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Como destaca Villey (obra e trecho citados), o lema da Revolução Francesa, Liberté,

Égalité e Fraternité, pode ser visto como a trindade revolucionária que substitui a

trindade teológica da Igreja Católica.

Visto que no capítulo I já tratamos da Liberdade e Igualdade enquanto propostas políticas revolucionárias e enquanto direitos que foram sendo positivados ao longo dos tempos (em consequência, principalmente, das revoluções americana e francesa), cumpre agora analisar a palavra-ideia “Fraternidade”.

Note-se, em primeiro lugar, que as concepções de Liberdade e Igualdade são mais fáceis de serem materializadas enquanto direitos. Se pensarmos unicamente da perspectiva dos Direitos Humanos, os direitos de liberdade foram conquistas das revoluções. E os direitos de igualdade (pensando nesse momento no “coletivo” e na influência socialista e deixando de lado a perspectiva liberal, tratada anteriormente) foram sendo conquistados através primeiramente do voto universal (direito político) e posteriormente dos direitos sociais, que só se efetivaram de maneira contundente enquanto direito positivo principalmente após a Segunda Guerra Mundial.

68 Ou com laços sanguíneos. Tendo como parentes cidadãos nacionais.

69 Sobre a Nação, uma quantidade imensa de autores tentou decifrá-la ou defini-la. Em termos

modernos, duas são as grandes correntes explicativas. Uma, mais antropológica, ou romântica, define a nação em termos também conhecidos como étnicos. Ou seja, através de uma língua e costumes comuns, território e história comuns etc. A segunda corrente explicativa trata a Nação como um conjunto de pessoas, uma comunidade, ligada a um Estado. Essa segunda definição defende que só existe uma Nação quando existe um Estado ligado à ela. A polêmica da Nação é particularmente difícil devido a que, no Direito Internacional do pós-Primeira Guerra Mundial, tomou-se como entendimento que a existência de uma Nação equivaleria a um pleito justo por um Estado. Esta lógica – baseada no princípio consagrado da autodeterminação dos povos – possibilitou a realização de uma série de guerras no mundo. Para uma introdução à discussão sobre Nação destacamos: Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, 1996 e Eric Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780 – programa, mito e realidade, 1998.

Se pensarmos de uma perspectiva filosófica, a Igualdade também pode ser vista como uma das bases de sustentação dos Direitos Humanos, que, na época das revoluções, eram entendidos também como direito natural. A premissa de que todos os homens nascem iguais reflete sem dúvida um pressuposto para a construção e reivindicações de direitos. Ao mesmo tempo a ideia do contrato social, também base de sustentação do pensamento liberal, significa que os homens pactuam em condições de igualdade, sendo essa posta como condição revolucionária, por assim dizer.

A Fraternidade é uma pedra basilar na construção do pensamento ocidental. Para nosso empreendimento, olharemos para a Fraternidade enquanto relacionada ao Universal. Nesse sentido, faremos um recorte particular sobre: Fraternidade / Igualdade / Universal / Cosmopolita, que irá se confirmando por toda a tese.

O que queremos salientar, de antemão, é que a Fraternidade figura como um conceito fundamental para os ideais da Revolução Francesa. E que, ao mesmo tempo, a Fraternidade possibilita a abstração do homem kosmopolites, ou seja, o homem-abstração, o cidadão do mundo, em contraposição ao homem-“real”, que por hora chamaremos homem-nacional.

Para tanto, devemos começar com a análise dos termos, com a ajuda de Émile Benveniste a partir de seu clássico estudo intitulado O Vocabulário das instituições

indo-europeias. Ele escreve sobre o phrátér (irmão):

Efetivamente, phrátér [em grego] não designa o irmão de sangue; ele se aplica aos que estão ligados por um parentesco mítico e se consideram descendentes de um mesmo pai. Manteve-se phrátér para o membro de uma fratria, e instituiu-se um termo novo, adelphós (literalmente "nascido da mesma matriz"), para o "irmão de sangue". A diferença se manifesta, além disso, por um outro fato pouco observado; phrátér, por assim dizer, não existe no singular; usual é apenas o plural. (BENVENISTE, 1995, p.211)

Segue mais adiante, em outro trecho:

Partindo do génos para chegar à fratria, passa-se do grupo fundado num nascimento comum a um grupo formado pelo conjunto de “irmãos”. São irmãos não de sangue, mas enquanto se

reconhecem descendentes de um mesmo antepassado, e esse parentesco mítico é uma noção profundamente indo-europeia (...). (BENVENISTE, 1995, p. 312)

O que Benveniste nos mostra é que o termo phrátér (em latim: fráter) faz referência a uma irmandade que não se qualifica por um laço sanguíneo, mas por um “parentesco mítico”. A noção de fraternidade, portanto, retoma, ou faz vir à tona, noções políticas de comunidade ou mesmo de nação (embora esse termo seja, em termos históricos, excessivamente moderno).

O que nos importa ressaltar é que o sentimento de fraternidade é uma espécie de

reconhecimento do outro como parte de um conjunto/comunidade, ou seja: o eu e o outro são partes de um mesmo coletivo; estamos juntos.

Essa fraternidade é entendida e criada através dos laços comuns entre as partes. O homem enxerga no outro um ser semelhante, pois faz parte de uma mesma “coisa”,

comunga. Nesse sentido, a Igualdade deve ser retomada com toda a sua

intensidade. O irmão é “um igual” enquanto descendente de um mesmo antepassado (nesse caso, mítico).

A Fraternidade, portanto, é um conceito que abriga uma noção de comunidade, mas, se pensada em termos extensivos, ampliados, pode abrigar a noção de humanidade (comunidade universal). Quando a Fraternidade abriga a humanidade, permite encontrar um comum entre os seres humanos. Quem talvez tenha explorado de maneira mais pujante esse conceito, durante toda a Idade Média, tenha sido a Igreja Católica.70 Mas quem laicizou e trouxe para o cenário político moderno esse conceito (que é também um sentimento) foi a Revolução Francesa.

70 Sobre a ideia “fraterna” destacamos as Epístolas de São Paulo apóstolo, em particular aos Gálatas

e Efésios. Na Epístola aos Efésios, Paulo defende que Cristo queria fazer dos “dois povos uma única humanidade” (Efésios, 2, 15). Sustenta que, pela fé, todos podem ser “membros da família de Deus” (Efésios, 3, 19). No que tange às Encíclicas papais, destacamos a Rerum Novarum do Papa Leão XIII, de 1891, Sobre a condição dos operários. Citaremos todas essas fontes quando formos tratar do universalismo-fraterno do catolicismo no capítulo IV desta tese.