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Flautas, especialidades étnicas, conhecimento tradicional

Capítulo 3. Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos para lutar

3.2 Procedimentos técnicos e preparação intensiva: a fabricação do corpo do

3.2.2 Flautas, especialidades étnicas, conhecimento tradicional

A formação física, técnica, intelectual e política do lutador é feita e apreendida no núcleo doméstico, com grande importância da mãe (que angaria outras como irmãs e cunhados do lutador) e da parentela masculina, o pai e os irmãos dele – irmão no

sentido cognático. O parentesco e o corpo do lutador são fabricados conjuntamente e o período de reclusão é o momento em que isso é mais intenso. Lembro que os processos da reclusão são semelhantes em suas diferenças para homens e mulheres, porém, por se tratar de focar uma reclusão específica serão tomadas essas duas relações como base para a análise: o lutador e sua mãe e o lutador e sua parentela masculina nos momentos da luta ritual. Claro está novamente que essa relação se estende e se complexifica de acordo com os propósitos tomados em consideração. Os pais ensinam muitas coisas aos seus filhos, desde a confecção das especialidades étnicas, saberes da tradição oral, conhecimentos botânicos. Seria interessante aprofundar cada uma dessas especialidades transmitidas aos jovens, pois esses conhecimentos condicionam a formação de um grande lutador.

Entre os Kalapalo, os colares de cascas de caramujo são confeccionados pelos jovens em reclusão. São basicamente de dois tipos: os cinturões que são redondos e os colares inhu aketühügü que são placas retangulares. Esse colar é mais difícil de fazer, desde a confecção das placas de cascas de caramujo, como pela amarração que é feita quando as placas já estão prontas. Nesse momento é necessária concentração e paciência, pois o colar fica sobre um banco e algumas vezes ao dia o artista vai até a obra e olha buscando o melhor posicionamento de cada uma das placas. Num colar tradicional pode haver mais de 150 dessas placas.

Neste banco ainda estão os alicates, lixas e as cascas que serão cortadas em pequenos quadrados na primeira etapa até que um alicate menor faça um círculo. Depois de arredondas as placas são furadas com uma vareta de uns 50 centímetros com ponta perfurante. Essa vareta é friccionada de cima para baixo diversas vezes até que se faça o furo. Nos cinturões e pequenos colares (uguka) o furo deve ser feito no centro da placa; já para os inhu aketühügü, que é mais complicado, são feitos dois furos, um em cada extremidade da placa.

Para os colares uguka e cinturões a amarração é relativamente simples, basta colocar as placas na linha com uma agulha. Para ficarem mais redondas, isto é, bonitas, elas ainda são lixadas mais uma vez, para que todas fiquem do mesmo tamanho. As placas do inhu aketühügü são lixadas antes da amarração, por isso o trabalho, como em todas as demais etapas, é mais lento e meticuloso. É isso que os jovens aprendem e na velocidade em que aprendem, ou seja, calma e pacientemente, tal como o ideal alto-

xinguano. Esse banco é visitado pelo recluso diversas vezes ao dia, sendo comum que outras pessoas ao passar também se ocupem para ajudar. Sempre muito bem protegido e cuidado pela mãe.

Figura 19: O artista e sua obra. Ordenação e amarração das placas das cascas do caramujo96

Os jovens estão aprendendo essa amarração, um dos principais ensinamentos desse período. As placas já furadas devem ser percorridas pela linha de modo que o trançado as deixe colocadas uma por sobre a outra, um efeito escama. Na parte superior outra linha mais grossa é atada ao colar e serve de amarração que será feita na parte de trás do pescoço. Não bastasse a dificuldade dessa amarração, uma das partes mais difíceis segundo um especialista, é a ordenação das placas. Como foi dito, são mais de 150 e o tamanho delas deve ser levemente diferente, pois o colar assume a forma ovalada quando colocado no corpo. As placas que ficam nas extremidades são consideravelmente menores que as que são posicionadas no centro. Ou seja, é uma dificuldade dupla, pois partindo de uma ponta elas devem começar pequenas, aumentar gradativamente até um ponto ótimo e diminuir regressivamente. É só depois de ter chegado ao melhor posicionamento que é feita a amarração, o que pode durar dias e dias.

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Em cima a vareta kunugija que tratamos no capítulo 1. Atualmente a ponta é feita com agulha de máquina de costura que eles sempre pedem para que sejam levadas de presentes.

A amarração é um dos principais ensinamentos aos jovens durante o período, pois é comum ouvir que ―só Kalapalo‖ sabe fazer a amarração original dos colares. Isto indicaria outro mecanismo de totalização do que se suporia Kalapalo. A amarração típica do colar é emblema diacrítico do ser Kalapalo em oposição aos demais povos que sabem fazer outras coisas, como os Kamayurá com os arcos pretos ou os Wauja com a cerâmica. Além do interesse analítico na especialização de bens materiais, que a troca ritual estabelece de comunicar, o aprendizado dessas técnicas merece especial atenção nesta etnografia. Para os Kalapalo é salutar que os campeões de luta (kindotoko) sejam feitos através de longa permanência na reclusão. O aprendizado das amarrações, assim como os conhecimentos da flauta atanga (tocada principalmente durante o Egitsü), são propriedades de um grande lutador que quanto mais tempo permanecer na reclusão, mais chance terá de ser um campeão, flautista e que saiba fazer os colares. Em suma, para um jovem que seja de família anetü quanto mais tempo em reclusão mais chances terá de ser kuge hekugu: ―gente de verdade‖, o que possibilita que ele venha a se tornar chefe97.

Os conhecimentos musicais também são praticados pelo recluso. Com uma pequena flauta de quatro bambus repete os toques que se reproduzirão nas flautas kagutu e kuluta, as flautas proibidas para as mulheres, e atanga e takwara (Piedade 2004, Mello 2005). Os lutadores campeões (kindotoko) são também atanga oto, ou seja, os jovens que treinam para serem ―donos da luta‖ também se apresentam durante o Egitsü como ―donos das flautas‖, nesse caso a flauta atanga.

97 Em sentido complementar, Franco Neto e Figueiredo afirmam que o feiticeiro também é feito através

Figura 20: Dupla de flautistas atanga oto

Não temos material etnográfico para analisar a importância da musicalidade no Alto Xingu. Entre os Kalapalo Basso (1985) dedicou uma obra para tratar a importância da relação entre mito e rito, tal qual aqui pretendemos, sendo que se o mito tem sua expressão verbal o rito tem sua expressão musical, cuja soma constituiria uma ―musical religion‖. Basso desenvolve a partir de Lévi-Strauss a relação entre mito e rito através da música, mas não da relação entre mito/rito/música nas tradições ocidental e ameríndia. A proposta da autora é tomar o mito e o rito como contextos etnográficos a partir de suas relações com a música, ou seja, buscar os significados da música e das expressões verbais nos mitos e ritos Kalapalo. Procedimento semelhante ao que já tratamos em Menezes Bastos para quem a música faz a conexão entre mito e rito.

De maneira análoga, contudo, com a lente voltada para a luta, trataremos de demonstrar como todo esse conhecimento aprendido durante a reclusão seja na confecção de especialidades étnicas, no domínio das flautas, nas tradições orais e na própria preparação corporal para a luta, a reclusão é o período definidor na vida desses jovens. Como a luta é vivida cotidianamente, o que se fala das lutas nos mitos e ainda, como essa luta é disputa ritualmente. São temas que extrapolam os limites das aldeias, por se tratar de um sistema interétnico, por isso mesmo focar na luta e na preparação

desses lutadores. Mais uma vez se percebe como aspectos constituintes da sociabilidade alto-xinguana são transmitidos aos jovens durante esse período de reclusão, o qual é destinado à preparação para lutar. A confecção das especialidades étnicas, a produção de corpos, de flautistas, de jovens noivas são investimentos que, principalmente nas famílias de chefes, são feitos nesses jovens. O ritual é o momento de fazer com que essas especialidades, de produtos ou de corpos, sejam trocadas, enquanto o mito apresenta um conjunto de transformações quando se tomam suas versões, o que por si só demonstra a conexão entre eles. É com essa proposta estruturalista de Basso que continuaremos a olhar os aspectos mais importantes da luta, neste caso, a fabricação dos corpos lutadores e sua estreita ligação com a transmissão da chefia.