ainda mais? Ou seja, Bodin e outros autores não criam a Soberania, não a inventam? (com isso está claro que queremos dizer que os autores estão imersos em seus contextos históricos e, de certa forma, representam a inventividade e a criatividade da época). Afinal, a Soberania é moderna ou é descoberta na modernidade?

Ao fim e ao cabo, o que parece mais prudente, de modo ligeiro, é responder de forma afirmativa às duas questões, não havendo oposição entre elas (ou isto ou

aquilo). A Soberania foi descoberta na modernidade e ao mesmo tempo nasceu na

modernidade. Foi, sem dúvida, aplicada na modernidade como uma das formas mais determinantes da sociedade política, repercutindo, vale ressaltar, no modus

vivendi coletivo e individual dos indivíduos. Em síntese (paradoxal): a Soberania

moderna é uma criação do já criado.

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Se Bodin anunciou um amplo programa de pesquisa no Método158, foi no Les Six

Livres de la République, de 1576, que o autor concretizou a parte destinada à

Soberania. Este livro é considerado por muitos como uma obra capital que marca o início da teoria da Soberania (GALA, 2006; SCHMITT, 2002; SABINE, 2004; HELLER, 1995; BARROS, 2001)159.

No Livro Primeiro, capítulo VIII, “Da Soberania”, o jurista francês define assim a Soberania: “A soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma república”. (BODIN, 1576, 2006, p. 47, tradução própria) Ao que devemos agregar outra frase que Bodin escreve logo em seguida: “A soberania não é limitada, nem em poder, nem em responsabilidade, nem em tempo”. (BODIN, p. 47)160

Com soberania perpétua o autor quer dizer que ela não é “limitada em tempo”. Bodin faz a distinção entre o poder depositário, de quem exerce o poder absoluto por um curto período de tempo, e o poder soberano, isto é, o verdadeiro poder soberano. A diferença reside no fato de que a pessoa que detém o poder depositário pode perder esse poder, logo, não pode ser soberana. A ideia de poder depositário significa que este é passível de ser-lhe retirado a qualquer momento pelo príncipe ou pelo povo (por aquele que detém o poder perpétuo). Assim, o depositário, que

158 “O Método é uma obra de grandes voos, na qual já encontramos formulado o ambicioso programa

de trabalho que Bodin dedicaria toda sua vida a desenvolver. Pretende ser uma revisão crítica de toda a historiografia e, ao mesmo tempo, trata de organizar adequadamente os materiais históricos disponíveis para uma melhor utilização por parte do historiador. A história – em seu triplo plano: humana, natural e sagrada – tem sentido apenas na medida em que nos proporciona os esquemas universais com os quais se fundamenta uma ciência compreensiva da sociedade. Trata-se, em definitivo, de criar um sistema de Direito universal que permita compreender e organizar a vida do homem em sociedade.” (GALA, 2006, p. XVIII, tradução própria)

159 Todas as obras citadas dão um excelente panorama sobre o pensamento de Bodin, em especial

sobre Os seis livros da República.

160 Utilizaremos a partir deste momento a mesma referência de Bodin (2006) para todas as citações,

exerce temporalmente o poder absoluto, não pode ser chamado soberano, visto que este se reveste da qualidade de perpétuo.161

Sobre o caráter do poder absoluto da Soberania, Bodin é contundente ao afirmar que o “poder é absoluto e soberano, porque não está sujeito a outra condição senão a de obedecer o que a lei de Deus e a lei natural mandem”. (BODIN, p. 52) E esse é exatamente o ponto nevrálgico em que Heller se apoia para criticar os propagadores da ideia de que a Soberania bodiniana não tem limites como poder supremo (HELLER, 1995). Para Heller, “de nenhuma maneira o soberano de Bodin é ilimitado”. (HELLER, 1995, p. 82)162

Mas se Bodin qualifica a soberania de “ilimitada”, como pode ser ela ao mesmo tempo “limitada”? Podemos interpretar esse ponto como uma contradição do pensamento do autor? Preferimos um outro caminho. Parece ser mais justo dar menos atenção às frases isoladas do que ao conjunto e ao desenrolar de suas ideias. Nesse sentido, destaca Barros (também citando Bodin):

Numa sociedade política, ter poder absoluto significa estar acima das leis civis: “Aquele que melhor compreendeu o que é poder absoluto disse que não é outra coisa senão a possibilidade de revogar o direito positivo” (República I, 8, p. 193). Por ter a missão de proteger e governar a República, o detentor da soberania deve possuir o poder de criar e corrigir as leis civis de acordo com as circunstâncias, podendo alterá-las e derrogá-las conforme sua vontade. (BARROS, 2001, p. 237)163

161 A interpretação de Alberto Barros sobre o tema é a que segue: “O adjetivo perpétuo indica a continuidade que o poder deve ter ao longo do tempo. Se tiver uma restrição cronológica, por mais amplo que possa ser, não pode ser considerado soberano. Trata-se da afirmação do princípio de continuidade temporal do poder público. Os juristas medievais já haviam proclamado a propriedade imortal da pessoa do rei com expressões como “o rei não morre jamais” (...), desviando a atenção da inevitável ordem da natureza física, do corpo material do rei, para se fixar no caráter metafísico da realeza, que sempre permanece”. (BARROS, 2001, p. 234)

162 Heller cita Bodin a esse respeito: “Se dissermos que tem poder absoluto quem não está sujeito às

leis, não se encontrará no mundo um único príncipe soberano, visto que todos os príncipes da terra estão sujeitos às leis de Deus e da natureza e a certas leis humanas comuns a todos os povos”. (BODIN, p. 52, usamos nossa referência)

163 A referência utilizada por Barros para a obra de Bodin é: Les Six Livres de la République, 6 vols.

Barros efetua a necessária relação do poder absoluto com a dimensão do “direito positivo” ou das “leis civis”164. Nesse âmbito de análise, o poder absoluto é ilimitado e não encontra nenhum poder superior a ele. Ao mesmo tempo, olhando de outra perspectiva de análise, o poder absoluto é limitado, tendo em conta os desígnios de Deus, as leis divinas e naturais.

A opção, portanto, pela avaliação sistemática do pensamento de Bodin permite concluir que não há contradição em relação ao tema. O poder absoluto da Soberania é, ao mesmo tempo, a partir de distintas perspectivas analíticas, ilimitado e limitado. Citamos dois exemplos claros sobre o caráter ilimitado e limitado do poder absoluto, respectivamente, na República de Bodin:

1- É necessário que quem seja soberano não esteja de modo algum submetido ao império de outro e possa dar leis aos súditos e anular ou emendar as leis inúteis; isso não pode ser feito por quem está sujeito às leis ou a outra pessoa.

2- Com relação às leis divinas e naturais, todos os príncipes da terra estão sujeitos a elas e não têm poder para contrariá-las, se é que não querem ser culpados de lesa-majestade divina, por fazer guerra a Deus, que sob sua grandeza todos os monarcas do mundo devem unir-se e inclinar a cabeça com todo temor e reverência. (BODIN, p. 52-3)

Observe-se outro elemento relevante do pensamento de Bodin acerca do poder absoluto da Soberania: sua relação com o direito.165 O poder absoluto deve ser

visto, essencialmente, como parte de um pensamento e prática jurídicos. O poder absoluto está sempre em referência às leis; civis (do direito positivo), divinas e naturais.

No Livro Primeiro, Capítulo X (“Dos verdadeiros atributos da soberania”), Bodin revela essa relação intrínseca entre Soberania e direito:

164 Segundo Barros, sobre o Methodus ad facilem historiarum congnitionem (Methode pour la

connaissance facile de l`histoire, Tradução de Pierre Mesnard, in: Oeuvres Philosophiques de Jean Bodin, Paris, PUF 1951), de Jean Bodin, a lei civil “regula as relações entre várias famílias (...) [e

está] dividida em três partes: o comando (imperium), a deliberação (consilium) e a sanção (executio)". (BARROS, 2001, p. 233)

165 Também Heller: “Desde Bodin, a essência da soberania consiste em Jubendae ac tollendae leges

summa potestate (o supremo poder de promulgar e derrogar as leis). Bodin entendeu claramente o

problema”. (HELLER, 1995, p. 127, tradução própria). Ainda, Heller faz a crítica a Schmitt nesse sentido. Segundo o autor, Schmitt tenta fazer com que a teoria da soberania de Bodin esteja mais ligada ao estado de necessidade do que ao âmbito legislativo (HELLER, 1995, p. 157).

O primeiro atributo do príncipe soberano é o poder de dar leis a todos em geral e a cada um em particular. Mas com isso não se diz bastante, ao que se precisa agregar: sem consentimento de superior, igual ou inferior. (BODIN, p. 74)

E mais adiante completa:

Sob esse mesmo poder de fazer e anular a lei, estão compreendidos todos os demais direitos e atributos da soberania, de modo que, dizendo com propriedade, pode dizer-se que só existe esse atributo da soberania. (BODIN, p. 75)

A Soberania, que aparece na primeira definição como um duplo poder (perpétuo e absoluto), emerge como legisladora. Note-se que a força física não aparece explícita. O que aparece, de forma límpida e repetidamente, é sempre a lei e a atividade legislativa.

Vinculada à prerrogativa legislativa do soberano, aparece a possibilidade de declarar guerra: “(...) declarar guerra ou negociar a paz, um dos aspectos mais importantes da majestade, já que, muito frequentemente, isso pode acarretar a ruína ou a segurança do Estado (...)”. (BODIN, p. 76)

O último elemento digno de menção acerca do pensamento bodiniano no que tange à Soberania diz respeito a seu caráter religioso. Alerta-nos Gala que seria incauto tentar compreender Bodin sem perceber que o autor está imbuído de preceitos cristãos166:

(...) o fim da república deve levar ao supremo bem da virtude, mediante o qual os súditos e os príncipes se religam a Deus, já que não se deve esquecer que “o único fim de todas as leis humanas e divinas é conservar o amor entre os homens e destes a Deus”. (Rep. III, 7) (GALA, 2006, p. XXX, tradução própria)

A religiosidade de Bodin faz dele um pensador medievalista. Entretanto, a sua definição da Soberania – como uma autoridade soberana legisladora e que não

166 “Pese a tudo, a religião é um tema de primeira importância na república, e sua filosofia política

seria mal entendida se não tomássemos em consideração seus fundamentos religiosos. Com efeito, a religião é para Bodin o principal fundamento da república (...).” (GALA, p. XXIX, tradução própria)

encontra nenhum poder acima de si – o torna um pensador moderno. Pode-se afirmar, portanto, que Bodin é um pensador que reflete a transição de um mundo medieval – religioso – para um mundo moderno – laico, nacional.167

Ainda tratando sobre a modernidade de Bodin, é preciso dizer que os fundamentos religiosos a que mesmo o príncipe soberano está submetido (e por isso está limitado) não se traduzem em uma necessária obediência do soberano à Igreja.168 O

soberano, como imago Dei, presta contas diretamente ao reino dos Céus, sem passar pelo intermediário-papa.

Thomas Hobbes

O pensamento de Hobbes revela-se um verdadeiro sistema complexo moderno. Sistema pois, desde um ponto de vista científico, é “intelectualmente organizado” (HOUAISS, 2001, p. 2585), sua estrutura de pensamento, materializado na escrita, busca sempre uma ordem, um todo-lógico. Esta ordem, este sistema, se realiza e pode ser notado no Leviatã, por exemplo, pelo “conjunto de ideias logicamente solidárias, consideradas nas suas relações”. (HOUAISS, 2001, p. 2585)

Com moderno, arriscamos dizer que a ordem-sistemático-lógica, sempre exemplificada pelas obras de Aristóteles, é acrescida, em primeiro lugar, de uma racionalidade desvinculada – ou buscando se desvincular – do divino. Ou seja, o fundamento da sociedade não é apenas um amálgama insolúvel pautado pelo grande Deus ou pelo Cosmos. O fundamento da sociedade pode ser encontrado

167 A esse respeito, Goyard-Fabre comenta: “(...) Bodin conjuga, no direito político, a preocupação

humanista que o orienta para o pensamento moderno com um naturalismo profundo que colhe seu alento na metafísica tradicional na qual ele próprio é pautado pelo teologismo". (GOYARD-FABRE, 2002, p. 25) E Gala, em seu estudo introdutório à edição Tecnos do Seis livros... de Bodin, cita Schmitt: “Por isso, pode-se afirmar, como o fez Carl Schmitt, que em Bodin confluem os dois momentos – teológico e racionalista – que servem para diferenciar a Idade Média da Moderna”. (GALA, 2006, p. XXXI).

168 Segundo Barros: “(...) isso não implica uma sujeição à autoridade eclesiástica. O soberano é

considerado totalmente livre e independente, inclusive diante do sumo pontífice. Se o seu poder vem de Deus, ele não necessita de um intermediário que lhe traduza a vontade divina (...)”. (BARROS, 2001, p. 247)

nele próprio e nas características individuais-coletivas do Homem; este torna-se um sujeito fundador da sociedade. Ainda, essa desvinculação ontológica de Deus é influenciada pelas emergentes ciências naturais, em especial a física mecanicista – ou nasce conjuntamente a elas. 169

Em segundo lugar, acresce-se um componente histórico importante. Conforme já evidenciado, estamos a observar uma transição do mundo medieval ao mundo moderno: a corrida para a centralização do poder monárquico, o desenvolvimento das cidades e a grande disputa teórica e prática da religião cristã (para citar três fenômenos). Uma das perguntas-chave da época para os autores políticos, por conseguinte, deveria ser: como pensar uma sociedade coesa, unificada, nos marcos da realidade vivida (com seu passado e diversos projetos, ainda que não acabados, de futuro)? 170

Soma-se a isso a perspectiva individualista presente na teoria de Hobbes, outra relevante marca de sua modernidade. “Hobbes atribui ao indivíduo o estatuto