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Partilhamos do reconhecimento de que a teoria da soberania popular foi obra, de forma mais acabada, de Jean-Jacques Rousseau.186

No Contrato Social, a Soberania reside na vontade geral. Esta afirmação se constitui no eixo da soberania popular. Afastando-se das ideias anteriores sobre a soberania popular, Rousseau constrói um novo paradigma de apreciação. A análise da

soberania popular em Hobbes ou em Bodin permite constatar uma soberania

popular restrita, que existe tão-somente no momento do contrato. É uma soberania temporalmente restrita, delimitada e inicial que, ao tornar-se exercício e prática corrente do poder constituído, escapa das mãos do povo e transfere-se para as mãos do monarca. Ou seja, a soberania popular nos autores pré-Rousseau existe apenas no momento 1, momento inicial da organização política marcada pelo contrato social. No momento 2, subsequente, a soberania transfere-se para o monarca, o qual passa a ser a figura central da política e do Estado. A partir do

momento 2 é o monarca quem deve deter a Soberania. Em síntese: a Soberania

não residia no povo, mas advinha dele e se materializava em um novo corpo,

no corpo do príncipe.187

No Contrato Social, no entanto, constata-se que a Soberania não muda de

residência, não migra de um lugar para o outro. A Soberania origina-se188 no

186 Conquanto alguns autores façam constar as enormes influências de Marsílio de Pádua, Defensor

pacis, 1324, como um expoente da teoria da soberania popular. Sobre o autor e essa temática ver

“Teoría de la ley y de la soberanía popular en el ‘defensor pacis’ de Marsilio de Pádua, de Juan Ramon Cue (1985). Extraímos dois trechos de sua conclusão: “Aunque quizá sería exagerado convertir a Marsilio de Padua en el exponente de una clara e ilimitada teoría de la soberanía popular, en el precursor del principio de la división de poderes, en el teórico, en fin, del Estado moderno según la complejidad que este término actualmente encierra, algunas de las tesis desarrolladas en su obra nos ofrecen la imagen de un autor fuertemente original y moderno, especialmente si tenemos en cuenta la época en la que aquella se inserta (…). Por otro lado, la doctrina marsiliana de la soberanía popular, aun con todas las limitaciones señaladas, convierte a nuestro autor en el primer pensador medieval que ha delineado el ideal de la comunidad perfecta, que, por autónoma y autárquica, comprende en su seno todas las manifestaciones de la vida social, incluidas las estructuras eclesiásticas”. (CUE, 1985, p. 147-148).

187 O mesmo pode-se dizer do Leviatã, de Hobbes.

188 Nesse trecho aparece de forma límpida a derivação da Soberania a partir do contrato: “Mais le

corps politique ou le souverain ne tirant son être que de la sainteté du contrat ne peut jamais s' obliger, même envers autrui, à rien qui déroge à cet acte primitif, (…)”. (ROUSSEAU, p. 196)

contrato através de um ato popular e mantém-se no “popular”, a partir da efetividade da vontade geral. A soberania popular rousseauniana está presente tanto no ato da criação do Estado quanto no exercício do poder, através da vontade geral.

Não há, portanto, na linha de pensamento supracitada, dois momentos: o momento

1 e o momento 2 da Soberania. A Soberania nasce popular e segue sendo

(continua, no exercício do poder) popular. Tal apreciação política nos faz pensar

que a importante diferença aqui, de Rousseau com relação a Hobbes e Bodin, é que o “Newton do mundo moral”, como certa vez disse Kant (CASSIRER, 1954, 2003), é propriamente um teórico da soberania popular em vez de um teórico da soberania. Podemos considerar Bodin e Hobbes como teóricos da soberania, sendo a soberania popular apenas uma ideia presente (elemento coadjuvante) em suas concepções. Já em Rousseau, a soberania popular passa a ter status de teoria – não apenas ideia –, visto que esta constitui-se como um núcleo central de seu pensamento, como um Sol que tudo ilumina.

A constatação de uma soberania popular ininterrupta nos leva, por outro lado, a uma problemática da representatividade. O elo/ligação entre o representado e o

representante é tão intenso que caímos em outra indistinção complicada (à

semelhança de Hobbes). Temos aqui a indistinção entre os termos políticos Ato do

Soberano, representatividade e ato dos súditos (seguindo a trilha de Hobbes). No

“Livro I capítulo VII – Do soberano”, do Contrato Social, lê-se:

Or, le souverain n' étant formé que des particuliers qui le composent n' a ni ne peut avoir d' intérêt contraire au leur ; par conséquent la puissance souveraine n' a nul besoin de garant envers les sujets, parce qu' il est impossible que le corps veuille nuire à tous ses membres ; et nous verrons ci-après qu' il ne peut nuire à aucun en particulier. Le souverain, par cela seul qu' il est, est toujours tout ce qu' il doit être. (ROUSSEAU, p. 197)

Ainda referindo-se à premissa de que o soberano é sempre tudo o que deve ser, Rousseau aponta para a possibilidade de um indivíduo possuir uma “vontade particular contrária” à vontade geral. A identificação do soberano, portanto, é

estritamente com a vontade geral, que por sua vez pode ser diferente da vontade particular.189

No “Livro II, Capítulo I – A soberania é inalienável” do Contrato, Rousseau define a Soberania como o “exercício da vontade geral”. Destarte, a Soberania é posta em

marcha a partir de um coletivo do qual derivam vontades, na síntese quase

indiscernível soberania-vontade geral:

Je dis donc que la souveraineté n' étant que l' exercice de la volonté générale ne peut jamais s' aliéner, et que le souverain, qui n' est qu' un être collectif, ne peut être représenté que par lui-même: le pouvoir peut bien se transmettre, mais non pas la volonté. (ROUSSEAU, p. 207)

Nessa passagem, Rousseau desfere um golpe fatal na possibilidade teórica e prática da transferência da Soberania do povo para o rei. Assim, carece de plausibilidade – conforme dito anteriormente e de acordo com a lógica rousseauniana – a existência de dois momentos da Soberania. Só é possível a existência de um único momento. A Soberania não é e se torna outra; ela sempre é. Em suma: a Soberania é definida como um exercício da vontade geral, ato dinâmico, próprio e autorrepresentativo.190 Tal é a envergadura da inversão revolucionária efetuada por Rousseau. 191

189 Observe-se, portanto, que a indistinção dos Atos do Soberano é com a vontade geral, e não

especificamente com os indivíduos. A indistinção dos Atos do Soberano só pode ser considerada em relação ao indivíduo enquanto este é visto como partícipe e elo da “vontade geral”. Nesse sentido, como indivíduo-espécie, visto como integrante de um coletivo.

190 Quando sustentamos que a soberania confunde-se com a vontade geral e que é

autorrepresentativa, devemos sublinhar que é autorrepresentativa no que tange ao ato legislativo. A Soberania e a vontade geral não equivalem a um autogoverno, por exemplo – a soberania e vontade geral não estão referidas ao governo. Seria possível pensar que o governante seria um mero executor das leis da vontade geral? Em Rousseau, a questão não parece ser tão simples. No “Livro III, Capítulo I – Do governo em geral”, Rousseau utiliza o termo “administrativo” como uma característica central do governo, diferenciando-o do legislativo. Utiliza ainda as expressões “corpo intermediário” e “forças intermediárias” para caracterizar o governo. O governo tem um papel de mediador entre o Estado e o Soberano e constitui-se como “pessoa moral”. Como introdução a esta questão o seguinte artigo, de Frank Marini, é pertinente: “Popular Sovereignty but Representative Government: The other Rousseau” (1967). Destacamos os seguintes trechos: “We commit a serious distortion if we read Rousseau`s statements that the general will is the Sovereign and that no law is legitimate without the conset of citezens` legislative Power as a demand for pure democracy by substituing our definitions of ‘Sovereign’, ‘law’, and ‘legislative’, for his. Rousseau explicitly differentiates between legislative and executive, sovereign and government, and Law and decree. Careful attention to these distinctions reveals his theory of government to be very different from the representation of his theory as one of radical self-government”. (MARINI, 1967, p. 456)