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Capítulo 1. Os Kalapalo do Alto Xingu: uma abordagem

1.2 Breve etnohistória Kalapalo

1.2.3 A abertura de Tanguro e suas relações com Aiha

A aldeia Tanguro fica às margens do rio homônimo, no local em que suas águas chegam ao Culuene. Uma lagoa também desemboca ali, o que segundo os moradores faz com que a região seja boa para a atividade pesqueira. O local é descrito no mito de origem Kalapalo como ponto de parada dos peixes no caminho até o Sagihengu, terra considerada sagrada por ter sido onde ocorreu o primeiro Egitsü. Os peixes pernoitaram na região de Tanguro para dançar e, em seguida, continuaram a subir o rio. A dança dos peixes é descrita com movimentos circulares que se assemelham com o movimento no local em que as águas se encontram.

A aldeia fica bem nas margens dos rios, o que a diferencia um pouco das demais aldeias, abertas talvez em outros tempos, em que a proteção aos ataques devia ser mais cuidadosa. Os ataques dos índios bravos geralmente vinham dos rios, por isso as aldeias eram abertas a boas distâncias – Aiha, por exemplo, deve ter uns 12 quilômetros do Culuene. Além de ser descrita na geografia mitológica, a região é estratégica por ser o primeiro ponto no retorno que parece estar em percurso dos Kalapalo na direção sul, onde se encontram seus principais sítios arqueológicos, como Kunugijahütü e Sagihengu. Tanguro é estratégica nessa retomada por sua localização. É um meio caminho, nos dias atuais, entre Aiha e o PIV Culuene, acesso à cidade via fluvial e que faz a fronteira do PIX com a fazenda Saionara.

Nessa região de fronteiras, cada vez mais visitadas por turistas que desejam realizar a pesca, é imperioso que ocorra fiscalização, o que o aumento no número de aldeias também é interessante, sendo que a proximidade com os rios passa a ser necessária. Inclusive, não são poucos os problemas envolvendo pescadores, desavisados ou não, que acabam por ultrapassar as fronteiras e, algumas vezes, já foram surpreendidos pela vigilância indígena – num caso, o barco e os equipamentos foram tomados pelos indígenas e os pescadores deixados a pé até a pousada em que se encontravam. Parece crescer a cada dia a importância da abertura de novos postos de vigilância em virtude das fronteiras com a produção de soja principalmente, mas também pela prática da pesca e da caça. As áreas verdes estão cada vez menos presentes nos mapas via satélite, o que demonstra o avanço em direção às terras indígenas.

Mapa 2: Avanço do desmatamento nas fronteiras do PIX41

Do mesmo modo, algumas fronteiras e regiões fundamentais para a reprodução dos peixes estão cada vez mais ocupadas por ―pousadas de pesca esportiva‖ que oferecem as condições para a prática da pesca aos turistas vindos do Brasil e do exterior. A queda no número de peixes é sentida pelos pescadores que normalmente atribuem à baixa a essa atividade exercida nas pousadas. Tanto é que nem mesmo quando as pousadas são administradas pelos indígenas a maioria da população não gosta da ideia. Uma vez, um rapaz de Tanguro convidou uns amigos de Canarana para uma pescaria numa das praias perto da aldeia, reconhecida por sua grande quantidade de peixes, especialmente de couro, como pintado (Pseudoplatystoma corruscans), pirarara (Phractocephalus hemioliopterus) e piraíba (Brachyplathystoma filamentosum) – peixes que fazem a alegria daqueles que gostam da emoção promovida pela pesca42. A pescaria

41 Fonte: http://www.mpi.nl/DOBES/projects/trumai-pt/TrumaiMAPA-XINGU.jpg

42 E que não interessam tanto aos pescadores Kalapalo, geralmente, por seus tamanhos e por serem peixes

ocorreu durante a madrugada e pela manhã os visitantes foram conhecer a aldeia rapidamente antes de retornarem à Canarana. Todavia, foram alertados a irem com apenas um barco e que deixassem o freezer com os peixes para que ninguém na aldeia os visse. A diminuição no número de peixes não deve ser atribuída a uma só causa, mas certamente as fronteiras do PIX devem ser bem vigiadas para que a pesca predatória não afete gerações futuras, algo que os Kalapalo já reconhecem como indispensável. Se antes a construção das aldeias deveria se afastar dos rios por ser o local de onde vinham os inimigos, hoje as aldeias e os PIV devem ser próximos para vigiar a atuação dos ―inimigos‖, no caso, pescadores e caçadores clandestinos.

A criação de novas aldeias e postos de vigilância acaba por dinamizar a fragmentação o que só pode ser recuperado com a aliança ritual. A distância geográfica entre as famílias de chefes Kalapalo só pode ser superada com a organização conjunta de seus rituais, realizados em Aiha principalmente, mas que começa a ser cada vez mais frequente em Tanguro. A retomada sul iniciada com Tanguro em direção da região em que ocorreu o primeiro Egitsü, um sítio mitológico para os Kalapalo, que hoje vêem como possível habitação real, é indicativa não só da relação entre os chefes dos subgrupos karib, mas também de como toda a organização ritual deve ser construída, elaborada no tempo, o que vai depender da contingência política e da atuação dos seus chefes. As relações entre Aiha e Tanguro certamente não são de hostilidades, o que deixou de ocorrer mesmo em relação com outros povos, mas também não são ausentes de conflitos, como indica as acusações sobre o motivo de saída dos moradores de determinada aldeia, a feitiçaria.

Minha pesquisa, embora tenha sido durante um bom tempo passado em viagens a outras aldeias, principalmente Aiha, foi realizada em Tanguro e com as pessoas de Tanguro. As diferenças entre as aldeias são, por vezes, reavivadas quando se quer exaltar o pertencimento a uma ou outra. Conversas realizadas com duas meninas sobre o mesmo tema talvez indiquem alguma direção sobre as relações entre as aldeias. Numa certa feita, na aldeia de Aiha, estava conversando com uma menina de uns 10 anos, isto é, no limiar entre ser criança e entrar para a reclusão, sobre a viagem que faríamos dali uns dias para o Egitsü de Tanguro. Fazia alguns dias que estava em Aiha e disse que gostaria de voltar para Tanguro. Com a interjeição característica de ―nojo‖, cuspindo no chão e dizendo kutsu, ela fez uma careta e disse não gostar de Tanguro.

Não que a opinião de uma menina possa ser afirmação sobre as diferenças entre as aldeias Kalapalo, mas levei aquilo em consideração. Numa outra oportunidade, quando estávamos em sentido contrário, saindo de Tanguro rumo a Aiha, conversei com outra menina, prima daquela primeira, em idade semelhante, o que ela achava de nossa viagem. Com mais sutileza, pois não usou a expressão de nojo, mas com mais ênfase, devido à força de suas palavras, ela disse não gostar de viajar para Aiha porque lá era o lugar de feiticeiros. As acusações são mútuas, como se pode ver, o que nos faz acreditar que a separação que ocorreu inicialmente não é uma questão de apenas dois contingentes, haja vista que ela continua a ocorrer. Mesmo as aldeias menores que se abriram nos últimos anos são colocadas na conta das acusações de feitiçaria.

Aiha e Tanguro se apresentam como pólos interdependentes o que se manifesta quando da realização dos rituais interétnicos. Apenas as aldeias maiores podem realizar tais rituais, por conta de terem chefes de verdade e também pela questão organizacional – o que depende diretamente do primeiro motivo. A realização dos rituais é a demonstração da chefia, sua exibição no plano regional e apenas aldeias de verdade podem realizá-los. Aldeias de verdade são aquelas que têm chefes de verdade, casa de chefe de verdade, patrocinam rituais de verdade. O termo será mais elaborado no tópico seguinte, mas quer dizer algo como ―autêntico‖, ―original‖: hekugu. Esse sufixo é encontrado em várias línguas alto-xinguanas, como já afirmado por autores como Viveiros de Castro (1977) e Franchetto (1989). As relações que aqui importam, entre Aiha e Tanguro, também podem ser lidas pela movimentação recente de Tanguro em patrocinar esses rituais em homenagem aos seus próprios chefes.

Isso quer dizer que Tanguro está numa co-relação política com Aiha, mas, assim como é fundamental a aliança entre as duas na realização ritual, os chefes de Tanguro conseguiram com que os principais chefes de Aiha também se aliassem a eles quando de rituais na aldeia. A formação dos times de luta é um exemplo bastante claro para esse complexo sistema de convites interétnicos. Os lutadores de Tanguro e de Aiha, e de outras aldeias Kalapalo, não competem entre si, sejam anfitriões ou convidados, os que se reconhecem Kalapalo lutam no mesmo time. Aiha e Tanguro, embora possam estar em lados opostos no plano da chefia, estabelecem relações de cooperação quando da homenagem a seus chefes falecidos. Cooperação que também se percebe com os Matipu e Nahukua, mas que não se observa em relação aos Kuikuro. As relações entre os subgrupos karib, tomadas a partir da formação dos times de luta, será evidenciada

etnograficamente. Por hora, o interesse é a demonstração de que a autonomia ao nível da aldeia é fundamental para pensarmos as relações políticas entre elas.

Tanguro foi aberta entre o final de 1970 e começo de 1980. A despeito de um ritual funerário Egitsü em 1999, Tanguro realizou seu próximo ritual apenas em 2009 – quando também realizou um Tiponhü43–, seguido de um Egitsü em 2010 e um em 2013 a ser realizado em agosto. Percebe-se que a construção dessa autonomia da aldeia é um processo em longo prazo, mas que pode alterar a conjuntura das forças políticas. Se, em algum momento e lugar, esses grupos passaram a co-residir e com isso gerar um etnônimo comum, ao passar do tempo a alteridade voltou a ganhar força com a fissão entre duas aldeias.

Entretanto, pensamos que, além desses motivos organizacionais e de chefia e da questão anunciada da feitiçaria, será importante ressaltar alguns aspectos econômicos, pois a expansão populacional deve ser resolvida em questões territoriais (como afirmou Mutuá Mehinaku 2010). Aumenta o número de pessoas, diminui a quantidade de peixes nos locais de pesca e as roças ficam cada vez mais longe das aldeias, o que afeta diretamente na produção. A escolha dos sítios não é aleatória e, desde a abertura de Tanguro procede através de locais que componham a geografia mítica desse grupo karib ou mesmo responde a questões estratégicas.

Tanguro é descrita no mito de origem, ao passo que a retomada da terra Pequizal de Narüvütü é também um resgate étnico. Ao mesmo tempo os postos de vigilância, que basicamente são como as aldeias, porém sem a prerrogativa de organizar rituais, servem como locais estratégicos na manutenção e vigilância dos limites do parque. Entendemos que essa fragmentação das aldeias é mais uma soma de todos esses fatores do que de qualquer um deles tomados isoladamente. Mesmo que as acusações de feitiçaria sejam o gatilho para essas mudanças, especialmente de Aiha para Tanguro, vale dizer que uma aldeia não é aberta da noite para o dia.

Os primeiros moradores de Tanguro confirmam que chegaram pela primeira vez com intenção de formar uma nova aldeia no período da seca de 1978 e 1979, quando realizaram as primeiras queimadas e limpeza do terreno. Após essa primeira etapa o grupo retornou à Aiha e somente em 1980 regressou para fazer a primeira plantação de mandioca. Ainda no ano seguinte, quando a roça já estava pronta para a colheita é que

as primeiras duas famílias se mudaram. Nesse meio tempo construíram as primeiras casas e foi somente depois de toda essa preparação que as próximas duas ou três famílias vieram e se começou a construção das casas no tradicional estilo circular. As famílias que vieram primeiramente foram as dos donos da aldeia Vadiuví e Madjuta, seguidos de Kurikaré, Kassi (Narüvütü), Omã e Djwuá, reconhecidos por serem de famílias de chefes na genealogia política Kalapalo.

Outro importante ponto a dizer sobre as famílias que se mudavam para Tanguro é que, ao fazer uma breve pesquisa sobre a genealogia e a onomástica em parceria com Franco Neto (em 2007), percebemos uma incrível variedade de descendentes de diversos povos. No total fizemos um levantamento nas 11 casas da aldeia, sendo que em quase todas apareceram ancestrais ―misturados‖, com a peculiaridade de que em cada casa aparecia primordialmente apenas uma etnia diferente dos que se reconheciam Kalapalo. Alguns exemplos. Na casa que me hospedei a mãe de meu anfitrião era Mehinaku. Ele se casou com duas irmãs que são suas primas cruzadas, portanto o pai das suas esposas também era Mehinaku. Na casa ao lado morava sua irmã, casada com um homem Nahukua por pai e mãe44. Uma filha do casal também se casou com um Nahukua que veio morar na aldeia. Numa outra casa, a presença mais marcante é a dos Narüvütü, a família de Kassi, os mesmos que estão recorrendo com a abertura da nova aldeia na terra conquistada. Numa quarta casa, a presença é a dos Matipu, sendo que no Egitsü de 2011 naquela aldeia um dos donos foi Urissé Matipu, que reside em Tanguro e que tem duas de suas irmãs casadas com o chefe Aritana Yawalapiti. Por fim, ainda em duas casas estão presentes os Kuikuro, numa por conta de uma mulher e na outra por conta de um homem.

Não será o momento de ilustrar essa variedade através de genealogias; antes, a proposta é deixar claro como as relações entre Aiha e Tanguro não ocorrem apenas entre um contingente Kalapalo, como se disputassem alguma hegemonia sobre o etnônimo. A questão é bem mais complexa, uma vez que envolve uma variedade de povos representados e que buscam coisas diferentes. A variedade ajuda, em partes, a explicar o elevado número de versões para o movimento migratório e para as versões sobre o nome que usam em comum atualmente.

44 Talvez seja indício da moradia comum entre Kalapalo e Nahukua descrita nas versões de meu anfitrião

Em resumo: Tanguro é uma região descrita no mito de origem, faz parte da geografia mitológica quando é narrado o caminho do povo do peixe até o local sagrado do primeiro Egitsü (Sagihengu). A descrição enfatiza que o local é ponto de parada de peixes, o que em outros exemplos é indicativo de como a dieta desses povos passa a substituir a carne pelo peixe, o que Marcela Coelho chama de ―virar gente‖ (2001), nesse caso pela dieta. Uma disputa faccional, que opunha pelo menos dois subgrupos karib sob uma mesma denominação, foi reavivada quando as acusações de feitiçaria pesavam de lado a lado. Tudo isso numa geração que depois de um grave surto de sarampo na década de 1950, que diminuiu drasticamente o contingente populacional, viu sua população retomar o crescimento. Basso registra 110 pessoas em 1968, ao passo que somente em Tanguro nesse levantamento registramos 154 moradores. Uma estimativa é que os Kalapalo devam somar por volta de 700 pessoas distribuídas entre as aldeias Aiha, Tanguro, Paraíso, Barranco Queimado, Pedra, Kunugijühütü, Lagoa Azul e os postos de vigilância PIV Culuene, PIV Tangurinho e famílias que residem em Canarana e Brasília45.

Por isso tomamos a soma de fatores que fizeram ocorrer simultaneamente à expansão territorial e populacional, ao que as disputas internas apenas se afloraram, principalmente com Tanguro assumindo a prerrogativa para a realização de festas em homenagens a seus chefes. Tal disputa política em torno da chefia será aqui tomada a partir da relação entre as aldeias Kalapalo na formação de seus times de luta e nas posições assumidas por seus lutadores na ordem dos combates.

Para o caso Kalapalo, se o primeiro momento em que se pode falar em ―localismo monográfico‖ é em Kuapügü, a partir da junção de pelo menos dois principais contingentes karib, Amagü e Akuku, é após as delimitações de novas aldeias, em que o papel da chefia é fundamental, que se reavivem certas distinções. A prerrogativa para a realização dos rituais e o recebimento de convidadores é indício dessa diferença. Uma pergunta que talvez devesse ser feita é até que ponto as relações entre Aiha e Tanguro se manterão conectadas com a primeira sendo iho da segunda. Tanguro estaria em vias de se tornar ela mesma uma aldeia iho de outras demais, como mostram o recebimento dos convidadores e as realizações rituais em anos recentes? Essa fragmentação ainda não se restringe a oposição entre Aiha e Tanguro e a delimitação da Terra Pequizal de Narüvütü é indicativa da multiplicidade no

reconhecimento da alteridade mesmo entre os grupos locais que são costumeiramente tratados por seus etnônimos mais comuns.