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b) A passagem da soberania do príncipe para a soberania popular

A relação da Soberania Política com a religião cristã é bastante complicada. Analisemos, por exemplo, os primeiros marcos da Soberania: a formação dos Estados absolutistas e a Paz de Westphália. A Soberania do monarca no Estado absolutista foi amplamente articulada e justificada através da ideia de que o Rei era, pelo menos, um representante de Deus. O Estado absolutista foi, em grande medida, o Estado das monarquias divinas, entrelaçando-se a Soberania Política do Rei e a religiosidade, de modo que a legitimidade política derivava da legitimidade divina. Enfim, política e religião caminhavam de mãos dadas.

Com a Paz de Westphália a situação muda e não muda. Não muda porque a Soberania ainda continuava devedora da religião/religiosidade; a França seguia sendo, antes e depois de Westphália, um país católico. Muda porque a Soberania francesa, agora próxima da raison d`état, erigiu-se no pós-Westphália em contraposição aos dois pilares medievais da religião cristã: o Vaticano e o Sacro Império. As autoridades cristãs bem como a institucionalidade cristã foram questionadas, ao passo em que a Soberania nacionalizava-se e, nesse sentido, se desvinculava da religião institucional.

A Soberania pós-westphaliana, dos interesses nacionais, despontou como uma organização política de transição. Os interesses nacionais deixaram de lado a legitimidade divina e, paulatinamente, articularam-se – enquanto corpo teórico- político – em torno a uma feição laica, mais racional e mais popular.

A reviravolta da prática soberana é, portanto, intrincada. Nasce ligada a Deus (na forma absolutista) e se afirma no século XVII (Westphália) com base na negação dos cânones-institucionais da religião, de seus grandes líderes. Dessa perspectiva, a história da Soberania foi marcada, em grande medida, pelo deixar de lado a religião como prática e fundamento público.

A mudança não foi tão lenta se atentarmos ao fato de que, em pleno início do século XVI, os poderes da península Ibérica legitimavam-se a partir da fundamentação e das justificativas cristãs para o “desbravamento” do Novo Mundo. A missão ibérica havia sido em grande medida sustentada, em termos de argumentos e justificativas, pela missão católica catequizadora. No século seguinte, XVII, a justificativa teológica para os assuntos terrenos seria questionada e logo posta em desuso; abandonada. Um século depois (no XVIII), a supremacia da mentalidade/legitimidade divina seria definitivamente substituída pela supremacia da mentalidade/legitimidade nacional. Nesse ínterim, outra grande ruptura ocorre: a Soberania muda de residência. Com as revoluções estadunidense e francesa, a titularidade da Soberania passa a residir no povo ou na nação, não mais no príncipe. A origem do poder muda, e com isso nasce uma nova política: a política da soberania popular ou, como prefere Barnava (apud LEFEBVRE, p. 197), do “catecismo nacional”.

Teoria conciliar e soberania popular

A soberania popular, que devolve (ou leva) ao povo e/ou à nação a titularidade da Soberania e inclina-se mais a uma explicação racional do que teológica, tem raízes que remontam à Grécia Clássica.

Não é nosso propósito desviar-nos do final179 da Idade Média, lugar histórico a partir

da qual construímos todo o nosso debate sobre a Soberania. Entretanto, é lícita, ao menos, a menção ao “episódio” da teoria conciliar da Igreja.

179 É possível ainda encontrar vestígios de um embrião da ideia (mais que prática) da “soberania

popular” nos reinos da França e Inglaterra do século VI ao XIII. Sabine destina um capítulo a explorar essa temática (“XII. El pueblo y su ley”) no qual mostra que a ideia de que o poder tinha origem popular e era consentido pelo povo ao rei é herdeira do direito germânico, que influenciou os países mencionados. O professor conclui, mas fazendo um alerta: “A crença de que o direito é algo que pertence ao povo e se aplica e modifica segundo sua aprovação e consentimento era, pois, universalmente aceita. Entretanto, no que se refere ao procedimento de governo, essa crença era muito vaga”. (SABINE, p.175, tradução própria) Sobre essa carência, Sabine alega: “Não implicava nenhum aparelho/esquema definido de representação (…)”. (SABINE, p. 175)

Na perspectiva de José Moreno, a teoria conciliar parte da premissa básica de que o Concílio é a entidade suprema da Igreja, em contraposição ao poderio do Papa.180 O conciliarismo adota valores mais democráticos para o governo da Igreja, tendo em conta que apresenta a “soberania” da Igreja subordinada a um grupo e não a uma única pessoa – contrapõe-se, portanto, ao absolutismo papal. Por outro lado, Sabine refere-se aos conciliaristas como religiosos que advogavam uma espécie de balanço de poder entre o Concílio e o Papa, cabendo só a alguns extremistas a defesa do Concílio como órgão soberano, em detrimento do poder do Pontífice.181

Sabine argumenta ainda que a teoria conciliar foi parte do Grande Cisma da Igreja ocidental, marcado, por sua vez, dentre outros aspectos, pelo descrédito papal.182 A

teoria conciliar surge, portanto, em um ambiente de desconfiança ante o governo da Igreja e, dentre outros elementos, contribuiu para “(...) o primeiro grande debate entre constitucionalismo e absolutismo, que preparou e difundiu ideias que foram utilizadas nas lutas posteriores”. (SABINE, p. 253, tradução própria)

180 José Moreno, “Conciliarismo y escepticismo - La crisis del pontificado en los siglos XIV y XV”,

2005, explica, em termos simples, a teoria conciliar: “(...) la cuestión del conciliarismo, entendido como la doctrina según la cual el concilio es la instancia suprema y ejecutiva de la Iglesia incluso por encima del papa”. (MORENO, 2005, p. 54) Em outra passagen, o autor versa sobre a trajetória desta corrente teológica: “El conciliarismo es una corriente de pensamiento que comienza a hacer eco entre los canonistas de los siglos XII y XIII, se formó en el siglo XIV por obra sobre todo de Marsilio de Padua y de Guillermo de Ockham, y alcanzó su apogeo en la primera mitad del siglo XV. Sin embargo, como estudio sistemático comienza a investigarse en los últimos decenios del siglo XIX, pero tales trabajos sólo se intensifican a partir del año 1950, especialmente con ocasión del Vaticano II y alcanzó su punto culminante después del sexto centenario del Gran Cisma de Occidente (1378- 1417)”. (MORENO, 2005, p. 61) O citado artigo presta-se a uma rica introdução ao tema.

181 Sobre as bases históricas da teoria conciliar Sabine afirma: “O tipo de governo em que se

inspiraram os conciliares foi a monarquia limitada do Medievo com sua assembleia de estamentos, ou de modo mais definido, a organização das ordens monásticas, na qual as corporações menores se combinavam, mediante seus representantes, em um sínodo que representava a todo o corpo”. Sobre o teor das propostas conciliares, Sabine defende: “No geral, os conciliares aspiravam erigir o concílio como parte integrante do governo da igreja, capaz de corrigir abusos e de frear o que consideravam como poder arbitrário do papa.(...) É possível que alguns extremistas pensassem na ideia de que a autoridade pontifícia deveria ser meramente derivada da conciliar, não obstante, por regra geral concebíam o poder da igreja como um exercício conjunto do papa e do concílio, sem ter a intenção de destruir, para os fins ordinários, o poder monárquico inerente ao ofício papal”. (SABINE, p. 257, tradução própria) À diferença de Moreno, Sabine inclina-se para a interpretação de que a apresentação de Nicolás de Cusa, De concordantia catholica, no Concílio de Basileia fora, antes de clamar por um extremismo que advogou pelo poder do concilio, duvidosa quanto à real titularidade do “poder final”. Compartilha dessa opinião, também, Peter L. McDermott (1998, p. 254, 255).

182 Comenta Sabine, “(...) o luxo da corte pontifícia e a venalidade do governo papal se converteram

na base para severas críticas que prosseguiram até a reforma. O Grande Cisma (...) piorou as coisas (...) O espetáculo de dois, e as vezes três, papas rivais, com frequência meros apêndices de ambições dinásticas e nacionais, que utilizavam todas as artes da inventiva teológica e as argúcias políticas contra seus rivais, contribuiu muito a destruir o respeito que o ofício papal havia adquirido tradicionalmente”. (SABINE, p. 251)

A teoria conciliar, em termos práticos, não conseguiu grandes resultados. Ainda durante o Concílio da Basileia houve uma forte reação por parte de setores da Igreja que se opunham a essa nova forma de governo. Dessa contrarrevolução – com algum exagero nos termos – derivou uma supremacia papal, a ponto de afirmar-se que “o papa se situou no século XV como o primeiro dos monarcas absolutos”. (SABINE, p. 260, tradução própria)

Bodin, Hobbes e a soberania popular

Seria prudente concordar com Heller no sentido de que “sempre que se fala da soberania do estado se vincula a este conceito, de alguma forma, a ideia de soberania do povo”. (HELLER, 1995, p. 164, tradução própria) Tendo em conta a “soberania do Estado” em uma ampla perspectiva, é mister compreender, de acordo com o autor, que a ideia da soberania popular (ainda que não propriamente sua teoria) tende a estar presente em qualquer pensamento sobre Soberania.

No caso de Jean Bodin, a “soberania popular” aparece no momento em que a titularidade do poder soberano pode residir no povo. Apesar de em vários momentos de seu livro Bodin prever a soberania popular, é só no Livro Sexto, Capítulo IV183

que ela merece um tratamento particular (com o nome de “estado popular”). Nesse capítulo Bodin estabelece uma comparação entre os tipos legítimos de República. O jusfilósofo, versando sobre as qualidades do “estado popular”, sustenta que essa forma “persegue a igualdade e retidão em todas as leis (...)”, “propõe a igualdade de todos os homens, o que não se pode alcançar sem uma equitativa distribuição dos bens, honras e justiça entre todos, sem privilégios nem prerrogativas”. (BODIN, p. 280) Prossegue defendendo que é nesse estado que se encontra, historicamente, a maior produção de cidadãos que se destacaram pessoalmente (adeptos das artes armadas, legistas, oradores, jurisconsultos, artesãos, entre outros). Ainda, o bem público seria melhor cuidado por todos, visto que seria um patrimônio dos mesmos.

183 De título “Comparação das três Repúblicas legitimas, a saber, o estado popular, aristocrático e

Entretanto, logo após mostrar as benesses do “estado popular”, Bodin passa a desmoronar seu recém-construído castelo de cartas. O “estado popular” na realidade, é um utopia, a-histórico, “jamais existiu uma república em que bens e honras fossem igualmente distribuídos”. (BODIN, p. 281) O rol de argumentos de Bodin amplifica-se à medida do transcorrer do capítulo, chegando à conclusão de que essa forma de república é uma falácia e até um perigo, “é a mais perniciosa tirania imaginável, quando não está governada por homens sábios e virtuosos”. (BODIN, p. 284)

Na conclusão de suas comparações, como sabemos, Bodin inclina-se para a defesa da república monárquica, “preferida por todas grandes personalidades em relação às demais repúblicas”. (BODIN, p. 287) Não obstante, para nosso objetivo, é suficiente que, pelo menos, Bodin tenha previsto esse tipo de república, e previsto como um tipo “legítimo”.

No que tange a Hobbes, examinamos anteriormente uma certa indistinção entre os atos do príncipe soberano e a vontade do súdito, no pensamento do filósofo inglês. Ademais, o contrato que cria o Estado Soberano é oriundo de um ato racional por parte dos indivíduos, que cedem sua liberdade. Ou seja, é deles, em última instância, aquilo que possibilita o Estado Soberano. Reside no “povo”, portanto, o poder de criação do Leviatã.

Leo Strauss, em seu livro sobre Hobbes (A filosofia política de Hobbes – seu

fundamento e sua gênesis), está de acordo com a tese de que é possível encontrar

no pensamento hobbesiano uma marca da tradição da soberania popular, ou “tradição democrática”. No entanto, para o autor, essa tradição coexiste com uma outra, oposta a ela, a “tradição monárquica”. Destarte, uma das grandes operações teórico-políticas de Hobbes foi “reconciliar” essas duas tradições.184

184 “Portanto, a teoria hobbesiana do Estado, se rastrearmos até seu ponto de partida, representa a

união de duas tradições opostas. Hobbes segue a tradição monárquica na medida em que afirma que a monarquia patrimonial é a única forma natural do Estado, e, portanto, a única legítima. Entretanto, e em contraste com essa primeira visão, a tradição democrática afirma que toda legitimidade tem sua origem no mandato do povo soberano. Hobbes une essas tradições opostas, primeiro mediante uma distinção entre Estados naturais e artificiais. (...) Hobbes reconcilia assim duas teorias da soberania fundamentalmente distintas. De acordo com uma, a soberania é o direito que está finalmente ancorado na autoridade do pai; portanto, completamente independente da vontade do indivíduo. De acordo com a outra tradição, toda soberania deve ser reconduzida até a delegação voluntária da

Assim, mais uma vez nos deparamos com uma simultaneidade de tradições opostas em coexistência. Gerando, portanto, um paradoxo. Tomando sempre como referência o Leviatã, é certo, como se demonstrou, que a soberania popular tem lugar no momento de surgimento do Estado. É o povo, através de um ato individual de cada homem da “multidão” que origina o Leviatã, como se lê na Parte II, Capítulo XVII:

I Authorise and give up my Right of Governing my selfe, to this Man, or to this Assembly of men, on this condition, that thou give up thy Right to him, and Authorise all his Actions in like manner. This done, the Multitude so united in one Person, is called COMMON- WEALTH, in latin CIVITAS. This is the Generations of that great LEVIATHAN (...). (HOBBES, p. 120)

Simultaneamente, a soberania monárquica, absolutista, se faz valiosa na mesma obra. No Capítulo XIX, Hobbes defende essa forma de governo como a mais “conveniente e apta a produzir a paz e a segurança do povo”.185

Em suma, apesar de Bodin e Hobbes deixaram claro a sua preferência acerca da melhor forma de governo – monárquica – e tentarem persuadir o leitor à mesma, a ideia da soberania popular, “estado popular” ou “democracia” se faz presente na obra de ambos. De igual forma, são “estados” legítimos, possíveis. Em Hobbes, a ideia da soberania popular tem mais vigor, posto que ela está na base da criação do Leviatã. A ideia contratual, portanto, remete à “multidão” o poder supremo. Pelo menos, numa primeira instância...

autoridade por parte da maioria dos cidadãos livres.” (STRAUSS, 2006, p. 101 e 102, tradução própria)

185 Há várias razões destacadas para que a monarquia seja a melhor forma de governo. Dentre as

quais, a título ilustrativo, sublinhamos duas: a) na monarquia o interesse privado do Rei se confunde com o público. Isto é salutar ao reino, visto que na procura pessoal do Rei por riquezas e glórias automaticamente, ele estará conquistando para o reino como um todo. b) as razões do monarca são menos sujeitas a inconstância de uma assembleia, por exemplo, a unidade de opinião e decisão resulta na melhor aplicabilidade da resolução.