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Artes marciais no programa da etnologia alto-xinguana: luta, dardos e a

Capítulo 2. As práticas esportivas como modelos de relações interétnicas no Alto

2.3 Artes marciais no programa da etnologia alto-xinguana: luta, dardos e a

Menezes Bastos foi o primeiro autor a trabalhar a relação que os Kamayurá estabelecem entre os rituais do Jawari e do Kwarup (kal. Egitsü). Uma primeira ideia é que em ambos, música e dança existem concomitantemente com a guerra, embora a prática seja a dos dardos e a da luta, uma transformação ritual da guerra em disputas desportivas. Para iniciar a argumentação o autor retoma o debate entre culturalismo e monografia, correntes teóricas que, como vimos, sempre estiveram presentes nas pesquisas sobre a região:

A primeira (culturalista-difusionista) reifica a ‗área do uluri‘ – localidade de média pertinência – e confunde a articulação sociocultural com homogeneidade sempre contra-exemplificável, em maior ou menor escala. A segunda (monográfica) isola os grupos constituintes do mundo xinguano – localidades de pertinência mínima – em nome de heterogeneidades que fundam (e expressam), mais do que cancelam, a articulação intertribal (que, como o diálogo, o que precede é constituir as alteridades, e não dissolvê-las): efetivamente, os xinguanos – assim como os xinguenses ―não-xinguanos‖, apenas episódios para as abordagens referidas – não são nem simplesmente iguais ou semelhantes nem tão-somente diferentes (daí a pertinência também central da problemática da etnicidade entre eles), no sentido de que sistemas de comunicação como o comércio, as trocas matrimoniais, o xamanismo- feitiçaria, o faccionalismo e o cerimonial – todos, de alcance supralocal – são fundamentais. (Menezes Bastos 2001: 339).

Essa proposta metodológica sugere uma conjunção entre as distintas maneiras de se tomar os alto-xinguanos, aqui tratados simplesmente como xinguanos em oposição aos xinguenses, os que não fazem parte do Alto Xingu como descrevemos anteriormente pelos nove povos. Para Menezes Bastos, a questão reside em definir o sistema social alto-xinguano não somente em relação ao domínio do político, mas também de como a ordem política pode ser alcançada através da junção das perspectivas históricas e mitológicas:

Comparando o Kwarup com o Jawari, os kamayurá fazem uma distinção que evidencia a pertinência central da questão da consciência histórica e mítica entre eles... Dizem os kamayurá que o Kwarup está no ‗princípio‘ (ypy) e o Jawari apenas no meio (myjtet), este ‗apenas‘ sugerindo a inferioridade do último em relação ao primeiro. ‗Princípio‘ aqui se refere à temporalidade original – de passagem para a hominalidade –, arquetípica, mítica enfim, indicada pelo advérbio mawe nas narrativas (mais ou menos traduzível pela expressão ‗era uma vez‘). ‗Meio‘, por outro lado, retira o objeto assim caracterizado (no caso, o Jawari) dessa temporalidade singular. Nas narrativas, usa-se agora o advérbio ang. Afirmam eles, para consolidar a aguda comparação, que quem começou o Kwarup foi Mawutsini – o demiurgo por excelência –, o Jawari tendo sido iniciado pelos pajetã, grupo indígena segundo eles extinto, com língua e costumes muito próximos dos trumai e ancestrais destes. Os pajetã – segundo os informantes, os ho’i das letras do Jawari –, ensinaram o Jawari aos trumai, os kamayurá (e aweti) tendo com eles aprendido o rito (op. cit.: 343).

Os Ho’i seriam um povo antigo que realizava guerras contra os demais proto- tupis e é dessa relação belicosa que se tem origem os cantos do Jawari Kamayurá. O autor afirma que, do ponto de vista Kamayurá, o Kwarup pode ser lido pela chave da mitologia, ao passo que o Jawari pode ser pela chave da história política. Retoma ainda a mitologia para falar sobre a separação entre pássaros e peixes e como ela está ligada ao ritual, ou seja, Jawari/pássaros (que narra a separação entre céu e terra pelos urubus que vão comer as almas dos mortos e os atletas que não devem comer peixes antes das disputas) e Kwarup/peixes e as lutas míticas envolvendo os peixes contra os animais terrestres. A proposta do autor é tratar a relação entre os rituais interétnicos e suas exegeses nativas como ―cadeias semióticas‖ (op. cit.: 345).

Para tanto, a música seria a responsável pela passagem do mito ao rito, de onde retoma as obras de Basso sobre a musicologia Kalapalo. Para dar conta dessa variedade o autor lança mão de uma estrutura formada por mito-música-dança, em que no sistema cancional a letra vai dentro da música, em relação a uma estrutura dança-mito-música,

na qual o ritual vai dentro da dança, aí envolvida pela arte plumária e os adereços que compõem o rito. Para compreender a relação que os Kamayurá estabelecem entre essas estruturas o autor propõe o conceito de ―tradução‖:

A ideia de ‗tradução‘ adotada nesse texto, qual seja, a de compreensão do ritual – ancorada, no plano psicológico, no conceito de sinestesia e, aí, no de modalidades intersensoriais de percepção (Merriam, 1964, p. 85-101) – mostra a relação semântica interdependente entre os subsistemas componentes da cadeia intersemiótica. Isto ela faz, porém, de forma antes tautegórica (presentacional) que alegórica (re-presentacional), o que significa dizer que a referida ‗tradução‘ não deve ser pensada em termos sinonímicos ou da reprodução dos mesmos significados pelos diferentes sistemas significantes (assim como se, por exemplo, a música ‗dissesse‘ o mesmo que a dança ‗diz‘). Não, os subsistemas envolvidos na trama intersemiótica na verdade constituem, um a um, esforços de expressão significantes de outros canais, deslocando-os, no entanto, através de novos significados, consequentes, que mimeticamente produzem. Tal é o sentido de ‗tradução‘ aqui, compatível, como se vê, com uma estética (e uma ética) da decepção (Basso, 1987) e consistente com uma poiesis cuja diligência fundamental é a da busca da imitação infinita da própria imitação. Estudos... indicam fortemente a pertinência e a utilidade da perspectiva em referência – centrada no estudo integrado da arte – para a antropologia das terras baixas (Grifos nossos. Op. cit.: 347).

Esse pressuposto teórico elaborado por Menezes Bastos, a saber, tomar o estudo conjunto do mito e do rito de acordo com suas próprias particularidades e a partir de suas interconexões, pode ser mais um passo na direção de demonstrar o interesse em debater aquilo que vem sendo definido como práticas esportivas nas sociedades indígenas, no Alto Xingu, especificamente. Os estudos sociais dos esportes há tempos definem os esportes de combate em conjunto com as artes marciais através da sigla L/AM/MEC, isto é, ―lutas, artes marciais e modalidades de esportes de combate‖. Essas seriam disputas corporais entre dois oponentes segundo um conjunto de regras (não necessariamente escritas, mas inscritas nos corpos dos atletas), performances e resultados. Atletas altamente preparados para o combate e que devem passar por longos períodos de treinamentos específicos visando à melhor condição mental, física e técnica (Correia e Franchini 2010).

A relação entre o domínio técnico dos movimentos corporais elaborados em cada golpe é indissociável do conhecimento teórico sobre ele, muitas vezes filosófico, como podemos perceber nas artes marciais de origem asiática, ou o boxe, chamado de ―nobre arte‖. Ainda não é o momento de estabelecer essa comparação, todavia,

inúmeros assuntos debatidos pelos autores utilizados por Menezes Bastos na formulação dessa proposta podem ser reconhecidos também numa tomada sobre os temas etnográficos que envolvem a luta. Repare que mesmo o tema fundamental para este autor, a saber, a disputa de dardos no ritual do Jawari, pode ser considerada como uma arte marcial. É claro que suas particularidades etnográficas devem ser mais elucidadas, todavia, é uma disputa entre grupos rivais que cantam pilhérias contra seus adversários e arremessam dardos em seus oponentes.

O uso de dardos, bastões ou espadas com finalidade desportiva não é uma característica exclusiva desses grupos alto-xinguanos, embora, como visto, tenha sido ensinado pelos ancestrais tupi dos Trumai. Ao contrário, em diferentes regiões do mundo ocorre a re-significação no uso das armas para um uso competitivo, de onde voltamos ao início do argumento quando mito e rito, música e dança são indissociáveis da relação de transformação entre guerra e ritual.

Trata-se de uma hipótese no momento, mas é interessante notar a semelhança no ―abandono‖ das armas que parece ter ocorrido ao deslocar o eixo da guerra para a política em contextos bastante diferentes. O processo de xinguanização já foi descrito através da mudança dos ―mestres do arco‖ para os ―mestres da fala‖, que teriam na luta corporal uma de suas maiores qualidades. Caso semelhante parece ter ocorrido no Japão após a Revolução Meiji quando os samurais, ―mestres de armas‖, se viram impedidos de portarem armas, de uso exclusivo do exercito que se formava, e concomitantemente técnicas de combates foram se consolidando, como o judô e o karate: ―Daí Nippon Kempo Karate-dô‖ – ―Grande Caminho Japonês do Método de Punho e das Mãos Vazias‖ (Funakoshi,apud Martins 2010). Já para caso inglês Norbert Elias trata a questão da diminuição da violência através da parlamentarização da vida pública o que ocorre concomitantemente na política e nas práticas esportivas (1992, 1994). Mais interessante é especular que esses mesmos processos iniciaram no século XIX75.

75 Mais dois exemplos são a espada japonesa do kendô e os bastões maculelê na capoeira. As armas eram

usadas para a prática da guerra e, com o passar do tempo, foram direcionadas para combates desportivos. Num caso se tratou, ao final da era Meije, da subutilização dos samurais e nesse caminho de armistício outras técnicas foram inventadas em prol de disputas através de combates esportivos. Os bastões do maculele também eram instrumentos usados pelos escravos capoeiristas contra seus perseguidores, ao passo que hoje é uma dança: ―maculele não me mate o homem, ele é cristão, não me mate o homem‖ diz o refrão de uma das músicas do repertório que dança com os bastões. O armistício e a transformação ritual de uma arma de guerra num objeto para uso desportivo é semelhante em todos os casos, inclusive, suas relações próximas com as danças características.

No Alto Xingu autores como Galvão já destacaram a re-utilização dos dardos para confrontos desportivos ao invés de sua utilização para a guerra ou para a caça – que é um tipo de guerra, de onde a alimentação de peixe é subsidiária dessa ―pacificação‖. Essa ―esportificação‖ é acompanhada de uma nova configuração para sua prática, ou seja, o uso dos propulsores, dardos, não se dá em outro momento que não o ritual. Tal como na luta os combates corporais devem ser ritualizados para que possam ocorrer não mais entre inimigos, mas entre adversários. É claro que esse contexto de pacificação deve ser mais elaborado e mesmo relativizado, pois as inimizades ainda se mantém, como fica explícito pela prática da feitiçaria. Entretanto, o que pretendemos demonstrar, seguindo as indicações de Menezes Bastos, é que tanto a luta, como as disputas nos dardos, entendidas enquanto práticas esportivas podem ser consideradas na ampliação desse programa que antevê nos estudos das artes um caminho para a intertradutibilidade entre mito e rito nas terras baixas sul-americanas.

Como afirmado pelo autor, não se trata de que a dança, a música e, nesse caso, as práticas esportivas/artes marciais, ―digam‖ a mesma coisa por vias diferentes. A questão da tradução reside exatamente aí, pois cada uma dessas atividades tem suas próprias maneiras de dizer coisas diferentes, porém, integradas numa cadeia intersemiótica. Aumentar os conhecimentos sobre os significados produzidos pelas artes marciais disputadas ritualmente contribui não só para o estudo das práticas esportivas, mas também para a música, para a dança, para a pintura, isto é, para esse programa de estudos sobre as artes sul-americanas.

Além da relação mito e rito necessária para tomar essas práticas, outras formas de arte não podem ser desconsideradas na análise. A música e a dança são fundamentais como componentes dessas práticas. Para os lutadores, e também para os atiradores de dardos, há um contínuo entre música/dança/luta, ou seja, o ritual é o momento que esses competidores demonstram suas habilidades técnicas em todas essas manifestações artísticas. É interessante notar ainda que na luta, nos dardos e mesmo nas disputas no arco e flecha existe uma co-relação, um continuo entre a prática esportiva, a dança e a música, o que não acontece no futebol. Para as disputas no futebol não ocorre nem danças, nem músicas, de onde podemos depreender que no caso das práticas nativas ocorre uma ritualização, algo como transformações das relações belicosas em relações

ritualizadas, ao passo que o futebol por seu caráter exógeno pode ser realizado sem maiores prerrogativas.

Figura 13: a dança do jawari (kal. hagaka)76

A flauta atanga é um pré-requisito para os lutadores campeões e apenas um kindoto, um campeão de luta, pode ser um atanga oto, um ―dono da flauta‖, por conhecer seus toques e suas apresentações. O mesmo vale para a dança, pois a dança é parte integrante da flauta, assim como o canto é parte integrante quando da dança auguhi realizada pelos lutadores antes das lutas. No próximo capítulo veremos como todo esse conjunto é ensinado aos jovens reclusos que devem cumprir rigorosos períodos para o conhecimento técnico e artístico dessas atividades. E não só isso, uma vez que a reclusão é também o momento de aprender outra forma de arte, ou seja, ao menos entre os Kalapalo, é nesse período que os jovens aprendem as técnicas de manuseio e confecção dos colares e cintos feitos com as cascas de caramujo, objeto cultural Kalapalo por excelência.

Se a música e a dança são aqui formas de arte que devem ser consideradas, o mesmo vale para essas artes marciais praticadas efusivamente na região. Poderíamos

76 Foto Babi Avelino:

ainda ampliar o escopo ao dizer sobre a importância da decoração dos corpos lutadores para cada apresentação. Ornamentação diferente para cada posição dos participantes, se lutador, convidador ou dono de cada cerimônia. Por hora, continuamos com Menezes Bastos através da relação entre mito e rito e de como o estudo da arte pode ser profícuo para dar conta da tradução, nos termos do autor, entre um e outro. Não se trata aqui de entender a arte como em Lagrou (2007) ou Overing (1991), posto que acreditamos que tal agenda de pesquisa já se encontra bastante avançada. Todavia, o estudo das artes marciais pode trazer novos rumos, uma vez que ainda é incipiente e, como visto, muitas vezes relegado a um segundo plano.

Se a pintura (Fénelon Costa 1988), a confecção das redes, a construção das casas (Hugh-Jones 1995, embora num outro contexto etnográfico), enfim, se a produção é pensada em termos artísticos e mesmo filosóficos, o entendimento das práticas esportivas, das artes marciais indígenas necessariamente também deve ser considerado a partir dessa conjunção77. Uma antropologia das artes marciais no Alto Xingu poderia ajudar a desenvolver não somente o estatuto do corpo na região como também pode trazer questões de outras ordens, filosóficas, cosmológicas, para que a ikindene possa circular nas mais altas esferas quando se tratar das relações intra e interétnicas na região:

Em resumo, a perspectiva em estudo supõe a arte como universo central para a compreensão das terras baixas, entendidas estas como um mundo relacional e comunicante por excelência. Aqui, as ideias da intertradutibilidade dos subsistemas artísticos envolvidos no rito e, nessa trama, do papel central da música, são básicas (Menezes Bastos op. cit.: 347).

Entretanto, ao invés de nos dedicarmos à importância da música para a região, como Basso já o desenvolveu (1985), atentaremos para outra noção fundamental no continente: a fabricação do corpo e as disputas corporais que compõem esses dois maiores rituais que de maneira espiral correlaciona os níveis locais e interétnicos na região do Alto Xingu.

77 Filosofia e cuidados com o corpo, ensinados através de disputas e preparações específicas, não são

estranhos a outras culturas, como o Japão, por exemplo. Não desenvolveremos a comparação, mas artes marciais mundialmente conhecidas atualmente desenvolvem uma simbiose entre corpo e espírito através dos ensinamentos técnicos dessas artes. O judô, o caratê e o sumô, mais do que disputas corporais ensinam a seus praticantes a filosofia em confronto com os desencadeamentos históricos. O caratê, por exemplo, é o método dos pulsos, o judô é considerado o esporte olímpico por excelência, ou seja, para essas práticas não é possível dissociar o entendimento filosófico, estético e técnico-corporal.