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Capítulo 2. As práticas esportivas como modelos de relações interétnicas no Alto

2.1 A busca da esportividade ameríndia

A variedade de práticas e significados atribuídos ao chamado desporto indígena deve passar por um processo de redefinição para que não se misturem coisas diferentes sobre uma mesma rubrica ou se ratifiquem determinadas dicotomias. Concomitante ao que ocorre nas disputas nativas que aqui serão trabalhadas, como a luta e os dardos alto- xinguanos, uma série de ―Olimpíadas Indígenas‖ são realizadas frequentemente em algumas cidades brasileiras. Essas competições são promovidas por órgãos públicos com a finalidade de apresentar à população das cidades algumas competições entre povos oriundos de inúmeras regiões. Canoagem, arco e flecha, corridas dentre outras atividades são disputadas segundo o lema: "O importante é celebrar e não competir" (Rocha Ferreira et.al 2008) 56.

Apesar da suposta ausência de competitividade demonstrada por esses autores durante as olimpíadas indígenas, dado que o caráter agonístico nunca está completamente ausente por ser constituinte das disputas57, esse entendimento não dá conta de abranger outras práticas onde, na verdade, o que ocorre é uma busca acirrada pelas vitórias. Ou melhor, a esportividade ameríndia, assim como a ocidental, parece estabelecer níveis relacionais no entendimento da competitividade quando a alteridade é colocada através de disputas em diferentes práticas esportivas.

É disso que trata a luta alto-xinguana, nosso tema principal, donde nos aproximamos do entendimento sobre a corrida de toras Xavante tal como no trabalho pioneiro de Vianna (2008). É competição e ninguém quer disputar para perder, o que motiva uma série de imposições, prescrições e proibições para aqueles que se aventuram estar no topo dos resultados. Os comentários cotidianos sobre as lutas demonstram

56―Os eventos dos jogos indígenas são realizações urbanas. Um campo onde se congregam diferentes

conhecimentos e significados socioculturais ancestrais e contemporâneos. As redes que se formam para tal organização têm caráter permanente e temporário. Esses jogos são de âmbito nacional, denominados de Jogos dos Povos Indígenas, na 10ª edição, estadual como os Jogos Indígenas do Pará, na 3º edição e, regional como a Festa do Índio em Bertioga (SP), na 7ª edição e o Jogos Interculturais de Campos Novos do Paresi (MT), em sua primeira edição.‖ (Rocha Ferreira et.al. 2008).

como os combates superam sua duração e se reverberam para além dos próprios atletas. As torcidas são reorganizadas a cada novo ritual e vibram por seus competidores. O papel vai além do incentivar, pois os resultados dos combates passam pelo crivo de cada torcida, o que demonstra a instabilidade entre os rivais. Não é raro uma luta ser considerada vitória pelas duas torcidas que disputam literalmente no grito a primazia de seus lutadores. Tais disputas ficarão mais claras adiante, mas no momento é importante ressaltar a homologia pretendida entre alguns termos com a finalidade de podermos encaminhar as análises. Torcidas, atletas, competitividade, preparação corporal, desenvolvimento técnico, treinamentos, enfim, são termos elaborados para dar conta do universo esportivo no ocidente que aqui pretendemos usar na tentativa de ampliar os significados por detrás da luta alto-xinguana e da ―esportividade ameríndia‖.

Esse é outro termo pertinente porque se trata de lutadores altamente preparados e com conhecimentos técnicos aprendidos ao longo de uma vida dedicada aos treinos. Assim sendo, a importação do arcabouço teórico desenvolvido pela antropologia das práticas esportivas pode ser utilizado na descrição e análise da luta alto-xinguana e de outras práticas que se assemelhariam mais aos esportes de alto-rendimento58 (Toledo 2000), do que do caráter lúdico dessas olimpíadas.

Os melhores lutadores se preparam exaustivamente para aprimorar seus desempenhos ao longo de suas carreiras. As glórias obtidas pelos resultados são intransferíveis, ou melhor, ao campeão são oferecidas as honras. Embora haja em algum nível uma sinestesia entre o lutador e o grupo étnico que ele representa naquele momento, como a torcida que vibra a cada vitória ainda mais quando essa vitória é por arremesso, é o lutador quem fica com as glórias. Os campeões ganham status e podem usar, sem serem constrangidos, determinados adereços que somente lutadores de reconhecida competência podem ostentar, como o colar de unha de onça (ekege inhobigü), os braceletes (büngai) e o chapéu (igipó) do couro da onça, o artefato com o couro da sucuri (hugombo) para ser usado preso na testa e pendurado nas costas, a garra do tatu canastra, o pássaro xexéu empalhado usado na parte de trás dos cintos dos lutadores. Esses artefatos não são meros amuletos ou prêmios, mas símbolos que conferem prestígio a quem pode usar. Quando algum jovem lutador usa o xexéu os

58 ―Alto rendimento consiste numa categoria nativa que designa as práticas esportivas exercitadas em

maiores níveis de excelência, mobilizadas e circunscritas por molduras institucionais e configurações sociológicas complexas, profissionais portanto.‖ (Toledo 2004: 10; nota2).

demais adversários sempre tiram sarro e menosprezam aquele que não é campeão e mesmo assim uso o adereço. O xexéu é considerado um pássaro poliglota, que pode se comunicar em diferentes línguas. É um pouco a característica dos lutadores, pois a luta é um tipo de idioma franco na região. Aqueles que se consideram ―gente‖ (kuge) sabem lutar, o que estabelece a comunicação59.

Com isso retornamos à crítica que nos guiou para um estudo mais aprofundado sobre a luta. A esportividade ameríndia não deve ser nem reduzida de seu caráter competitivo, pois, muitas vezes, é exatamente esse caráter que faz com que determinadas práticas assumam tão elevado prestígio, tampouco entendida somente por seu viés gregário. Não partiremos dessa dicotomia, ao contrário. Nossa proposta é mostrar a relação estabelecida entre a esportividade ameríndia com questões lúdicas e competitivas. O caráter lúdico de algumas atividades e competições não deve ser colocado a fórceps em disputas exacerbadas em tensão, como a luta, o Jawari, a corrida de toras60. Não há como retirar dessas disputas sua qualidade eminentemente competitiva.

Procedimento semelhante ao de Vianna principalmente no que se refere aos pressupostos ditos ―equilibristas‖, que se suponha ser fator determinante na corrida de toras e no entendimento que alguns autores tiveram sobre essa disputa. O trabalho de Maybury-Lewis descreve, num clássico exemplo, uma corrida em que um dos times teria ficado muito para trás, fazendo com que aqueles que se posicionavam mais a frente diminuíssem o ritmo para, inclusive, ajudarem os adversários a carregar a tora. Este autor entende a ajuda como uma noção de ―equilíbrio‖ intrínseca ao pensamento dualista, em que um time não poderia superar o outro. Destaca ainda que dado esses acontecimentos os mais velhos exigiram que se realizasse outra corrida na tentativa de re-instaurar o equilíbrio perdido.

A proposta de uma ―esportividade ameríndia‖ elaborada por este autor (op. cit. 226), ao invés de ratificar essa noção de equilíbrio parte do material etnográfico recolhido nos anos 1990 para diferenciar, no tempo e no conhecimento nativo, duas

59 Acompanhei uma perseguição aos pássaros xexéu durante uma pescaria para um Egitsü. Na lagoa em

que estávamos um bando com uns cinco ou seis pássaros foi perseguido por alguns jovens. Enquanto uns caçavam, outros já trabalhavam como taxidermistas. Em pouco tempo cinco pássaros foram confeccionados para serem usados pelos melhores lutadores nas lutas que ocorreriam no domingo.

60 Como algumas vezes é feito, especialmente ao tratar os esportes como ―mecanismos de controle social

maneiras antagônicas de se posicionar sobre os dados. Ao levar essas observações do antropólogo inglês nos anos 1960 para um morador Xavante da aldeia Abelhinha na década de 1990 percebe-se claramente a diferença entre as interpretações. Se para o autor clássico a corrida de toras, assim como outras instituições Xavante, pressupunha um equilíbrio, para o velho indígena as corridas de toras necessariamente estabeleceriam um desequilíbrio. O fato de terem perdido aquela corrida e a insistência na realização imediata de outra é entendida pelos nativos não como uma maneira de se equiparar as coisas, mas de demonstrar a vontade de ganhar na próxima disputa:

Xavantes da Abelhinha, por sua vez, parecem situar a corrida em termos de um salutar desequilíbrio: ‗Perdeu aquela, mas na próxima você vai ganhar‘, nas palavras de R.. O aspecto competitivo, de todo modo, está tão presente que somos levados a pensar: ou os Xavante ‗equilibristas‘ de Maybury- Lewis são uma quimera ou os habitantes da Abelhinha manifestam, nos anos 1990, um claro distanciamento do que é ser xavante. (op. cit.: 225).

Encaminhando nossa proposta, e na tentativa de fornecer novas indicações para os estudos sobre a esportividade ameríndia, o material que segue será analisado a partir de uma possível contribuição mútua entre o conceitual teórico da etnologia e da antropologia das práticas esportivas. Autores como Bromberger (2008) indicam alguma direção:

Se o encontro entre a etnologia e o esporte foi promissor – como sempre o são os noivados – é porque a etnologia encontrou no esporte um objeto privilegiado para pensar e por à prova as categorias que formam a base de suas interrogações, a ponto de eu às vezes me perguntar se o esporte não foi inventado para causar prazer aos etnólogos! Examinemos alguns domínios nos quais o esporte aparece como um importante elemento revelador. As atividades lúdicas e esportivas, em suas diversidades, cristalizam os valores essenciais e contraditórios que modelam as civilizações; elas aparecem como espécies de teatralizações, de "mentiras que diriam a verdade" das sociedades que as produziram. Clifford Geertz (1983) forneceu uma bela ilustração disso, no memorável estudo que consagrou à rinha de galos em Bali. Esse "jogo do inferno" – aponta Geertz (1983, p. 171) – permite ler "sobre os ombros" dos aficionados, as dimensões salientes da sociedade balinesa e de suas rivalidades pelo prestígio, pois, "assim como a América deixa emergir bastante dela mesma em um estádio de beisebol, em um campo de golfe, em uma pista de corridas de carro ou sobre uma mesa de pôquer, uma parte considerável de Bali vem à tona em uma rinha de galos. (Bromberger op. cit.).

Com essa proposta de mão dupla, que Bromberger chama de ―mútua contribuição‖, sugerimos que o conceitual da antropologia das práticas esportivas

também possa nos ajudar a pensar as sociedades indígenas. A variedade de práticas consultadas e etnografadas, inclusive o futebol, demonstram que grupos indígenas diferentes estabelecem maneiras diferentes de pensar suas relações a partir de corporalidades que se acomodariam na definição de ―práticas esportivas‖. Portanto, nossa contribuição para o intercâmbio entre etnologia indígena e antropologia dos esportes coaduna-se com as ideias defendidas por Vianna dado o atual estágio e desenvolvimento da questão:

Em lugar de vôos teóricos precipitados, o tema pede um tratamento comprometido com duas tarefas básicas: contribuir para o aumento do volume de dados empíricos e testar ferramentas analíticas disponíveis (Vianna op. cit.: 29).

O mesmo ocorre com o futebol e seu potencial universalizante. Em Toledo (2000), o caráter expansionista do futebol é tratado segundo a universalidade das regras, a despeito da fragmentação de estilos61. Em Guedes, o futebol é entendido enquanto uma ―instituição de valor simbólico zero‖, assim como o conceito de mana, cuja única impossibilidade seria a ausência de significação: ―a função de tipo mana é a de se opor à ausência de significação sem comportar por si mesma nenhuma significação particular‖ (Lévi-Strauss apud Guedes; 1977) 62.

Tal potencialidade do futebol pode oferecer interessantes contribuições à pesquisa etnológica sul-americana. Se uma das atuais propostas da disciplina intenta buscar relações e transformações entre diferentes regiões etnográficas63, cabe afirmar

61A ―charge‖ é um claro exemplo de como o futebol e esse processo de universalização das regras e

fragmentação de estilos, não impediram o caráter expansionista e universal desse esporte. A regra se manteve a mesma em todo o mundo, mas sempre foi clara a diferença entre o estilo Europeu – que sempre usou muito do tranco – e o sul-americano, mais ―individualista‖ e habilidoso.

62―Nesse sistema de símbolos, que toda cosmologia constitui, ele seria simplesmente um valor simbólico

zero, quer dizer, um signo que marcaria a necessidade de um conteúdo simbólico suplementar ao que o significado já contém, mas que pode ser um valor qualquer desde que faça parte ainda da reserva disponível‖ (Lévi-Strauss apud Guedes; 1977)

63 Penso aqui, especialmente no NuTI, Núcleo de Transformações Indígenas do PPGAS Museu Nacional:

―O Núcleo Transformações Indígenas, sediado no PPGAS-MN/UFRJ, foi fundado em 2003, reunindo pesquisadores da UFRJ, UFF e UFSC, e uma ampla rede de parceiros e colaboradores no Brasil e no exterior, em torno do projeto ―Transformações Indígenas: os regimes de subjetivação ameríndios à prova da história‖. A partir de 2004, passou a ser apoiado pelo Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex CNPq-FAPERJ). O projeto base versa sobre a dinâmica transformacional dos coletivos indígenas sul-americanos. Seu escopo temático inclui não apenas objetos abordados nas pesquisas anteriores dos grupos de pesquisa que estão na origem deste Núcleo -- morfologia social e parentesco, mitologia e xamanismo, guerra e ritual – como também articula esses temas a outros, tais como a monetarização das economias indígenas, a emergência de novas formas de chefia associadas aos processos interétnicos, a

que o futebol é uma instituição presente em várias dessas mesmas regiões. Pouco analisada, é verdade, mas sua prática é amplamente descrita64. Por isso mesmo o caso Xavante trabalhado por Vianna merece lugar de destaque em decorrência de ser o mais completo sobre o futebol em áreas indígenas até o momento. Mais importante, porém, é pensar nas relações entre o futebol e a corrida de toras:

Noutras palavras: a passagem de uma a outra pode não ser exclusivamente um assunto de comparação, mas de colocá-las em posições contíguas na ordem do real. Com efeito, ao estabelecerem semelhanças e diferenças entre futebol e corrida, os xavantes têm em mente também outras ideias – e não apenas ideias, mas sentimentos, vontades, disposições e práticas. (Vianna op. cit.: 211).

É a partir dessa relação entre o futebol e as demais práticas esportivas nativas que pretendemos dar continuidade ao propor uma visada sobre um tema sempre presente nos debates etnológicos sul-americanos, a saber, a questão da totalidade e os limites sempre variáveis na definição dos grupos indígenas.

2.2 Futebol, dardos e luta: a temática da totalidade pelo viés das práticas