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Migração, expansão, fragmentação: o roteiro Kalapalo

Capítulo 1. Os Kalapalo do Alto Xingu: uma abordagem

1.2 Breve etnohistória Kalapalo

1.2.1 Migração, expansão, fragmentação: o roteiro Kalapalo

A movimentação dos grupos indígenas ao longo de uma vasta extensão territorial e no decorrer do tempo não é fácil de ser acompanhada. É nesse sentido que a proposta de uma ―etnohistória‖ foi formulada em diferentes contextos e por diferentes autores na tentativa de aproximar os conhecimentos tradicionais das populações, quem eram os seus outros e quais eram as suas histórias, tomados conjuntamente com os conhecimentos históricos sobre a migração desses povos frente inúmeras dificuldades, quer pela relação com grupos exógenos ou com as frentes de contato. Mas as narrativas míticas não deixam de fazer parte constituinte dessa história, o que não se colocaria mais em termos de oposição entre etnografia e historiografia. Ambas passam a ser consideradas quando o problema consiste em descrever o material etnográfico em vistas dos acontecimentos ocorridos a esses povos ao longo da história.

Para o caso dos karib do Alto Xingu Basso relata em síntese a movimentação partindo das Guianas em direção ao sul:

Algumas semelhanças entre mitos kalapalo e ye´cuana sugerem que os ancestrais dos Karib xinguanos deixaram a região das Guianas em tempos recentes, certamente depois de contatos com espanhóis, intensificados na região durante a segunda metade do século XVIII. No entanto, parece haver, do ponto de vista cultural, pouco em comum entre os Kalapalo e os povos karib setentrionais, sendo difícil distinguir qualquer característica propriamente "Karib" nos aspectos de seu modo de vida e visão de mundo. Permanece incerto quando o grupo conhecido como Kalapalo foi contatado por estranhos pela primeira vez. Indivíduos identificados à aldeia que portava este nome foram medidos pelo antropólogo alemão Hermann Meyer durante um estudo antropométrico dos povos do Alto Xingu, realizado no final do século XIX. Em 1920, o Major Ramiro Noronha, da Comissão Rondon, realizou pesquisas na região do Rio Kuluene e fez a primeira visita registrada às aldeias dos Kalapalo, Kuikuro e Anagafïtï (Naravute, na literatura [Narüvütü]). Os últimos, particularmente, sofreriam as conseqüências dessa visita, que suscitou a primeira de uma série de epidemias que destruiu a integridade de sua comunidade.

O nome Kalapalo, inicialmente atribuído ao grupo por não-índios, tem como referência uma aldeia com esse nome abandonada provavelmente há menos

de cem anos. Naquele tempo, pessoas mudaram de Kalapalo para um sítio vizinho chamado Kwapïgï [Kuapügü], que, por sua vez, foi sucedido pela aldeia Kanugijafïtï [Kunugijahütü], abandonada em 1961. Todos esses sítios estão localizados a cerca de meio dia de caminhada na direção leste do Kuluene, ao sul da confluência com o Rio Tanguro. Os últimos remanescentes de um grupo Karib importante, chamado Anagafïtï [Narüvütü], juntaram-se aos habitantes de Kanugijafïtï depois da epidemia de gripe na década de 1940 e, naquele momento, havia Kuikuro, Mehinako, Kamayurá e Waujá vivendo entre os Kalapalo.

O que chamamos hoje de "Kalapalo" é, então, uma comunidade composta de uma gente cujos ancestrais foram associados a diferentes comunidades, com uma maioria oriunda ou descendente de pessoas que viveram em Kanugijafïtï34. (grifos nossos, Basso 2002).

A sequência dos acontecimentos descritos por Basso nesta passagem relata desde a saída das Guianas, em idade incerta, por volta do século XVIII, até a migração no sentido sul-norte de um contingente de grupos locais karib que se mudou para o interior da área delimitada pelo PIX formando então uma única aldeia, chamada Aiha.

Na versão que registramos durante nossa pesquisa algumas aldeias ocupadas pelos ancestrais Kalapalo conferem com o descrito por Basso. Em contrapartida, se ampliarmos o conjunto de relatos sobre a movimentação Kalapalo contextualizada em autores como Franco Neto e Guerreiro Junior teremos uma miscelânea que nem sempre indica uma única direção ou ocupação. Começaremos com a versão recolhida junto ao nosso anfitrião para em seguida tomá-la conjuntamente com essas outras.

A primeira aldeia Kalapalo teria sido Ahuahütü localizada ao sul do PIX (próximo de onde hoje se encontra a fazenda Saionara, que faz fronteira com o parque), uma aldeia grande, com todas as etnias morando juntas, porém com muita muriçoca, obra de um feiticeiro. Nhahügü é um demiurgo poderoso que tem o poder de classificar as coisas. Ele ensina para Temetihü, outro personagem ambíguo da mitologia, o caminho até Kuapügü e com isso toda a geografia e a hidrografia da região é alvo de classificação. Com Nhahügü novas regiões, lagos e rios são descobertos.

Temetihü, então, parte com seus sobrinhos e descobre esse lugar bonito que lhe foi indicado, com muitos peixes, tucunaré e trairão. Neste lugar também não havia

muriçocas, então ele e seus sobrinhos começam a fazer queimadas e abrir as roças, o primeiro passo para uma nova aldeia.

Assim que a aldeia está pronta fazem uma reunião apenas entre os familiares e começam a se mudar para esse lugar chamado Kuapügü. Com o tempo outras pessoas começam a visitar o lugar e ficam por lá, o que fez com que Kuapügü crescesse muito. O responsável pela abertura da aldeia, Temetihü, não era anetü (―chefe‖) por isso precisa ―comprar‖ um cacique, que foi morar naquele lugar. Com o passar do tempo, outra aldeia foi criada porque Kuapügü já tinha muita gente. É o caso da abertura da nova aldeia que ficou conhecida como ―Kalapalo‖ que quer dizer ―do outro lado‖ na língua arawak, isto é, onde a aldeia foi aberta, do outro lado do córrego onde se localizava Kuapügü.

A população continuava a crescer e depois da abertura de Kalapalo outras duas aldeias foram abertas: Kunugidjahütü (kunugija – tipo de bambu/hutu – lugar) e

Ngaguhütü (ngagu – peixe pequeno/hutu – lugar) e teve um pessoal que foi para Kankgagü, esta última morada de bons guerreiros, ótimos atiradores de flechas35.

Antes todos estavam juntos na região em que hoje se encontra a fazenda Saionara, que faz fronteira com os limites do PIX, depois foram atacados e resolveram se mudar para o lago Itavununu (ainda juntos). É a partir do lago Itavununu que os grupos se dividem e formam as etnias que hoje são reconhecidas:

Foi das margens do Itavununu, considerado também um lago sagrado dos ancestrais karíb, que os Kalapalo, Kuikuro, Tsuva, Matipu, Nahukwá e Naruvotu se desmembraram e formaram grupos locais distintos. Cada um deles foi viver na região em que se encontram atualmente. Os subgrupos formadores dos atuais Kalapalo migraram novamente para as cabeceiras do Culuene e de seus afluentes, o Tanguro e o Sete de Setembro, juntamente com os Naruvotu. Estes grupos retornariam assim aos territórios originais em que habitavam os Karíb do alto Xingu36.

Não bastasse às dificuldades em se traçar o movimento migratório desses grupos karib oriundos das Guianas, o próprio etnônimo já traz incertezas que devem ser mencionadas. ―Kalapalo‖ parece mesmo querer dizer ―do outro lado‖, isto é, uma

35 Na versão de Guerreiro Junior o responsável por abrir Kalapalo é um homem chamado Kapita que era

morador de Kangagü. Isso demonstra como a linearidade nas narrativas nem sempre é a mesma de acordo com as versões.

palavra que foi de diferentes maneiras atribuídas a um grupo de pessoas que conviviam em determinada aldeia. A literatura traz pelos menos três versões para o nome.

Na versão que recolhi a primeira aldeia a fazer a reunião desse conjunto de grupos locais foi Kuapügü. O mesmo ocorre em Franco Neto e Guerreiro Junior, com a associação desse pessoal com uma aldeia chamada de Akuku, que seria o nome ―original‖ dos que foram chamados de Kalapalo posteriormente. No trecho acima Basso diz que a mudança foi de Kalapalo para Kuapügü, porém, em Guerreiro Junior, Franco Neto e minha própria versão afirmam o contrário. Inclusive, a mudança de Kuapügü para outra aldeia seria a origem do nome ―Kalapalo‖, atribuída a uma palavra arawak que significa ―do outro lado‖. Para Basso ainda o termo foi atribuído ao grupo por não- índios, o que complexifica a busca pelas origens do nome.

Ainda uma terceira versão em Franco Neto na qual identifica o termo como sendo de origem arawak, para designar uma posição geográfica, ―do outro lado‖, mas do outro lado do rio Culuene. Isso teria ocorrido quando uma expedição não-identificada por seu informante teria se encontrado com os Wauja e perguntaram o que encontrariam à frente, ou melhor, onde encontrariam novas aldeias. A resposta então foi ―kalapalo, kalapalo‖, isto é, do outro lado do rio Culuene. Quando a expedição encontrou o grupo supôs que os Wauja teriam dito ―kalapalo‖ para o nome daquela tribo e não sua localização geográfica. Foi então que o pessoal de Akuku, aqueles que os expedicionários teriam encontrado, passaram a ser chamados de ―Kalapalo‖ (Franco Neto op. cit.: 68).

A importância da topografia na nomeação dos grupos indígenas foi tema em inúmeras regiões, em que os subconjuntos são eles próprios figuras relacionadas por transformações recíprocas, como em Viveiros de Castro para a Amazônia (1986: 275) e Lima para o Médio Xingu (2005: 372). Já para o Alto Xingu Franchetto destacou a importância ao se referir à questão do otomo, ou seja, uma referência ao pessoal de tal ou qual lugar. Como exemplo os Kalapalo que são chamados pelos Kuikuro como ―Kunugija otomo‖ ou ―Akuku otomo‖, antigas aldeias dos que hoje, em alguma medida, se reconhecem Kalapalo. Certo que vários desses lugares marcados na topografia e na topologia Kalapalo, dos quais se podem destacar desde já, Sagihengu, lugar onde ocorreu o primeiro Egitsü, a aldeia Kuapügü, ponto de encontro do primeiro contingente

que se considerou Kalapalo. Além do pessoal de Akuku e de Amagü que também eram aldeias antes da mudança para Kuapügü e posteriormente para Kalapalo.

A topografia não foi alterada da mesma maneira que foram as populações denominadas topograficamente. O movimento migratório realizado pelos Kalapalo de hoje deve ser lido conjuntamente com sua mitologia e isso pode ser indicativo das relações políticas atuais, como veremos na questão da Terra Pequizal de Narüvütü. Os chefes de Aiha se dizem mais próximos do pessoal de Amagü, são descendentes destes ao passo que o pessoal de Tanguro é mais próximo do pessoal de Akuku.

De volta à comparação entre algumas versões, em Guerreiro Junior a caminhada de Temetihü e seus cinco sobrinhos uterinos começa em Amagü rumo à Kuapügü. Não possuo dados efetivos para saber de onde Temetihü parte, mas é ele quem abre a aldeia de Kuapügü também em minha versão. O problema da chefia é recorrente, pois Temetihü não era chefe e uma aldeia de verdade só é de verdade se tiver chefe. A palavra teme significa o tapir, personagem ambíguo que trataremos quando falar sobre as lutas na mitologia. A ambiguidade desse personagem na mitologia faz pensar que, por não ser chefe, o tapir se aproxima da feitiçaria, como se fosse um tipo de reverso. Para tentar resolver a questão, ele contrata um chefe para vir morar em sua aldeia. Por um tempo Kuapügü cresce e prospera o que acaba por atrair muita gente para lá. É então que aparece pela primeira vez o etnônimo Kalapalo, quando parte dessa muita ―outra gente‖ resolve se mudar para uma aldeia próxima, na verdade do lado de lá do córrego chamado Hotogi.

Ainda depois da abertura da aldeia Kalapalo, outras foram abertas. A região de Kunugijahütü é famosa por ter os caramujos usados na confecção dos colares característicos Kalapalo. Além da matéria-prima também se encontravam uma espécie de madeira não identificada usada para trabalhar esses caramujos. A técnica será descrita no capítulo 3 sobre a formação dos lutadores, pois trabalhar o caramujo é marca diacrítica do ser Kalapalo atualmente. Mas kunugija é uma espécie de madeira usada para fazer uma vareta revestida numa extremidade de algum objeto pontiagudo para perfurar as placas do caramujo. Em Franco Neto um informante afirma com ―quase certeza‖ que na região também havia diamante, usado para perfurar as placas (op. cit.: 69, nota 49).

Ainda depois de Kunugijahütü são abertas mais duas aldeias em minha versão, todas elas localizadas nessa região mais ao sul, onde hoje se localiza a fazenda Saionara, na divisa do PIX. É após essa dispersão, que pode mesmo ter ocorrido a partir de Amagü, que os subgrupos karib se unem e se separam em diferentes aldeias. Podemos depreender que até a chegada ao lago Itavununu não havia distinção entre os povos, ou pelo menos entre os povos desse subsistema karib.

É a partir da mudança do lago que começam a se diferenciar as línguas e etnias. É no aspecto linguístico que Mutuá Mehinaku (2010: 130...) está interessado, de onde nos aproximamos mais da sua versão devido ao intercâmbio reconhecido entre os Kalapalo de Tanguro e os Nahukua. Depois do encontro no lago é que se passa a reconhecer a diferença, não só étnica, mas linguisticamente. A feitiçaria é apontada como motivo nas versões, assim como sua relação inexorável com a chefia. A formação de aldeias e sua decorrente fragmentação, longe de ser um processo atual, é marca indelével do movimento migratório desses grupos karib.

Trazendo para o contexto atual, se as delimitações do PIX foram o impulso para que grupos locais diversos se reunissem numa mesma aldeia, como também afirmado por Menezes Bastos para os Kamayurá, foi tão somente ocorrer uma re-organização (social, econômica, cosmológica) que os debates faccionais se tornam a erguer e a dinamizar a fragmentação territorial. Em certo sentido, desde as narrativas míticas, abandonar uma aldeia é deixar para trás uma chefia, é enfraquecer seu campo de ação, o que ocorre quase sempre pelo mesmo motivo: acusações de feitiçaria. Foi com certo pesar que meu anfitrião encerrou essa narrativa: ―Tem Kalapalo em sete lugares. Pessoal fala que tem feiticeiro no lugar e já fala que vai mudar‖.

Dentre esses vários subgrupos karib, destacam-se pelo menos dois como contingentes dos Kalapalo atuais: os Akuku e o pessoal de Amagü. Cruzando algumas versões podemos depreender que o pessoal de Amagü esteja mais ligado à aldeia de Aiha e que o pessoal de Akuku mais próximo dos atuais moradores de Tanguro. Ainda vale ressaltar a proximidade dos Akuku com Tanguro e a ligação com os Narüvütü e os Nahukua reunidos nessa aldeia.

Toda essa miscelânea certamente não será aqui resolvida. Entretanto, para tentar deixar o problema numa situação menos difícil antes de passarmos a tratar das relações interétnicas durante os rituais, será interessante focar brevemente dois importantes momentos bastante atuais, em consideração com todo o percurso já realizado por esse povo karib desde a descida das guianas – como vimos ter sido realizada nos meados do

século XVIII para fugir dos contrabandistas espanhóis de escravos. A mudança de um contingente considerável para os limites do PIX, unidos numa mesma aldeia e sofrendo enfermidades semelhantes, foi seguida de uma rápida retomada populacional. As separações voltariam a aparecer com a fissão que originou Tanguro, outro momento de fundamental importância, pelo menos para essa pesquisa, pois foi a partir desta aldeia que realizamos o trabalho de campo. O debate entre regionalismo e localismo não pode se furtar de apresentar características peculiares da aldeia em que o trabalho foi realizado. Ainda como debate subsidiário passaremos pela recente abertura das picadas para o reconhecimento da Terra Indígena Pequizal de Narüvütü.

Desde a mudança para os limites do PIX até agora outras aldeias foram abertas, mas essas serão observadas por retomarem uma divisão que se não toda, acompanha quase toda essa etnohistória, a oposição entre Amagü e Akuku. Entretanto, não será tema desta tese apresentar minúcias de como estão às relações entre os subgrupos Amagü e Akuku. O mais apropriado para uma pesquisa como essa seria estabilizar analiticamente e tomar como referência o nome Kalapalo, ou seja, além da divisão das aldeias há um componente linguístico que é de fundamental diferenciação entre os povos, mesmo entre os karib.

Assim, as relações entre os Kalapalo, Nahukua, Kuikuro e Matipu, todos karib, estabelecem essa diferença do modo como eles mesmos vêem. O exemplo da formação dos times de luta que abordaremos a seguir ilustra isso perfeitamente, assim como a questão dos convites para os grandes rituais interétnicos. Somem-se os Narüvütü e o que se tem é uma complexa reunião de pequenos grupos domésticos que falavam línguas semelhantes de um mesmo tronco karib. Ainda hoje, como afirma Franchetto, a identidade linguística é marca diacrítica nas relações de identidade e alteridade. E se não existe, ao menos pública e cotidianamente, uma marcação de diferença entre os Amagü, Akuku e Narüvütü o mesmo não ocorre com os demais grupos karib como Nahukua, Matipu e, principalmente Kuikuro37.

Não faremos esse debate sobre as diferenças linguísticas entre esses subgrupos karib e como se deu a diáspora que uniu alguns e separou de outros num tempo que é histórico e mitológico, como afirmou Basso: ―um sentido de história peculiar dos povos sul-americanos.‖ (1993: 315). Antes disso, será descrita outra dinâmica que hora une

37 Durante a pouca aprendizagem que tive da língua era comum que as pessoas que se importavam me

corrigissem dizendo que eu falava ―igual Kuikuro‖. Claro que meu aprendizado limitado impunha uma diferença entre o falar certo e o falar errado, a fala bonita dos chefes e a fala feia dos feiticeiros. Mesmo quando me fazia compreender era certo de alguém por perto dizer que era ―igual Kuikuro‖.

hora separa esses mesmos subgrupos. A organização ritual é uma injeção nessa reorganização étnica onde nem mesmo diferenças linguísticas são desconsideradas.