• Nenhum resultado encontrado

O comum ou a igualdade entre os seres humanos Rumo às bases do projeto universal-cosmopolita

[Sobre Direitos Humanos] nesta espécie de religião terrena, não somos nem alemães nem franceses, nem citoyens nem bourgeois, nem cristãos nem muçulmanos (…) nem homens nem mulheres, não temos a pele branca nem de nenhuma cor. Todas as posições negativas dos indivíduos – no que refere-se às diferenças de etnia, casta, classe, religião ou sexo – se submetem à igualdade dos direitos fundamentais de todos os homens. Os Direitos Humanos sonham um sonho de uma nova ordem mundial, uma ordem humana (…) Nesse sentido, o olhar cosmopolita empregado normativamente modula todos os dualismos

que a humanidade física, especial, temporal, espiritual ou ideológica dividiram em dois.

Ulrich Beck227

O pertencimento ao gênero humano, à humanidade universal, é mais fundamental ainda que o pertencimento a determinada sociedade. O exercício da liberdade está contido então na exigência de universalidade e o sagrado, que deixou os dogmas e as relíquias, encarna-se doravante nesses “direitos do homem” recém-

reconhecidos. Se todos os seres humanos possuem um conjunto de direitos idênticos, decorre que sejam iguais em direito: a demanda da igualdade decorre da universalidade.

Todorov, 2008, p. 21

Como vimos na noção de espécie da Biologia, existem características comuns entre os seres humanos, definidas e claras. Mas qual seria o sentido de “comum” entre os seres humanos do ponto de vista do pensamento filosófico e político? Ainda que não propomos esgotar o tema desta pergunta, cabe procurar, de modo sucinto, alguns indicativos de resposta para o objetivo de nossa pesquisa.

De fato, o elemento “comum” entre os seres humanos de que estamos tratando é um dos mais polêmicos, visto que é a partir dele que se torna plausível pensar os Direitos Humanos como erga omnes (literalmente: para todos)228.

227 La mirada cosmopolita o la guerra es la Paz, 2005.

228 No Dicionário de sentenças latinas e gregas: “Essa locução atualmente é usada na linguagem

comum, mas na origem tinha sentido jurídico preciso, indicando um ato de validade universal (...)”.. (TOSI, 2000, p. 528) O Erga Omnes na linguagem jurídica do Direito Internacional é usualmente relacionado aos Estados, ou seja, qualificando uma norma válida para todos os Estados. Não obstante, também é crescente seu uso dentro do contexto dos Direitos Humanos, como atrelada aos seres humanos, isto é, norma(s) válida(s) para todos os seres humanos, para toda a humanidade. Recentemente, no Direito Internacional, a expressão tem sido objeto de grandes discussões. Para uma obra específica acerca do tema Erga Omnes sugerimos: The Concept of International

Temos entendido que, para o pensamento político, esse “comum”, essa “igualdade” entre os seres humanos sedimenta as bases para a construção de um projeto

universal-cosmopolita. É a partir do princípio de igualdade entre os seres humanos

que podemos pensar um projeto e ideal político que não se atenham exclusivamente às – ou não se referencie absolutamente às – fronteiras territoriais. Portanto, a igualdade de que tratamos serve de base de sustentação para o kosmopolites, o cidadão do mundo.

Cínicos e estoicos. Um breve panorama sobre a igualdade e o cosmopolitismo229

Alguns pensamentos de certos personagens da escola cínica bem como da escola estoica, da Grécia Antiga, resultaram nas primeiras faíscas, teóricas e políticas, que deram origem à chama do cosmopolitismo moderno e contemporâneo. Foram os filósofos destas escolas que expuseram, com letras maiúsculas e com pontos de exclamação, que os seres humanos fazem parte de uma mesma coletividade (Humanidade, Kosmos) e, ainda, contrapuseram este princípio às formas existentes das comunidades-Estados de então, propondo uma Kosmos-pólis.

De acordo com Luís Bredlow: “La negación más radical de los valores y de las instituciones establecidas de la pólis fue sin duda la filosofía de los cínicos”. Ainda segundo o autor, a origem argumentativa e política da negação da pólis foi trabalho de Antístenes e de Diógenes.230

University Press, 1997. Para uma referência brasileira que trata do tema, ainda que não de maneira específica, veja-se: O Princípio da universalidade da jurisdição no Direito Internacional Penal –

Mecanismos de implementação do Tribunal Penal Internacional, tese de doutorado de Fernanda

Jankov, defendida na Universidade Federal do Paraná, 2005. Ainda, no âmbito da jurisprudência (à parte o conhecido Barcelona Traction Case – estudo em detalhe por Ragazzi, obra citada), veja-se o Parecer de Augusto Cançado Trindade na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Parecer n. 18, 17/09/2003, sobre a Condição Jurídica e os Direitos dos Migrantes Indocumentados.

229 Para uma introdução ao tema ver A. Long, 2008. O autor traça uma panorâmica autoral que

abarca Diógenes, Homero, Sócrates, Cícero, Marco Aurélio, Philo de Alexandria, dentre outros.

230 Ambos, segundo se sabe, não eram cidadãos: “Antístenes era un nóthos, un 'bastardo' según la

ley de Atenas (era hijo de madre tracia y estaba, por tanto, excluído de la ciudadanía), y a Diógenes, llamado el Perro, el extranjero de Sínope. De Diógenes se cuenta que, cuando le preguntaron de dónde era, dijo: 'Soy ciudadano del mundo, kosmopolítes' (Diógenes Laercio, VI, 63). Es la primera vez que encontramos esa hermosa palabra (…)”. (BREDLOW, 2007, p. 5)

Ainda sobre a “negação do Estado” por parte dos cínicos e estoicos, John Moles defende que essa postura era mais particular aos cínicos e a Zenão (o primeiro dos estoicos e fundador da Stoa). Alega o autor: “Como Diógenes, Zenão rejeita os

démoi (‘povos’, ‘cidadanias’) e poleis (‘Estados’) existentes, embora os estoicos

posteriores não concordassem com isso”. (MOLES, 2007, p. 133)

Diógenes, o Cínico, por exemplo, “enseñaba que la única constitución justa, la única

politeía justa es la que hay en el universo, en el kósmos (mónen te orthèn politeían eîna tèn en kósmoi). (BREDLOW, 2007, p. 6)231

A ideia de que o homem é um cidadão do mundo, kosmopolites, pode ser derivada de uma noção de igualdade natural entre os seres humanos. Essa igualdade entre eles permite a ideia/categoria da humanidade ou da cidadania mundial. Esta última, por sua vez, é vista como valorativamente superior à categoria do nacional ou, ainda, invalida a categoria do nacional.

No que tange à igualdade entre os seres humanos, os estoicos especificaram certas características que podem servir de parâmetros classificatórios para o “humano”. Aquilo que os seres humanos têm em comum reside fundamentalmente, segundo Ricardo Salles, nas características de “impulso y krisis”. Prossegue o autor: “La idea aquí es (...) que esa combinación única de actividades mentales es suficiente para que una entidad pertenezca a la clase de los humanos”. (SALLES, 2006, p. 92)232

Seja qual for a “propriedade” que faz com que os homens passem a ser vistos como parte “de uma mesma família”, partícipes da Humanidade, indivíduos de uma mesma espécie etc, o cosmopolitismo estoico se construiu, segundo Bredlow, como um “programa político”. Continua:

231 A tradução de Cecília Camargo feita para o artigo de Jonh Moles (Cosmopolitismo cínico, obra

citada) para esse trecho citado de Diógenes (D.L. VI, 72) é: “‘O único bom governo é o do cosmos’ (monén... orthén politeian ten en kosmói). (MOLES, 2007, p. 123)

232 Sobre o conceito de krisis, Salles explica: “En la filosofia estoica, el término ‘krisis’ puede referirse

a dos conceptos distintos. Uno de ellos es el de juicio en el sentido de una afirmación verbal: emitir una krisis consiste en decir, o decirse a uno mismo, que algo es el caso. En este sentido, una krisis es la combinación del acto mental de sentir a una proposición y del acto de hablar que consiste en emitir afirmativamente (a uno mismo) la oración correspondente. El otro sentido (...) es el de una aceptación crítica de una imprecisión. En cualquier caso, una krisis se acompaña del uso de la razón y, por ello, consiste en algo especificamente humano”. (SALLES, 2006, p. 92-3)

(...) pues Zenón propugnaba, según refiere Plutarco, que “no vivamos ordenados por Estados ni naciones, distinguidos cada cual por sus propias nociones de lo justo, sino que todos los hombres nos tengamos por compatriotas y conciudadanos, y que haya un solo modo de vivir y un solo orden y mundo, como de grey que comparte un mismo prado criándose bajo la ley común”. (BREDLOW, p. 6).233

Note-se que o cosmopolitismo não é passivo, no sentido de que apenas realiza um diagnóstico de uma igualdade entre todos os seres humanos e de um coletivo que os aglutina. O cosmopolitismo é ativo, eminentemente político. A cidadania, os direitos, são elementos importantes na proposta cosmopolita e devem acompanhar o novo-homem. Tal cosmopolitismo não nega a Política, mas subverte-a. Nega a política particular, da polis, da cidade-Estado, e propõe uma política universal, com direitos e cidadania universais.

Em síntese, o que importa mostrar aqui é a gênese da ideia e do projeto universal- cosmopolita, ou seja, da ideia de um cidadão mundial. Encontramos essa gênese nos cínicos e estoicos, cujas escolas configuraram-se, enquanto defensoras de um cosmopolitismo, como oposição a ideias e práticas políticas de cidadania nacional, ou seja, de uma cidadania (polités) pautada pelo direito-espiritual da cidade-Estado, tipicamente defendidas por Platão e Aristóteles, por exemplo.234 O projeto dos

cínicos e estoicos pretendia, portanto, superar a lógica binária e de oposição do nacional/estrangeiro, do grego/bárbaro.

233 As referências citadas por Bredlow são: Plut. De Alex. fort. I, 6, 329a-b= SVF I, 262= fr. 19 Festa=

fr. 12 Baldry.

234 Comenta A. Long: “Before Stoicism, the great contributions to political thought of Plato and

Aristotle presupposed the small and nationalistic city-state as the normative context of community life”. (LONG, 2008, p. 51) Em Aristóteles, isto pode ser verificado no prefácio da Política: “O Estado, ou a sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. (...) As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro (...)". (ARISTÓTELES, 2000, p. 5) Com relação aos “bárbaros”, são, ao longo da obra, apontados como inferiores aos atenienses. Na República de Platão a cidade aparece como uma necessidade política de organização. Uma das grandes questões, portanto, é a busca de uma cidade ideal, ou a mais justa possível. O seguinte trecho (Livro II) ilustra como a cidade é uma necessidade em termos político-organizacionais: “Sócrates – O que causa o nascimento a uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas (...)”. (PLATÃO, 1999, p. 54) Com respeito à cidade ideal, a seguinte passagem pode ser útil (Livro IV), novamente na voz de Sócrates: “(...) aliás, ao fundarmos a cidade, não tínhamos em vista tornar uma única classe eminentemente feliz, mas, tanto quanto possível, toda a cidade. De fato, pensávamos que só numa cidade assim encontraríamos justiça (...)”. (PLATÃO, 1999, p. 116)

A comunidade dos cínicos e estoicos não era a comunidade-nacional, mas a comunidade-mundial (como proposta ou utopia). E essa proposição só era possível tendo em conta uma certa igualdade entre os seres humanos.

A Igreja Católica e a universalidade

Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, por meio de todos e em todos.

Paulo, EFÉSIOS, 4, 6

Na Idade Média, a noção de universal/universalidade era, eminentemente, uma questão religiosa. Tal noção teve repercussão na cultura do cotidiano, na formação da identidade individual e coletiva, nas guerras, entre outros aspectos, em grande parte pela influência do cristianismo propagado pela Igreja Católica. Esta tradição filosófico-teológica não só influenciou a época medieval, como também deixou marcas profundas nas instituições, sociedades e corpos ocidentais modernos – o que foi reconhecido e esmiuçado por um de seus mais ferrenhos opositores, F. Nietzsche.

Parte dessa filosofia, universalista-cristã, encontra sustento na premissa básica de que todos são iguais, uma vez que todos são filhos de Deus-criador. Deriva da Criação e de uma mesma Paternidade, uma igualdade fundamental entre os homens. Entretanto, diga-se de passagem, não decorre desse constructo teológico que todos os homens serão salvos. Muitos deles podem ter como destino a

condenação à perdição infernal. Ainda sim, em essência, todos os seres humanos

são considerados iguais e possuem, de igual maneira, a possibilidade de alcançar, após a morte, o Paraíso. Na Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII:

(...) se se obedecer aos preceitos do cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. Duma parte e doutra se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente nascidos de Deus, seu Pai comum; que Deus é o seu único e comum fim, que só Ele é capaz de comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade

perfeita e absoluta; que todos eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos por Ele na sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de fraternidade os une, quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor, que é «o primogênito de muitos irmãos». (Encíclica Rerum Novarum, Leão XIII, 1891)

Resulta dessa teologia uma igualdade natural entre os homens, como vimos, que por sua vez permite uma unidade da humanidade. Ambas as considerações, não se deve omitir, são fundamentos não só para os Direitos Humanos cristãos mas também para os Direitos Humanos modernos.

Sobre os Direitos Humanos propriamente ditos ressalte-se a Encíclica Pacem in

Terris – A paz de todos os povos, na base da verdade, justiça, caridade e liberdade

do Papa João XXIII. Destacamos o seguinte trecho da “Iª Parte - Ordem entre os seres humanos”:

Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres. (...) 9. Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis. (Encíclica

Pacem in Terris, João XXIII, 1963)

O trecho é, em seu início, de uma modernidade impressionante. A “pessoa, sujeito de direitos e deveres” pode ser vista como o cidadão tão invocado pelas revoluções estadunidense e francesa. De igual maneira, essa pessoa é “dotada de inteligência e vontade livre”, o que nos remete, mais uma vez, aos contratualistas e a Kant. Num segundo momento, aparece a métrica divina, transcrita no trecho como da “natureza”. Os direitos e deveres emanam da “natureza”. Combinam-se, portanto, duas tradições que, segundo nosso entendimento, mesclam-se para formar os Direitos Humanos modernos.

Recorrendo ao Novo Testamento, para fundamentar também nossas apreciações na Bíblia, a epístola de Paulo aos Efésios, comentando sobre as obras de Jesus, pode ser considerada um dos trechos mais paradigmáticos do princípio universalista na doutrina Cristã. Diz o apóstolo:

Ele é nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro da separação e suprimindo em sua carne a inimizade. (EFÉSIOS, 2, 14)

Assim, ele veio e anunciou a paz a vós que estáveis longe e a paz aos que estavam perto, pois por meio dele, nós, judeus e gentios, num só Espírito, temos acesso ao Pai. (EFÉSIOS, 2, 17 e 18)

Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. (EFÉSIOS, 2, 19)

As perspectivas da destruição dos muros; da promoção da unidade humana, da “família de Deus”; da possibilidade de olhar o homem como parte de um mesmo coletivo e não mais como “estrangeiros e adventícios” marcam, de forma profunda, a contribuição da Igreja para o estabelecimento de uma cultura ocidental dos Direitos Humanos de caráter universal. Ela contém em si uma potência subversiva de romper com a ontologia política do amigo-inimigo, para realçar uma potencialidade fraterna advinda da igualdade fundamental dos homens.

Ainda, na Epístola para os Gálatas, é mais uma vez o apóstolo Paulo quem elimina a diferenciação nacional, de classe e gênero, privilegiando a unidade da espécie humana.235

Voltando à Pacem in Terris, de João XXIII, encontramos um trecho de suma importância para esse recorte universalista do cristianismo. A passagem deixa margens à interpretação de que as fronteiras territoriais soberanas não devem se constituir num óbice para a migração (tema, podemos afirmar mais uma vez, extremamente atual e paradigmático):

235 “(...) vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós que fostes batizados em

Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus.” (Paulo, Gálatas, 3, 26 a 28) Note-se que nesta citação podemos interpretar que haveria uma necessidade da conversão (batismo) para efetivar-se o princípio do erga omnes. Nesse sentido é possível a dúvida: para ser considerado um ser humano universal, filho de Deus, “nem judeu nem grego...”, seria preciso sine qua non se converter? De acordo com Dom João Evangelista (Mosteiro de São Bento), é preciso notar que a igualdade entre judeus e gregos, homem e mulher, é “em Cristo”. Por outro lado, se considerarmos que todos podem ser universais, todos podem ser convertidos, isso já não pressuporia um universal? Uma igualdade de todos os homens? Já não seriam todos filhos de Deus, cabendo a apenas alguns se converter e, ao fim e ao cabo, todos seguiriam sendo universais-filhos de Deus? Ainda, sobre a questão, Lafer parece concordar que existe uma universalidade cristã que influenciou os Direitos Humanos: “O cristianismo retoma e aprofunda o ensinamento judaico e grego, procurando aclimatar no mundo, através da evangelização, a ideia de que cada pessoa humana tem um valor absoluto no plano espiritual, pois Jesus chamou a todos para a salvação”, e depois de citar São Paulo, como fizemos, conclui que “neste sentido, o ensinamento cristão é um dos elementos formadores da mentalidade que tornou possível o tema dos direitos humanos”. (LAFER, 2001, p. 119)

Deve-se também deixar a cada um o pleno direito de estabelecer ou mudar domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão, e mesmo, quando legítimos interesses o aconselhem, deve ser-lhe permitido transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se. Por ser alguém cidadão de um determinado país,

não se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si. (Encíclica Pacem in Terris, João XXIII, o

grifo é meu)

Os contratualistas, a igualdade e a universalidade

Partindo para os contratualistas, como vimos no Capítulo 1 (item “Herança estadunidense”), Locke, logo na abertura de seu Segundo Tratado Sobre o governo

civil, situa a igualdade a partir de um complexo de ideias entrelaçadas.

O núcleo principal da igualdade é, no entanto, a constatação de que os homens são “criaturas da mesma espécie”, “são nascidos sem distinção” e que possuem as “mesmas faculdades”. A concepção de Locke se assemelha à concepção biológica. Da igualdade biológica advêm (ou estão lado a lado)236 certas igualdades políticas, como “todo poder e jurisdição são recíprocos”, os homens têm “igual parte nos benefícios da natureza” e não devem ter “nenhuma subordinação ou sujeição”. 237

Quando passamos da parte dedicada ao “estado de natureza”, em Locke, para a parte “Do início das sociedades políticas” (Capítulo VIII do Tratado), a compreensão é de que a partir da condição de igualdade advém o pacto social (a criação de uma comunidade com um governo, configurando um corpo político). Ademais, uma vez formado o governo, origina-se uma igualdade enquanto expressão das mesmas leis para todos238, ou seja, os homens passam a ter garantias e deveres diante de uma mesma lei (emanada das decisões da maioria):

236 O “lado a lado” significa que não temos uma temporalidade definida, no sentido de que as

perguntas “quem nasceu de quem?” ou “quem tem origem em quem?” ou "quem surgiu primeiro?" não têm sentido ou são desmerecidas (sem importância).

237 A citação inteira do trecho está no item “Herança estadunidense” desta tese.

238 Feitas as ressalvas com relação à escravidão, conforme se pode ler na crítica feita no capítulo I

(…) cada homem, consentindo com os outros em instituir um corpo político submetido a um único governo, se obriga diante de todos os membros daquela sociedade, a se submeter à decisão da maioria e a concordar com ela (…). (LOCKE, p. 140)

Locke demonstra na passagem acima que, quando um homem entra na sociedade com governo (não é tautologia usar essa expressão neste caso), submete-se às leis dessa sociedade. Por detrás de toda a argumentação está o fato de que um homem, ao entrar num corpo político, está submetido a um mesmo governo e direitos que um outro homem nessa mesma condição. Ou seja, deparamo-nos com o princípio de

igualdade dos homens, dentro de uma sociedade e sob a égide do direito. Os

homens são iguais porque se encontram submetidos a uma mesma Lei.239

Em Rousseau, o tema da igualdade torna-se bastante complexo. Uma de suas obras mais importantes (para a ciência política ao menos) tem por título Discurso sobre a

Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (DOD). Simples