• Nenhum resultado encontrado

É justo dedicar algumas linhas ao legado inglês para com os Direitos Humanos de cunho moderno. Não há dúvidas de que a Lei de Habeas Corpus de 1679 e a

Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689 são peças decisivas para a

construção desses direitos.

No que tange ao Habeas Corpus, a grande contribuição da lei foi abrir caminho para que os direitos subjetivos (direitos do indivíduo face à dimensão pública) se tornassem efetivamente protegidos em termos jurídicos e respeitados. Em relação ao Bill of Rights, podemos dizer que as maiores contribuições foram: a) cristalizar a existência de direitos, que devem ser respeitados pelo Estado, e b) que esses derivam legitimamente do Parlamento, o que se contrapunha às teorias absolutistas. Ambos, consequentemente, fortaleciam a moral do indivíduo, a valorização deste em si mesmo e em relação ao poder do Estado-instituição.

A Lei de Habeas Corpus de 167930 instituiu o direito de uma pessoa ser protegida em face do poder público, ter direito a um julgamento e poder ser levada à presença de autoridade judicial quando de uma prática ou possibilidade de prática arbitrária da força.31 Este direito foi consagrado, e criou, de forma direta, óbices ao poder real, no

que tange a prender e manter presas pessoas sem os devidos processos judiciais. Nesse sentido, o Habeas Corpus nasceu como dupla contribuição aos Direitos Humanos: revelou uma nova moral assim como trouxe uma nova prática institucional; registrou-se como um direito individual, ou subjetivo – ou do “corpo humano”, segundo Agambem32 – e, ao mesmo tempo, pôs travas ao poder real33.

30 No original: “An act for the better securing the liberty of the subject, and for prevention of

imprisonments beyond the seas”.

31 “Tal como ocorria no direito romano, o direito inglês não concebe a existência de direitos sem uma

ação judicial própria para a sua defesa. É da criação dessa ação em juízo que nascem os direitos subjetivos, e não o contrário.” (COMPARATO, 2006, p. 85)

32 “O primeiro registro da vida nua como novo sujeito político já está implícito no documento que é

unanimemente colocado à base da democracia moderna: o writ de Habeas Corpus de 1679. Seja qual for a origem da fórmula, que é encontrada já no século XIII para assegurar a presença física de uma pessoa diante de uma corte de justiça, é singular que em seu centro não esteja nem o velho sujeito das relações e liberdades feudais, nem o futuro citoyen, mas o puro e simples corpus.” (AGAMBEM, 2004 p. 129)

A Declaração de Direitos, Bill of Rights34, por seu turno, foi aprovada pelo

Parlamento inglês em 1689 e declarado como lei fundamental pelo rei Guilherme de Orange.35 José Galiano sublinha a importância do Bill of Rights destacando alguns elementos de ruptura com a velha ordem, dentre os quais cabe ressaltar a independência dos poderes e a supremacia do Poder Legislativo/Parlamento em relação ao poder real. 36 Como se observa diretamente no texto original do Bill of

Rights:

(…) That the pretended Power of suspending of Lawes or the Execution of Lawes by Regall Authority without Consent of Parliament is illegall

That the pretended power of dispensing with Lawes or the Execution of Lawes by Regall Authority as it hath been assumed and exercised of late is illegall. 37

33 Destacamos a seguinte passagem: “That whensoever any person or persons shall bring any

habeas corpus directed unto any sheriff or sheriffs, gaoler, minister or other person whatsoever, for

any person in his or their custody, and the said writ shall be served upon the said officer, or left at the gaol or prison with any of the under-officers, under-keepers or deputy of the said officers or keepers, that the said officer or officers, his or their under-officers, under-keepers or deputies, shall within three days after the service thereof as aforesaid (…) and bring or cause to be brought the body of the party so committed or restrained, unto or before the lord chancellor, or lord keeper of the great seal of

England for the time being, or the judges or barons of the said court from which the said writ shall

issue, or unto and before such other person or persons before whom the said writ is made returnable, according to the command thereof; (4) and shall then likewise certify the true causes of his detainer or imprisonment (…)”. Act of Habeas Corpus. In: http://www.constitution.org/eng/habcorpa.htm

34 O Bill of Rights foi resultado de um processo longo e controverso na história inglesa. A tensão mais

aguda surgiu com a demanda do Parlamento ao rei Carlos I. Segundo Mondaini, as demandas eram de quatro “espécies”: “quatro espécies de exigências são apresentadas: destruição da máquina burocrática, proibição de um exército permanente controlado pelo rei, abolição da cada vez maior carga tributária e controle parlamentar da Igreja”.(MONDAINI, 2003, p. 125). Carlos I foi incapaz de negociar e iniciou-se a Guerra Civil em 1642. Depois disso surge um “contrapoder” liderado por Oliver Cromwell (ele criou o New Model Army, um exército que, segundo Mondaini foi “revolucionário”, pois instituiu o principio do “mérito” para a promoção de cargos em vez do tradicional critério de “nascimento”). O exército “de” Cromwell vence o exército real e, em 1649, executa Carlos I. Assim, e depois de várias idas e vindas, é somente em 1688 que a Revolução Gloriosa coloca em marcha, de uma vez por todas, a monarquia constitucional de matriz liberal. Um de seus símbolos: o Bill of Rights cujo nome completo e oficial foi An Act Declaring the Rights and Liberties of the Subject and Settling

the Succession of the Crown.

35 Mais uma vez a eterna questão: se a lei limita o Rei, por que este deve torná-la legal (com sua

chancela)?

36 “(...) el principal símbolo jurídico de un nuevo orden, basado en una efectiva independencia de los

poderes del Estado, que transformó al Parlamento en el verdadero poder legislativo del Reino, consolidó la autonomía de los tribunales y circunscribió el poder real al ámbito de las funciones ejecutivas.” (GALIANO, 1996, p. 148)

37 Bill of Rights, National Archives, UK. In:

Dessa forma, a experiência inglesa do século XVI introduziu em seu sistema

juspolítico, bem como em sua cultura, certas premissas atinentes aos Direitos

Humanos ainda bastante atuais no mundo de hoje (principalmente no que tange as democracias ocidentais). 38 A importância do Direito – como ordenador da sociedade

–, a importância do Parlamento – como representante supremo dos atos legislativos –, o respeito aos direitos subjetivos, a previsibilidade das normas, o Habeas Corpus, entre outros, se constituíram em um legado de inestimável valor para a filosofia e a prática jurídica dos Direitos Humanos modernos.