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Entre dois termos: universus e katholou (e um interlúdio matemático e biológico)

No que tange à semântica grega, o “universal” é katholou, junção de kath (sobre, conforme) e holos (todo, inteiro, completo), gerando, portanto, na língua portuguesa, “sobre o todo”. Ou, ainda, segundo a definição da Perseus Digital Library: “on the whole, in general”. 218 Aristóteles define universal como “o que, por sua natureza,

pode ser predicado de muitas coisas”. (De int., 7, 17 a 39) E também:

(…) o universal, que se predica universalmente como um inteiro ou um todo, é universal na medida em que abraça muitas coisas, enquanto se predica de cada uma e enquanto todas elas constituem uma unidade, assim como cada uma é unidade: homem, cavalo, deus, por exemplo, constituem um inteiro ou um todo enquanto são seres vivos. (...). (Met. V, 26, 1023b30)

No latim, o termo universal advém de “universus”. Universus é a junção de uni (um) e versus (voltado), assim, na língua portuguesa: “voltado para o um”. Segundo o

New Oxford American Dictionary: “universus ‘combined into one, whole,’ from uni- ‘one’ + versus ‘turned’ (past participle of vertere).” De maneira bastante similar,

conquanto mais especializada, a tradução do latim para o inglês do Persus Digital

Library é: “ūnĭversus, adj. [unus-verto, turned into one, combined into one whole]”,

sendo que sua primeira definição aparece como: “I. all together, all taken collectively, whole, entire, collective, general, universal (opp. singuli).”219

Podemos dizer, portanto, que a expressão e ideia do “voltado para o um” remete-nos diretamente à ideia de Totalidade, ou seja, daquilo que abarca todas as coisas.

218 O Dicionário se encontra no endereço http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/resolveform , sendo

uma realização do Department of Classics da Tufts University, EUA. Sobre a questão da tradução, encontramos uma tradução um pouco mais problemática (em THURSTON, 1908, Catholic

Encyclopedia) que remete Katholou à “Throughout the whole”. Essa expressão não possui um

significado próprio na língua inglesa ou, pelo menos, não possui um significado usual. Isso porque, além das considerações propriamente gramaticais, a palavra Throughout (Through + Out) já faz referência ao “todo”, da mesma forma que whole, o que recai em redundância. Throughout pode ser:

através do caminho todo, por toda parte etc. (Por exemplo: Through the history, através da História;

throughout the history, através de toda a História). Assim, nossa expressão, num exagero dos

termos, poderia ser entendida assim: Muito além do Todo ou através de todo caminho do Todo.

219 Acerca da tradução de “universal”, faço constar que em Norberto Keppe aparece o seguinte: “O

que é o universal? Segundo a definição: o um em muitos (unum in multis) ou: o apto no ser de vários (unum aptum inesse pluribus)”. (KEEPE, 1999, p. 15, o sublinhado é meu)

Ainda que quiséssemos fugir da matemática, seria difícil. Esse universal, visto como uma Totalidade que predica cada uma das coisas que o contém, pode ser visto como um “conjunto” – tendo como característica ser “inteiro”. Esse “conjunto” tem relação direta com seus “elementos” (conforme se observa também através da palavra “predicado” utilizada por Aristóteles). Acreditamos que a relação parece ser tão forte que há quase um hibridismo – exagerando nos termos – entre o “universal” e aquilo que nele está contido. Nesse sentido, é possível pensar que o conjunto em sua interação com seus elementos é o próprio universal?

Alguns Fundamentos de matemática elementar220, em particular a teoria dos

conjuntos, ajudam-nos a esclarecer melhor o que vem a ser o universal. A teoria dos conjuntos abriga, de maneira introdutória, “três noções aceitas sem definição, isto é, (...) consideradas noções primitivas: a) conjunto; b) elemento c) pertinência entre o elemento e o conjunto”. (IEZZI e MURAKAMI, 1993, p. 18) Acerca desta última, entende-se que trata da mesma ideia expressa pela palavra “predicado”, ou seja, um elo-forte entre os elementos e o conjunto.

Prosseguindo nas definições, que serão úteis para quando estabelecermos o

universal dos Direitos Humanos, “a noção matemática de conjunto é praticamente a

mesma que se usa na linguagem comum: é o mesmo que agrupamento, classe, coleção, sistema.” (idem). Dois exemplos ilustrativos são: 1) conjunto dos algarismos romanos e 2) conjuntos dos planetas do sistema solar. Os elementos, por sua vez, significam “cada membro ou objeto que entra na formação do conjunto”. Como exemplos, respectivamente: 1) I, V, X, L, C, D, M e 2) Mercúrio, Vênus, Terra, Marte...

Chamaremos todas essas categorias juntas (conjunto, elementos e pertinência entre eles) e entendidas como uma efetividade real e complexa, de universal.

No campo da Filosofia, Nicola Abbagnano, enuncia: “Ontologicamente, o Universal é a forma, a ideia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas, conferindo às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum”. (ABBAGNANO, 2007, p. 1168)

Na citação aparece claramente a noção de “comum” como base do “universal”, o que na seara das ciências humanas parece-nos fundamental. Assim: o Universal- Totalidade contém “elementos” que se unem por um fator “comum” que, por sua vez, remete-nos ao caráter de “Totalidade-universal”.

A discussão filosófica sobre o universal é ampla e polêmica221, não obstante, para

nosso fim específico, basta apenas recoletar as considerações que fizemos até aqui e relacioná-las aos Direitos Humanos, enquanto um filosofema que parte do princípio de que existe uma humanidade.

O “nosso” universus e katholou, ou seja, nosso “voltado para o um”, está diretamente relacionado à noção de humanidade. Em nossa seara, a compreensão do termo universal parte de um princípio básico dos Direitos Humanos: os seres humanos formam uma coletividade (humanidade) que tem por base e fundamento a igualdade entre todos.

221 Um grande debate que marcou a história da filosofia atinente ao termo universal aconteceu na

escolástica do século XI e perdurou, de maneira intensa, até a Idade Moderna. O debate sintetiza duas concepções conflitantes – ou pelo menos não harmoniosas –, o realismo e o nominalismo (conforme ABBGANANO, 2007, 1168). Segundo Isabel Oliveira: “Esse debate (...) iniciou-se com a ‘prova ontológica’ da existência de Deus, desenvolvida por Anselmo (...). Essa prova levaria à conclusão de que Deus – o maior ser existente – estaria em todos os domínios, pois se não estivesse seria possível às nossas mentes pensar em alma maior que Deus, o que seria uma contradição. (...) Anselmo concebia a existência de uma ‘verdade’ da qual tudo que fosse verdadeiro dependeria. Está aqui posto o 'realismo extremo'”. (OLIVEIRA, 1999, p.34) De outro lado, ou melhor, no meio-termo da disputa está Abelardo, que, retomando as questões de Boécio, sustenta que “o universal não é uma coisa, uma Forma, como querem os realistas. (...) dirá que a mente é capaz de distinguir entre matéria e forma, ainda que estas não existam em separado. É disto que trata a abstração (...). Abelardo dirá que o universal é aquilo que pode ser predicado de muitos termos devido à sua intenção (...). Dado que muitos nomes podem ser aglutinados por uma só palavra, o que o universal descreve é a unidade do significado. (...)”. (OLIVEIRA, 1999, p. 35) Agora sim, de outro lado, na vertente propriamente nominalista, está Guilhermo de Occam que “concorda que a mente humana efetivamente formula termos universais, mas a estes termos não correspondem seres, não tendo, pois existência efetiva. Para ele, a coisa individual é a única realmente existente; portanto, só ela pode ser conhecida (...), o que coloca em questão até mesmo a validade das inferências empíricas. (...) não é possível conhecer, propriamente dizendo, os universais porque os universais não são uma coisa, mas um conceito. O conceito não tem existência objetiva, sendo uma ‘qualidade da mente’, apesar de guardar uma relação de semelhança com a coisa que é por ele representada”. (OLIVEIRA, 1999, p. 35)

O universal nos Direitos Humanos é, portanto, a existência em sentido amplo222 de

um “voltado para o um” nos seres humanos. O universal pressupõe a característica de comunhão entre os seres humanos (todos eles comungam de algo). Por sua vez, a característica de comunhão permite a conexão (igualdade) entre todos os seres humanos de modo a se concluir uma totalidade.

A “comunhão” ou “partilha” entre os homens, seja consciente seja inconsciente, material-coisa ou constructo mental – para nós não importa – significa a existência de uma igualdade entre os homens (vista das mais variadas maneiras no pensamento político). 223

Contudo, antes de tratarmos de um tema tão intricado, seria relevante, ainda que de modo sucinto, observar as contribuições da Biologia, em especial em sua definição de “espécie”. A noção de “espécie”, sendo um tipo de universal, pode ser muito esclarecedora, e não chega a surpreender encontrarmos uma íntima semelhança entre certas definições biológicas e as ideias dos Direitos Humanos. Se a aproximação entre Biologia e Política nem sempre é apreciada pelos humanistas (vejam-se a teoria de Gobineau, a eugenia ariana do III Reich, a teoria do evolucionismo social empreendida como justificativa de dominação política e econômica, a biopolítica foucaultiana etc.), aqui o intento será diferente. A apropriação da noção de espécie da biologia, realizada aqui, mostrar-se-á profícua e

pari passu com a filosofia dos Direitos Humanos.

Segundo Raw, Mennucci e Krasilchik, a espécie, de acordo com “a teoria da seleção natural, enunciada por Darwin em 1838”, mas “resumida em termos modernos”, pode assim ser definida:

222 Não importa se material ou não. Para o estudo presente, acredito não ser necessário entrar nesta

polêmica e nível de detalhamento (ver nota anterior).

223 Nesse sentido, Daniel Chernilo diz-nos de forma simples e clara, conectando o cosmopolitismo, o

universalismo e a igualdade: “El corazón de la tradición cosmopolita es intrínsicamente universalista,

puesto que propone la igualdad fundamental de los seres humanos con prescindencia de cualquier diferencia de clase, género, étnica, nacional, religiosa o cultural. Como programa normativo el cosmopolitismo no puede desplegarse sin un universalismo filosófico de base y ha de ser entendido como la consecuencia normativa necesaria de una pretensión universalista de conocimiento”. (CHERNILO, 2007, p. 187)

1. São considerados indivíduos de uma mesma espécie aqueles que, ao se cruzarem, são capazes de reproduzir-se e ter filhos férteis. 2. Todas as espécies são formadas de indivíduos que apresentam

diferenças entre si, que em parte são transmitidas geneticamente como alelos diferentes, resultantes de mutações. (RAW, MENNUCCI e KRASILCHIK, 2001, p. 318)224

Tendo em vista o primeiro ponto, deve-se afirmar que a espécie é um exemplo de

universal: um “todo”, em cujo interior estão presentes “indivíduos” que, por sua vez,

partilham uma característica comum (neste caso, a de se reproduzir e gerar descendentes férteis). Ao mesmo tempo, e isso é curioso, o segundo ponto da definição de espécie põe em relevo não a semelhança – ou o fator comum – mas a

diferença. Ora, o universal trata, simultaneamente, de indivíduos que podem ser

considerados iguais em certo sentido e diferentes em outro sentido. Trata-se de entender que todos os animais têm uma semelhança tal, que os permite enquadrar em uma espécie, são iguais em certo sentido. Não obstante, ser de uma mesma espécie não significa dizer que são todos iguais: os animais de uma mesma espécie são oriundos de diferentes paternidades-genéticas, tendo, obviamente, características próprias.

No desenvolvimento de suas ideias para a definição de espécie225, Ernest Mayr traz

à discussão a dimensão da população como fato da espécie, o que nos parece importante para os propósitos desta investigação. Afirma Mayr: “O status de espécie é propriedade de populações, não de indivíduos” (MAYR, 2006, p. 192). Logo, se a espécie pode ser vista como um tipo de universal, a construção do universal se realiza a partir de um “coletivo”, um “todo composto”, uma “população”.

O universal dos Direitos Humanos, de maneira similar, realiza-se no coletivo- Humanidade e não em indivíduos-homens de forma isolada. Em outras palavras, o

224 O ponto 1 dessa definição é de fato o mais usado e consensualmente aceito. Segundo H. G.

Wells, Julian Huxley e G. P. Wells, num livro clássico de 1934, A Ciência da Vida, Tomo 2 – As formas da vida, lê-se: “Na classificação biológica, a unidade fundamental é a espécie. Para o nosso presente objetivo podemos definir a espécie como constituída por seres vivos que se reproduzem, mas que normalmente não se “cruzam” com seres de outros tipos, mesmo muito semelhantes”. (WELLS, HUXLEY e WELLS, 1934, 1940, p. 36)

225 “Defino espécies biológicas como ‘grupos de populações naturais capazes de entrecruzamento

que são reprodutivamente (geneticamente) isolados de outros grupos similares'.” (MAYR, 2006, p. 192) Nessa introdução do termo “isolados” , Mayr se refere ao fato de estarem “separados por uma barreira invisível em comunidades reprodutivas”. (idem)

fundamento do universal concretiza-se no coletivo, neste caso, tratando todos os seres humanos como partícipes de um mesmo grupo.

A espécie enquanto lugar da concretização do universal aparece também em Kant, no História Universal de um ponto de vista cosmopolita. O filósofo não se refere diretamente ao universal mas sim à “razão” (que pode ser entendida como “universal” na espécie humana, visto que é uma característica distintiva da mesma). A razão dos homens encontra seu lugar de desenvolvimento na espécie e não nos indivíduos. Neste sentido, a universalidade da razão e seu desenvolvimento aparecem na espécie:

No homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo.

(KANT, HU, 2004, p. 23)

É curioso notar como Kant, que pode ser considerado um dos pais do liberalismo moderno, mostra que a evolução da razão, no sentido da história universal, ocorre na espécie, que é um coletivo por excelência. Temos então o jogo-duplo do liberalismo – e dos Direitos Humanos – no qual 1) coloca-se o sujeito-indivíduo no trono (na lógica do tudo é para o indivíduo), ao mesmo tempo que 2) se universaliza o indivíduo, partindo da premissa de que todos são, em certo sentido, iguais, ao ponto de chegar-se na necessidade lógica do cosmopolitismo. O liberalismo, assim, estende sua filosofia para o máximo-micro e para o máximo-macro. No máximo- micro, defende a grandeza e a suprema importância do indivíduo em si mesmo (cada homem em sua particularidade tem sua dignidade). Concomitantemente, no máximo-macro, defende uma perspectiva global, e uma forma de pensar a humanidade enquanto um coletivo.226 Ambas as direções, para o indivíduo e para a

humanidade (que chamamos micro e macro), são dotadas de alto valor moral para o

liberalismo.

226 Conforme aponta também Pareck, ressaltando a importância da dimensão “social” ou coletiva do

liberalismo: “The individual, then, is not a socially transcendental and ontologically self-contained being as imagined by many liberals, for his humanity is articulated in and realized through his social identities”. (PARECK, 1997, p. 61)

É a partir da entronização do indivíduo e da sustentação de que o indivíduo é a causa e o fim do Estado (o Estado nasce para o indivíduo) que se chega, racionalmente, à ideia fundamental da espécie humana enquanto universal.

Indivíduo, espécie, evolução, universal e cosmopolitismo são termos que, no jogo kantiano, estão em total sincronia e na busca incessante de harmonia. No entanto, antes de começar uma construção (ou reconstrução) do cosmopolitismo em Kant, seria atilado realizarmos uma breve síntese sobre o “nosso” universal nos Direitos Humanos.

Com o objetivo de sistematizar e concluir algumas ideias, devemos dizer que o

universal dos Direitos Humanos implica que:

1)

O “um” do “voltado para o um”, ou seja, o conjunto do universal Direitos

Humanos é a Humanidade. Na linguagem biológica, é a espécie. Em outras

palavras, o conjunto do universal dos Direitos Humanos é denominado como Humanidade, sendo esta também vista como espécie humana (população, coletivo, do homo sapiens).

2)

Os seres humanos são os elementos do conjunto-Humanidade do “voltado para o um” dos Direitos Humanos.

3)

Os elementos-seres-humanos (que compõem o conjunto-Humanidade)

possuem algo em comum. Esse “comum” (identidade em algo) é chamado pela matemática de “propriedade característica” e ajuda a definir um conjunto. Essa “propriedade” comum dos seres humanos possibilita a formação de nosso universal. Os elementos do conjunto possuem similaridade em algo, o que conduz à coesão dos elementos e do conjunto como um todo.

4)

Ao mesmo tempo que os seres humanos estão contidos, enquanto elementos, no conjunto, eles estão numa relação de elo-forte com a totalidade. É o que, na linguagem matemática, como vimos anteriormente, chama-se “pertinência entre elemento e conjunto”. Em nossa apropriação, é o elo-forte entre os componentes do

conjunto que faz existir o universal. Ou seja, a ideia do universal se materializa não apenas na existência de um conjunto (com seu nome próprio, seus elementos/predicados e uma identidade/comum entre os elementos), mas também necessita de uma relação (elo-forte) entre os “componentes” do conjunto. Para a concretização total de um universal, no caso de um universal dos Direitos Humanos, é preciso que exista – e é isso que queremos enfatizar – uma relação entre a “Humanidade” (conjunto), os “seres humanos” (elementos/predicado) e a característica de “comum” (igualdade/identidade) entre os “seres humanos”.

O universal dos Direitos Humanos é, portanto, uma Humanidade composta de

seres humanos que, por sua vez, possuem uma igualdade entre si e onde

todos esses elementos estão num relacionamento direto e forte entre eles.

Mas o que é esse “comum”? A que se refere essa “igualdade” entre os seres humanos?

O comum ou a igualdade entre os seres humanos. Rumo às bases