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Capítulo 1. Os Kalapalo do Alto Xingu: uma abordagem

1.2 Breve etnohistória Kalapalo

1.2.2 A mudança para o PIX e a construção de Aiha

Um evento fundamental para a atual situação histórica dos Kalapalo foi à migração para os limites do PIX após a delimitação das fronteiras indígenas. Grupos diferentes passaram a viver numa mesma aldeia para recuperarem sua autonomia econômica, social e cosmológica:

As antigas aldeias kalapalo localizavam-se mais ao sul, em ambas as margens do Rio Kuluene. Os Kalapalo mudaram-se com relutância para a sua localização recente, depois que, em 1961, foram formalmente estabelecidas as fronteiras do Parque Indígena do Xingu e outros grupos foram encorajados a se mover para as proximidades do Posto Leonardo, de maneira a controlar o contato com estranhos e a obter ajuda médica em caso de epidemias. Ainda assim, constantemente retornam ao seu território tradicional para colher pequi nas formações arbustivas encontradas em torno das velhas aldeias, ou para procurar caramujos para confeccionar ornamentos de conchas (uma especialidade deste grupo), pescando e fazendo roças de mandioca, batata doce e algodão em vários lugares no curso do Rio Kuluene38.

Adiantamos que é com essa ressalva que se fará corrente o uso do termo ―etnia‖, pois serão entendidos a partir do presente histórico, quando ocorre tanto uma recuperação étnica de alguns povos que teriam sido encobertos, e até dados como extintos, e também a consolidação de outros etnônimos, como o próprio Kalapalo, amplamente aceito e difundido nas aldeias:

The kalapalo are one of three Carib-speaking groups presently a part of Upper Xingu society. They numbered about 110 in 1968, and were thus the second largest village group in the area. Today they live in a village called Aifa [Aiha] (meaning ―finished‖), located far to the north of their traditional territory, about three days canoe travel downstream. The Kalapalo moved to the present site after the park boundaries were established, at the same time that outlying groups were encouraged to move closer to the Post in order to control contact with outsiders and provide medical aid in the event of epidemics. (Basso 1973: 4).

Depois da delimitação territorial dos povos no interior do parque e da atuação dos irmãos Villas-Boas essa é a primeira descrição sobre os Kalapalo e o contexto em que viviam. Uma única aldeia comportava toda a população que se mudava no sentido sul-norte para ficar mais próxima do Posto de vigilância localizado no interior da área demarcada. Basso cita três grupos karib, mas são reconhecidos atualmente pelo menos quatro deles: Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukua, além dos Narüvütü, considerados praticamente extintos pela autora39.

É somente após a criação do PIX que os Kalapalo se mudam para perto do posto de vigilância, para uma terra que originalmente pertencia aos Kamayurá.

A aldeia Aiha (palavra que significa literalmente ‗pronto‘ na língua kalapalo) foi inaugurada em 1961 apos a criação do Parque Nacional do Xingu (PNX) – ocasião em que toda a população kalapalo foi transferida de seus antigos sítios no extremo sul da área demarcada. Os Kalapalo reconhecem que o local foi cedido pelos Kamayura, mas arranjado por Orlando Villas Boas. A aldeia Aiha fica próxima ao Posto Indígena Leonardo Villas Boas (que até 1962 chamava-se Posto Indígena Capitão Vasconcelos), porém o acesso não e fácil em função de localizar-se na margem oposta do rio Kuluene. (Franco Neto op. cit.: 65)

Após a mudança para o PIX os Kalapalo vivem um tempo numa primeira aldeia e depois, em virtude da contaminação da terra por causa do sangue de um feiticeiro assassinado, refazem a aldeia de Aiha num local próximo. Na década de 1970 os desentendimentos citados anteriormente culminam na saída de quase metade da população de Aiha para Tanguro, isso já por volta de 1982, quando as queimadas tinham terminado e as plantações de mandioca estavam prontas para serem colhidas.

Dada toda a complexidade em afirmar categoricamente o movimento migratório ao longo da história desse intricado conjunto de povos, e na busca de uma síntese que nos permita caminhar mais proximamente ao presente etnográfico, ressaltamos que a criação do PIX e a mudança para os limites da área protegida foi fundamental nos acontecimentos decorrentes. Para encaminhar a análise retomamos uma breve síntese elaborada por Guerreiro Junior. Essa síntese associa os subgrupos em questão no

39 As relações entre esses falantes de língua karib serão interessantes de serem trabalhadas através da

formação para as lutas. Os Matipu e Nahukua são os dois menores e com menos capacidade produtiva para a realização dos rituais interétnicos. Por isso mesmo realizam menos cerimônias, geralmente se aliando ou a Kalapalo ou a Kuikuro ou a ambos. Ocorre também de Kalapalo e Kuikuro estarem em lados opostos, o que torna ainda mais ―fluída‖ e ―flexível‖ a formação dos times de luta em cada Egitsü, mesmo entre os grupos karib.

momento em que eles se reuniram para a mudança, como foi o caso dos Kalapalo e dos Narüvütü e também demonstra como essa união é momentânea. Quando passarmos a mirar em Tanguro perceberemos que a união desses grupos num momento de queda populacional e perigo decorrente das frentes de expansão, com a retomada dos contingentes populacionais e a efetivação de algumas disputas por terras ancestrais fazem com que a diferença entre as famílias voltem à tona. Não é dizer que a união para a formação de uma aldeia suprime as diferenças étnicas, ao contrário. A manutenção dessa oposição, marcada pelas relações entre seus chefes, faz com que a retomada étnica seja uma atividade cada vez mais frequente, em virtude do atual contexto histórico de retomada populacional e territorial. A síntese:

1) os Kalapalo atuais descendem principalmente de dois contingentes karib, Akuku e Amagü, que parecem ter realizado migrações paralelas, mas se reuniram em Kuapügü por causa de relações rituais e da mudança de um chefe; e 2) o reconhecimento dessa diferença parece ter feito parte de alguns processos de fissão, como por exemplo o surgimento dos Angaguhütü na virada do século XIX para o XX e a criação da aldeia Tankgugu entre o final dos anos 70 e o começo dos 80. (Guerreiro Junior op. cit: 77)

Nesse contexto de expansão populacional e territorial é que os Kalapalo se encontram atualmente. A feitiçaria é o motivo apontado, mas a fragmentação também deve ser pensada por motivos econômicos. Não se trata de buscar a explicação ―verdadeira‖, mas o pessimismo de autores pioneiros quanto à continuidade do sistema alto-xinguano parece não ter se confirmado, antes o contrário. Depois de Tanguro, cinco aldeias menores foram abertas pelos Kalapalo, sem contar mais dois Postos Indígenas de Vigilância.

Hoje os Kalapalo ocupam sete aldeias: Aiha e Tanguro são consideradas ―aldeias de verdade‖ (ete hekugu) com casas circulares, chefes importantes e aptas a receber grandes cerimônias intertribais; ―iho‖ (―esteio‖) das demais, segundo Guerreiro Junior (op. cit.). Barranco Queimado, Lagoa Azul, Paraíso, Pedra e Kunué são aldeias menores, além do PIV Tangurinho – Posto Indígena de Vigilância – e PIV Culuene40. As aldeias menores seguem na direção sul, entre o PIV Culuene, na fronteira com a fazenda Saionara, e a aldeia Tanguro.

40 PIV é como os índios chamam esses lugares, mesmo depois da categoria PIV ter deixado de existir com