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Futebol, dardos e luta: a temática da totalidade pelo viés das práticas

Capítulo 2. As práticas esportivas como modelos de relações interétnicas no Alto

2.2 Futebol, dardos e luta: a temática da totalidade pelo viés das práticas

No dia 10 de junho de 2010 houve uma grande concentração dos moradores de Tanguro na casa em que me hospedava. O motivo era claro: seria a abertura da Copa do Mundo FIFA. Como já afirmamos, o interesse espectador pelo futebol é crescente, ao que os mais jovens estavam empolgados com o início dos jogos. Durante a cerimônia de abertura as conversas iam sobre para quem torcer. Embora a maioria quisesse que o Brasil fosse campeão, alguns diziam preferir Alemanha, Espanha ou mesmo Itália. Não que eles se considerem ou não ―brasileiros‖, penso que essa é uma identidade que pouco tem a dizer65. Mas a vontade de torcer por outros países que não o Brasil, ao menos

‗migração‘ selva-cidade, a conversão religiosa, a escolarização, as políticas metaculturais da identidade, entre outros.‖ http://zellig.com.br/ppgas/nuti.html

64 Praticamente em todas as etnografias recentes sobre o Alto Xingu há o destaque para os times de

futebol e as disputas intra e intertribais. Visitei várias aldeias na região e em todas elas o pátio central tinha duas traves de futebol.

65 Todavia, brasileiro(a) está no documento de identidade (RG), cada vez mais comum entre os Kalapalo,

ainda mais entre aqueles que ocupam alguma atividade remunerada e para isso precisaram abrir contas em banco.

naquela hora, pareceu-me mais evidente quando o presidente da FIFA Joseph Blatter afirmou encerrando seu discurso: ―Footbal is not just a game, football is connecting people.‖ Expliquei brevemente a frase e o debate sobre para qual seleção torcer continuou dividindo opiniões.

O futebol em áreas indígenas expande as possibilidades dos processos de identidade e alteridade e não apenas nesse quesito torcedor, como veremos adiante. As configurações das equipes para cada uma das disputas aqui consideradas, futebol, dardos Jawari (kal. hagaka) e lutas apresentam uma dinâmica própria que vale ser considerada via etnografia. Começaremos agora a evidenciá-las a partir das disputas nos dardos conhecidos como Jawari (kal. hakgaka), passando pelo futebol e pela luta ikindene.

A disputa do Jawari e todo o complexo músico-ritual que engloba essa festa foram investigados pormenorizadamente nos trabalhos de Menezes Bastos (1993; 2001). Antes ainda, Galvão (1950) descreve o uso do propulsor e os preparativos para o ritual. Resumidamente, consiste no arremesso de flechas em seu oponente que deve desviar ou bloqueá-las, hora com escudos hora com suas com as suas próprias flechas. Estas são feitas de um tipo de bambu e recebem um coco na ponta que depois é revestido com resina. Ainda segundo este autor: ―O propulsor, como os dardos que lhe servem, tem, pelo menos atualmente, uso exclusivamente cerimonial-desportivo.‖ (Grifos nossos: 41). Essa esportificação de um objeto que pode ter sido usado como arma de guerra ou de caça (Steinen: 1940; 285) é ressonante com o que diz o mito. Conta-se que Sol66 (kal. Taungi), embora não conhecesse a disputa, foi competir com o ―dono do Jawari‖67 e acertou-lhe um dardo na cabeça que o matou. Quando ele foi ensinar a disputa para seus companheiros estabeleceu, porém, que as flechas só poderiam ser atiradas à altura da coxa, para evitar golpes mortais (Galvão: 1950; 41).

66 Para a descrição desses mitos alto-xinguanos ver Villas Boas e Villas Boas (1970) ) e Agostinho (1974a

e 1974b)

67Para um debate sobre a categoria ―dono‖ no Alto Xingu ver Viveiros de Castro (op. cit.) Basso (1973;

Figura 11: a disputa através dos dardos do jawari (kal. hagaka)68

Já no plano das relações históricas vejamos o que Pedro Agostinho diz:

Os impulsos agressivos e hostis, que se resolviam pela guerra com as tribos ‗bravas‘, foram ritualmente canalizados entre as ‗mansas‘ (quando e como, não se sabe) para competições esportivas: o yawari, a ‗huka huka‘ [ikindene], e o ‗jogo de bola‘69, a um nível em que as tribos se tomam como

unidade. (Agostinho: 1974a; 15).

A questão da ―unidade das tribos‖ em correlação com outras que se delimitam de maneira semelhante pode ser re-embaralhada ao tratarmos as práticas esportivas. Embora ocorra algum nível de identificação para a realização das disputas é necessário destacar que nem sempre as diferentes práticas fazem essa unidade de modo semelhante. Cada uma dessas práticas apresenta sua própria maneira de estabelecer quem serão os componentes de cada time e contra quem vão disputar.

A relação entre a guerra e o ritual é de tal modo que as disputas esportivas parecem canalizar os sentimentos guerreiros. Essa parece ser a proposta de autores que se diferenciam no tempo e nas temáticas trabalhadas, quer pelo mito ou pelo rito. Desde Galvão (1950) e Agostinho (1974a), passando por Menezes Bastos (2001) até chegar a autores contemporâneos como Guerreiro Junior (2012). Ao tratar do tema das práticas

68 Foto Babi Avelino:

http://revistaraiz.uol.com.br/portal/index.php?option=com_zoom&Itemid=162&catid=28

esportivas realizadas nesses rituais, seja a luta ou o jawari, esses autores afirmam como a guerra está numa relação de transformação com essas disputas que não mais são raides para matar inimigos, capturar mulheres ou destruir aldeias. O que ocorre é a reorganização dessa inimizade através de uma nova forma: o ritual.

O que pretendemos é que, para além dessa transformação da guerra em ritual e estilizada através de disputas corporais, as relações entre os diferentes grupos étnicos continuam a marcar presença e ser tema para gerar dúvidas e contradições. Se o contexto histórico não é mais o da guerra, como redefinir as relações entre os grupos a partir dessas práticas? Observações etnográficas demonstram que não se trata de um único caminho nessa definição e que variáveis sempre importantes para a região, como a relativização da oposição entre ―paz interna x guerra externa‖ é sempre recorrente, mesmo quando se trata das práticas esportivas.

No Alto Xingu, as disputas nos dardos, na luta e no futebol ilustram cada um a sua maneira diferentes arranjos daquilo que se poderia chamar Kalapalo. No futebol, a fragmentação das aldeias teve como reflexo o decorrente aumento no número de times. Em Aiha, principal aldeia, são dois times, cada um com um nome; Tanguro, Barranco Queimado, PIV Culuene e Lagoa Azul são outras aldeias formadas em sua grande maioria por pessoas que se reconhecem Kalapalo e que mantém um time de futebol homônimo da aldeia. Em 2008 quatro dessas equipes disputaram um ―Inter-Kalapalo‖ em Tanguro vencido pelo então único time de Aiha. Jogadores que residiam em outras aldeias foram chamados para completar times, mas apenas caso sua aldeia não estivesse participando, do contrário, ele estaria no time do lugar em que reside.

Os confrontos nos dardos (hagaka) apresentam outras composições nos times Kalapalo. A primeira e talvez principal diferença seja contra quem vão disputar. As festas do Jawari envolvem todo um complexo músico-ritual e estabelecem uma comunicação formal entre diferentes etnias componentes do Alto Xingu. É como se a linguagem falada acabasse por ser substituída pela linguagem musical e corporal, levando em consideração a variedade linguística da região. É uma prática disputada também em um ritual funerário, mas de origem tupi, sendo dita que foi ensinada aos alto-xinguanos pelos trumai. Se a luta é disputada contra aqueles que ―viraram gente‖ (kal. kuge), para usar a expressão de Marcela Coelho (2001), o jawari é uma disputa que veio daqueles que são ngikogo, ou seja, é a alteridade mais distanciada, são aqueles tratados sempre com adjetivos pejorativos, com quem a desconfiança é a marca, enfim, a relação é mais marcada pela ambiguidade, são os ―índios bravos‖:

Quanto à colcha de retalhos que o sistema cancional do Jawari me estava parecendo, disse-me o chefe que o Jawari ‗era assim mesmo‘, festa de ‗índio bravo‘ (isto é, não-xinguano) que os pró-kamayurá – isto é, os kamayúla ou tupi genéricos invasores do santuário xinguano karib-aruak – haviam aprendido com os trumai, que por sua vez haviam aprendido com os célebres pajetã70. (Menezes Bastos 2001: 352).

Outra característica distintiva dessas festas é que elas colocam em oposição dois grupos que vão dançar, cantar pilhérias, jogar dardos e estabelecerem relações formais de troca de especialidades materiais. Em 2010 uns poucos jovens de Tanguro se reuniram ao pessoal de Aiha para enfrentarem os Kamayurá numa disputa de dardos.

Isso nos leva a um aspecto importante desta diferença: o convite. No futebol as aldeias disputaram entre si uma competição em que levavam o nome de cada aldeia. Mesmo quando de torneios maiores, como o torneio de futebol do Posto Leonardo que ocorre anualmente em dezembro, cada aldeia leva seu time. Não existe, por exemplo, uma seleção de futebol Kalapalo: Aiha leva seus dois times, Tanguro leva o seu etc. Já para os dardos, o convite é precedido de formalidades que acontecem apenas na aldeia de Aiha. Cabe aos chefes de lá retransmitirem o convite aos demais Kalapalo, o que já indica as disputas políticas que envolvem esses convites. Mas antes de entrar neste debate faccional, devo enfatizar que os dardos usualmente ocorrem entre duas etnias

falantes de línguas diferentes e que no caso Kalapalo o convite é geralmente direcionado a Aiha.

Todavia, um convite feito aos Kalapalo de Tanguro em 2011 para disputar dardos faz bagunçar um pouco essa relação formal entre as nove etnias71 do Alto Xingu. Os Suyá não são considerados como pertencentes a esse sistema, pelo menos não numa bibliografia mais tradicional, entretanto, começam a estabelecer relações mais próximas com Tanguro. Ao final de minha estadia na aldeia em 2011, os moradores de Tanguro estavam empolgados com sua terceira viagem para a aldeia suyá nos últimos dois anos. Diziam que eles sabiam ―bem pouco‖ de luta e ―mais pouco‖ de dardos, em compensação havia muita comida e mulheres bonitas por lá. A despeito da distância entre as aldeias, aproximadamente 12 horas de caminhão, vale notar que os Kalapalo de Tanguro mantêm contato com os Suyá e que o convite foi feito a eles, embora não tenham retransmitido o convite para os Kalapalo de Aiha, nem de outras aldeias.

A luta (ikindene) concentra as relações entre as etnias e entre as aldeias de uma mesma etnia. Como será visto, as relações por detrás da organização ritual dinamizam alianças e disputas. Por hora é importante ressaltar que o time de luta dos anfitriões é escolhido pelo ―dono do Egitsü‖ e leva em consideração uma complexa e dinâmica rede de relações que vão desde as habilidades pessoais de cada lutador, relações de parentesco e diferenças linguísticas.

Quero dizer que a formação para essas disputas que se convencionou chamar de práticas esportivas tem muito a dizer sobre temas amplamente debatidos para o contexto ameríndio, especificamente no Alto Xingu: ―onde está a totalidade?‖ é uma pergunta que ressoa constantemente quando se pretende definir os limites sociais, econômicos e rituais da sociedade alto-xinguana. Se para Menget (op. cit.) a guerra (e o sistema de parentesco) era a atividade social por excelência que totaliza o que se poderia esperar por uma sociedade Txicão, devido à importância da incorporação do outro exterior pela captura dos nomes e dos cativos, a recente fragmentação das aldeias kalapalo sugere que, no atual contexto em que a guerra está ritualizada, o que mais se aproximaria de uma ideia de unidade está na luta. Poderíamos denominar Kalapalo o time formado para lutar, mas não os times de futebol, necessariamente precedidos pelo nome de cada

71 Para lembrar: Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib); Wauja, Mehinaku, Yawalapíti (arawak);

aldeia ou mesmo de cada time. E mesmo assim ocorrem inflexões que merecem ser pensadas.

A dinâmica das relações de aliança na formação dos times de luta já havia sido sinalizada desde o projeto que originou esta tese quando alguns Kuikuro se aliaram aos Kalapalo nas disputas contra os próprios Kuikuro em 2008. À época deram como motivo a vontade de ajudar os Kalapalo com sua associação indígena, que enfrentava alguns problemas. Agostinho narra episódio semelhante para mostrar como a formação dos times atualiza relações políticas. O exemplo é o de dois grupos Kamayurá que, opostos no plano da aldeia devido divergências quanto à chefia, assumiram posições contrárias quando da luta. Uma das facções se aliou aos Yawalapíti, donos da festa e com quem possuíam laços de parentesco; a outra facção aliou-se aos Kalapalo, que estavam como convidados. O autor destaca como a luta é importante exatamente por manter a oposição entre os grupos, seja no plano das relações internas ou no plano das relações intertribais:

É importante, entretanto, notar que, ao se defrontarem indivíduos kamayurá integrados em equipes opostas, estabelecia-se, expressava-se e resolvia-se, numa competição intertribal, o conflito originado, neste caso particular, em nível intratribal. Isto exemplifica a profunda interdependência desses dois níveis, na sociedade xinguana. (Agostinho 1974a: 134)

A disputa política das facções Kamayurá colocou em combate suas divisões através das alianças que se firmaram para as lutas. Embora as relações de parentesco sejam fundamentais para a consolidação das alianças que determinam os times, outras variáveis imputam oposições e dinamizam as relações entre os grupos. Entretanto, ao invés de ―resolver‖ os conflitos, internos ou externos, a luta, ao contrário, dinamiza esses confrontos e exacerba as oposições entre as facções ou mesmo entre as etnias participantes.

Essa é a proposta que parte do arcabouço teórico da antropologia das práticas esportivas. Se o termo esporte é uma construção social do ocidente que se expandiu a ponto de se tornar um ―guarda-chuva‖ para cobrir diferentes práticas, de onde propusemos uma ampliação etnográfica para outras situações (Toledo e Costa 2009), procedimento análogo vale aqui para as definições indígenas sobre essas atividades. Rotular como esporte a luta, dardos, arco e flechas, futebol e outras práticas corporais

pode não dar conta do entendimento nativo sobre o tema. A apresentação das diferenças internas entre elas pode ser mais frutífera do que a colocação sob uma mesma rubrica.

Ainda mais que quase sempre a análise segue uma via muito debatida pela antropologia das práticas esportivas que é o entendimento do esporte como um mecanismo de controle social da violência. A dupla relação entre esporte e sociedade e entre sociedade e esporte é indicativa de que a luta, neste caso particular, não ―serve‖ para arrefecer tensões ou ser válvula de escape, mas antes ela liquidifica harmonias. A sempre iminente feitiçaria nas noites que antecedem os Egitsü, o perigo das arenas enfeitiçadas, os desentendimentos que terminam em brigas generalizadas que necessitam de muita política para serem contornados, enfim, o que a luta faz é antes criar uma tensão do que arrefecer conflitos étnicos. É uma transformação da guerra em ritual que atualiza diferentes maneiras de se pensar sobre a totalidade dos grupos em questão através de disputas corporais.

Enquanto a luta é a expressão mais restrita do que pode ser considerado grupo étnico, obviamente no recorte aqui proposto das práticas esportivas, o futebol é o que mais agrega alteridades, por assim dizer, ao passo que o Jawari ocuparia uma posição intermediária. Uma única aldeia pode ter um, dois ou mais times de futebol, masculinos e femininos. Campeonatos de futebol como o ―Inter-Kalapalo‖ que ocorreu em 2008; torneios e amistosos contra Suyá, Xavante ou mesmo contra os times dos caraíbas que trabalham na região são comuns de acontecer, inclusive o torneio de final de ano no Posto Leonardo já faz parte do calendário das aldeias. Por isso grupo aqui não se remete ao velho debate sobre a existência ou não dos ‖grupos corporados‖ ou à ―flexibilidade‖ dos sistemas sul-americanos72. Antes, trata-se de um recurso na tentativa de dar conta da variabilidade de conjuntos formados em diferentes momentos e com distintos objetivos, mais especificamente o confronto através daquilo que vem sendo definido como práticas esportivas.

72 Ver Mehinaku (2010) e a crítica feita por Guerreiro Junior (2012) a Heckenberger voltando à temática

2.2.1 “Futebol é igual festa, para tudo”

Tomadas as relações entre futebol, dardos e luta, reconhecemos uma importante categoria que ajuda na conexão entre essas práticas: a noção de ―festa‖. O termo já foi tratado por autores como Franco Neto (2010), que trabalha a partir da questão do ―português de contato‖ e como esse termo deve ser reavaliado. Fausto divide os rituais alto-xinguanos em ―festas para espíritos‖ e as ―festas para pessoas importantes‖ (Fausto, 2007: 30). Nesse sentido, ocorre certa assimilação entre as noções de festa e de ritual, usados quase como sinônimos, mesmo que nessa relação de contato. O que se adapta com a imagem transmitida pelo futebol em duas frases ditas em situações diferentes envolvendo o futebol. Por conta da transmissão dos jogos da Copa do Mundo, Sikan afirmava enquanto via que a aldeia se movimentava para ver os jogos: ―futebol é igual festa, para tudo‖. Em outra oportunidade, também no ano de 2010, Urissé Kalapalo, de Aiha, me disse que em época de Copa do Mundo as pessoas só comem comida de caraíba, porque ninguém quer sair para pescar e perder os jogos transmitidos pela televisão.

Já por ocasião de outro torneio, também organizado pela entidade que dirige o futebol mundial, a FIFA, um jovem assim definiu em sua página do facebook a relação entre futebol e a vida nativa:

Fifa Xingu

Fifa cultura alegria, ano novo 2013 está chegando. Se prepare

Somos filho de Arvore Ipê Amarelo73.

Criado pelo Deus existir pra sempre.

Esse poema foi retirado da página do facebook de Farato Matipu nas semanas anteriores à disputa do Mundial de Clubes da entidade disputado no Japão. Através da FIFA é que o futebol se forma em festa, nesse sentido é como se a FIFA fosse a ―dona da Copa do Mundo‖, ou mesmo dos outros torneios, o que não deixa de ser verdade. Pode ser que seja essa uma das razões pela qual o futebol adentrou tão profundamente nas aldeias do Alto Xingu. Para além do potencial expansivo já levantado por autores

73 O ipê é a árvore símbolo dos povos alto-xinguanos, de onde surgiu o mundo atual, como veremos no

como Toledo (2002), Archetti (2003) e Bromberger (2008), algo que fez do futebol um fenômeno mundial, o futebol demonstra como as disputas esportivas e as festas de confraternização ocorrem conjuntamente. O futebol é tido não só por sua prática cotidiana, mas ele foi reinterpretado, por isso mesmo não ocorre em determinadas épocas. É incrível como ninguém joga futebol nos momentos em que a luta está ocorrendo. Luta e futebol competem mais do que pelo pátio central da aldeia, competem também pelo interesse dos participantes e preparação de seus competidores e espectadores. Os meses em que ocorre a preparação dos lutadores e das famílias organizadoras do Egitsü não há jogo algum nos pátios, apenas se treina para a luta e se preparam as alianças.

Em compensação, imediatamente ao término do último Egitsü da temporada 2011 os times se reorganizaram para as disputas no futebol. Na aldeia Matipu os Kalapalo estavam aliados na luta aos donos da festa mais os Nahukua e os Yawalapíti. Estes dois últimos foram embora e ao final da tarde de domingo uma nova composição se formou, agora os Kalapalo x Matipu para a disputa futebolística. Existe uma consideração de que as variadas práticas esportivas devem ocorrer em suas determinadas épocas. Assim é com o tá, que marca a queda do pequi e o início de um novo ciclo do Egitsü, pois é a partir daí que se pode preparar o mingau que será armazenado até o próximo evento. Os rituais de hagaka ocorrem geralmente antes do período da luta, mas já na época da seca. Após os Egitsü, quando se luta, têm início às disputas através do futebol, que pode ser praticado na mesma época que o tá. Isso nos levaria a um debate sobre a demarcação da periodicidade através dessas práticas.74.

O futebol enquanto prática esportiva foi assumido como mais uma possibilidade de que, através de disputas corporais e festas de confraternização, grupos podem se colocar em relação. O futebol, ainda assim, escancara as possibilidades, pois como vimos, ele não ocorre somente entre aqueles que se consideram ―gente‖, mas é disputado contra inúmeros outros povos, com os quais não se tem outras formas de