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Capítulo 3. Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos para lutar

3.1 A reclusão como não-doença

Geralmente, a reclusão dos adolescentes no Alto Xingu foi abordada para que se discorresse sobre relações entre sistemas patogênicos e terapêuticos distintos; a noção indígena sobre doença e cura e a entrada da medicina ocidental nas aldeias. O trabalho mais detalhado sobre esse período é o de Verani entre os Kuikuro (1990) em que a ―doença da reclusão‖ é tratada como um caso de confronto intercultural, a /atamikârâ/:

A ―tal doença‖ era descrita como uma paralisia dos membros inferiores (parestesia), acompanhada de dor, vômitos sanguinolentos e hipertensão. Incidia principalmente sobre adolescentes do sexo masculinos, durante o período de reclusão pubertária (op.cit.: 20).

Até casos de óbitos já haviam sido registrados à época de sua pesquisa, mas o mais frequente era a paralisação das pernas. Os motivos apontados para a paralisação vão desde a ingestão de ervas venenosas, hipótese de envenenamento que a autora

rebate categoricamente, até relações com o sobrenatural, quando os espíritos donos das ervas não estariam satisfeitos com os desempenhos dos jovens reclusos e os paralisariam por conta de alguma quebra nos procedimentos exigidos89.

Esta hipótese foi corroborada por vários autores, sem, contudo, esmiuçar os dados etnográficos e acaba-se por tomar essa explicação como dado. Verani fala também que a doença pode soar como uma ―desculpa‖ (estresse) para aqueles que não conseguiram alcançar sucesso nas lutas (op. cit.: 257).

Entretanto, devo enfatizar que o interesse neste tópico é positivar a reclusão através dos dados etnográficos. Em Tanguro não presenciei nenhum jovem que tenha ficado doente enquanto passava pela reclusão. Em contrapartida, este mesmo velho pajé Kalapalo que mora em Tanguro não gosta da reclusão, por isso seus filhos adolescentes não entraram em reclusão. Um de seus filhos ficou, como dizer, ―doente de amor‖. O menino que não ficou preso teve muito desejo de transar com sua namorada (ajo), que mora numa aldeia distante. A intensidade do desejo fez com que ele ficasse ―paralisado‖, o que demonstra que não é somente quem fica preso nesta idade que corre o risco de ficar doente. A reclusão pode estar ligada a esse refreio sexual imposto aos jovens, exatamente para que eles não fiquem doentes. Zelar pela saúde passa pelo refreio do apetite sexual que só se consegue pela reclusão, pelo distanciamento, ou seja, a reclusão acabaria por ser profilática.

Para este assunto é interessante retomar o trabalho de Barcelos Neto (2005: 76) e sua análise sobre o roubo da alma, segundo o qual os espíritos (assim como os feiticeiros) sabem exatamente o momento em que as pessoas sentem algum desejo (witsixuki) e as atacam com suas flechinhas. O desejo não contido é o propulsor da doença e a cura é o patrocínio de algum ritual em homenagem ao espírito que flechou. Talvez o desejo não contido seja a ignição para diferentes relações com a alteridade, marcadas pela noção de ―doença‖, mas vale destacar aqui que o desejo foi pela atividade sexual, sabidamente a causa dos infortúnios. Um menino que deveria estar preso para refrear seu apetite sexual não foi para a reclusão; sentiu desejo sexual e ficou doente/paralisado.

Franco Neto (op. cit:. 199) relata o caso de um menino que tentou o suicídio e também não tinha ficado preso por já ter tido relações sexuais. Ele contrariou seus pais e não entrou em reclusão exatamente por não aceitar a abstinência sexual do período.

Novamente o sexo aparece como causa, agora de o jovem estar vendo o itseke que fez com que ele tentasse se matar.

Apesar desses casos, a doença atamikârâ não esgota os significados da reclusão tampouco o da não-reclusão de alguns jovens. Outros temas, além do perigo da doença, também são levados em consideração pelos jovens ao atingirem a idade para ficarem presos dentro de casa. O trabalho de Novo (op. cit.), por exemplo, mostra como as carreiras advindas da recente intensificação da comunicação com as cidades descortinam novas possibilidades de atividades realizadas por esses jovens. Professor, barqueiro, agente de saúde (AIS) e agente sanitário (AISAN) são outras profissões assalariadas que despertam o interesse nos jovens fazendo muitas vezes passarem pouco tempo pela reclusão para dar prosseguimento ao interesse nessas carreiras. Ou mesmo o futebol, como no caso do menino Kuikuro que o pai gostaria que fosse jogador profissional e hoje joga em um time de Mato Grosso. Isso fez com que sua reclusão fosse abreviada, pois ele precisou sair da aldeia em busca do ―sonho‖ do pai90.

Se a reclusão é tomada como perigosa em Verani por medo da doença e da paralisação descrita por esta autora como um caso de confronto intercultural, a reclusão em Novo é um momento de definição na qual os jovens que almejam outras carreiras, ligadas a setores do estado, não podem ficar muito tempo – ou mesmo nem entram na reclusão (Novo op. cit.: 107).

O caso específico que pretendo apresentar é como a reclusão, para além dessas possibilidades, é também pensada por jovens e seus familiares, geralmente em famílias de chefes, como mecanismo de manutenção do status de chefia. A noção de substituição é fundamental, por isso os jovens que almejam ser campeões de luta devem passar por uma reclusão diferenciada, tanto no tempo como na qualidade na execução dos requisitos necessários. Esses lutadores ficarão muito tempo preso, talvez cinco ou seis anos, o que dificulta qualquer atividade remunerada. O mesmo acontece com a doença, pois com o passar do tempo a reclusão vai se afrouxando e os riscos da atamikârâ parecem diminuir. Esse tempo é despendido com muito treino e preparação por parte do aspirante a campeão e só é conseguido quando uma união de forças consegue dar o suporte suficiente para ele. A parentela masculina e a mãe dos lutadores são peças

90http://globotv.globo.com/rede-globo/esporte-espetacular/v/inspiracao-da-copa-de-94-indio-bebeto-joga-

profissionalmente/2188968/ (21/02/2013). Um garoto de Tanguro, que reside atualmente na cidade de Canarana, pede insistentemente para arrumar como ele jogar no Corinthians, ―fazer teste‖, como já descrito em Damo (2005) sobre o ―sonho‖ de ser jogador de futebol. Vários autores também já destacaram a importância do ―sonho da mãe‖ para o sucesso da carreira do lutador campeão.

chaves em sua formação, quer pelos conhecimentos transmitidos (botânicos, técnicos, posologias) e também pelo zelo com o qual os filhos reclusos são tratados.

É nesse sentido que a proposta etnográfica aqui defendida visa especificar os momentos em que a análise será mais detida, para que ao final essa possa ser a contribuição para um debate regional. O recorte de gênero e de idade se torna, assim, indispensável se quisermos aumentar o campo de visão. Não se trata de ratificar dicotomias de gênero que nem sempre operam em pensamentos não-ocidentais como já bem descrito por autores como Strathern (2009), por exemplo.

Recorremos à diferenciação inicial entre meninos e meninas para trabalhar a reclusão devido à separação nativa que ocorre fundamentalmente no início da reclusão para cada um deles. Para as meninas é a primeira menstruação, ao passo que os meninos não apresentam uma marca fixa, mas ao começar a demonstrar interesse sexual o jovem passa a ser tratado em termos jocosos por kutekgügü, algo geralmente traduzido por ―perigoso‖, não no sentido literal, mas como o menino passa a ser um perigo para as meninas (e para ele mesmo, vide o perigo da atividade sexual)91.

É nesse momento que se inicia a reclusão, sendo que para as famílias de chefes o fato deve se tornar público quando da realização da cerimônia interétnica de furação de orelhas, Tiponhü. A partir daí tanto os objetivos quanto os procedimentos técnicos se diferenciarão até o término da reclusão de homens e mulheres. Claro que algumas semelhanças são indispensáveis como a necessidade do isolamento com o mundo exterior e a busca pela introspecção (gnosiologia, para retomar Menezes Bastos 2001).

O recorte aqui proposto, segundo essas breves particularidades, é metodológico. Além das reclusões dos jovens masculinos interessarem diretamente, pois são eles quem lutam, as reclusões que mais de perto pude acompanhar são de jovens lutadores em famílias de chefes. E já que assumimos o risco de sermos censurados pela delimitação de foco, faremos mais uma redução ainda. Não é apenas na idade e no gênero que se diferenciam as reclusões, elas também apresentam diferenças políticas, o que foi tratado por Barcelos Neto como uma questão biográfica dos chefes em formação:

Cada ritual no Alto Xingu é feito, primordialmente, para uma única pessoa. Todos os demais que dele participam são chamados de ―os acompanhantes‖. Assim, no Pohoká wauja [kal. Tiponhü], apenas um menino terá ambos os lóbulos auriculares perfurados com agulha de fêmur de onça. Eventualmente, outros meninos de ―alta linhagem‖ de amunaw [kal. anetü] poderão ter uma

91 Esse tratamento jocoso também é direcionado aos pesquisadores quer em sua permanência na aldeia ou

de suas orelhas perfuradas com tal agulha. Nos ―acompanhantes‖ usam-se apenas agulhas de madeira.

Inicia-se aí uma série de procedimentos que distinguirá os meninos de uma mesma geração. Entre os Wauja, o Pohoká tem sido feito a cada 15 anos, em média. Nessa ocasião, todas as aldeias do Alto Xingu são convidadas a (re)conhecer o menino que foi escolhido para ser um futuro amunaw. A diferença de idade entre eles varia em até sete anos. Depois do ritual, os meninos entram em seu primeiro ano de reclusão. Mas aquele que teve os lóbulos auriculares perfurados com fêmur de onça terá uma reclusão mais prolongada que os demais, terá, portanto, uma fabricação distintiva de seu corpo, tomará eméticos ―fortes‖ e passará fome. Ele é deixado passar fome para que aprenda a controlar a sua raiva, pois um verdadeiro amunaw é aquele que jamais se encoleriza. (2005: 278).

O debate político inicial em torno de uma hierarquia nativa entre anetü e os chamados desde o contato camarás, ou camaradas, aqueles que não almejam posições de chefia, instaura uma diferença nos períodos e técnicas da reclusão. Famílias de chefes fazem reclusão dos seus filhos de maneira diferente das famílias que não pleiteiam posições de chefia. O resultado disso é ainda uma separação que nos interessa por incidir diretamente na luta: as famílias de chefes fazem de seus filhos lutadores de primeiro escalão, aqueles que se apresentam individualmente nos rituais interétnicos. Já as outras famílias e seus reclusos compõem o segundo escalão de lutadores, quando os combates acontecem ao mesmo tempo:

Toda pessoa comum é ou deveria ser submetida a tais procedimentos [reclusão], ao passo que os destinados às posições de liderança, os morekwat [kal. anetü], deveriam sê-lo de maneira ainda mais rígida, para garantirem sua condição de ―morekwat de verdade‖, morekwat ytoto [kal. anetü hekugu]. (Figueiredo op. cit.: 151).

A reclusão que pretendemos aqui analisar seria, em tipo ideal, aquela não atrelada à noção de doença, realizada por meninos filhos de pai e mãe chefes, que tivessem em sua homenagem a festa de furação de orelhas (Tiponhü), que ficassem presos entre cinco e seis anos obedecendo às prescrições e proibições exigidas, principalmente a abstinência sexual. Essa reclusão é completada por esforços individuais, concentração e etapas de autoconhecimento que, tomadas comparativamente, serão colocadas lado a lado com outros contextos de formação esportiva. Treinamentos, preparações e dedicação são comuns entre os alto-xinguanos e atletas de outras modalidades quando o processo em questão é a fabricação do corpo e formação de pessoa. A ascese e a compenetração durante o período serão mais uma ponte entre a etnologia e a antropologia das práticas esportivas que pretendemos inicialmente. Embora o campo de observação possa ser considerado restrito depois de

seguidas delimitações, será essa configuração que nos permitirá ampliar de tal maneira o olhar não só para as reclusões no Alto Xingu, mas como todo esse investimento e preparação alcançam possibilidades comparativas desde outras modalidades esportivas.

3.2 Procedimentos técnicos e preparação intensiva: a fabricação do corpo do