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Considerações sociológicas e categorias da alteridade

Capítulo 1. Os Kalapalo do Alto Xingu: uma abordagem

1.3 Considerações sociológicas e categorias da alteridade

Os Kalapalo apresentam as características gerais dos chamados sistemas cognáticos, com filiação indiferenciada. A produção do parentesco se faz no interior do grupo doméstico através de determinadas prescrições e proibições alimentares, relativas aos sistemas terapêuticos e, principalmente, da residência em comum. O casamento com a prima cruzada matrilateral no interior da aldeia é uma alternativa sempre levada em consideração frente ao casamento interétnico ou mesmo em outras aldeias Kalapalo, embora o conceito de tetsualü, a ―mistura‖, seja sempre um tema importante para a região.

A genealogia a seguir ilustra essa tendência através dos casamentos ocorridos entre o ―dono da aldeia‖ Vadiuví, responsável pela abertura de Tanguro e seu primo e cunhado Walama, considerado o principal chefe de Tanguro atualmente. Na geração seguinte ocorre o casamento entre seus filhos respeitando as mesmas regras, isto é, com a prima cruzada matrilateral e seguindo a residência pós-marital na casa do sogro:

Mugica Tagima Kagahügü Maitsa Iguka Kadjulu

(Mh)

(Mh) (Mh)

Tadjui Yanapukualu Arakuni Kasahá

(Nh)

Vadiuví Kanualu Walama Kalühi

Yakálo Japaku

Figura 7: Demonstração dos casamentos com a prima cruzada no interior da aldeia50

Não nos deteremos em pormenores neste trabalho sobre o sistema de parentesco e de casamento através de genealogias e estatísticas, mas a forte tendência uxorilocal em Tanguro deve ser ao menos apresentada. Os casos em questão permitem afirmar que a residência do marido na casa dos sogros após o casamento, mais do que uma regra matrimonial sugere uma lógica no sistema de atitudes que faz com que os genros sejam devedores de seus sogros ao longo de toda a vida. Embora Guerreiro Junior (2008) já tenha afirmado que a uxorilocalidade para os filhos de chefes se afrouxe ao longo do tempo51, a relação perante os sogros, marcadas pela vergonha e pelo respeito, o típico comportamento alto-xinguano ihütisu (Basso 1973; Franco Neto 2010) permanece ao longo da vida52. Um exemplo que se aproxima de nossa temática é quando os lutadores

50 (Mh) Mehinaku e (Nh) Nahukua.

51 A uxorilocalidade enfraquece para os chefes, como no casamento interétnico de Walama, no qual sua

esposa Nahukua foi morar em Tanguro.

52 Comportamento esse que parece se basear em princípios semelhantes com os quais Descola (1998)

trabalha a relação problemática entre homem e caça. A condenação da avareza e o autocontrole de si, a despeito das diferenças etnográficas entre os Kalapalo e os Achuar, são atitudes distintivas da humanidade. O comportamento ihütsu diz muito sobre essas qualidades.

de outras aldeias se hospedam na mesma casa que seus sogros e não que seus pais transmitindo a eles os dividendos de serem convocados para as lutas (mais à frente).

Dos casamentos acompanhados ao longo dessa pesquisa53 todos foram realizados respeitando a regra da uxorilocalidade e até nossa última estadia na aldeia permaneciam assim. Claro que casamentos que respeitam a uxorilocalidade também podem não dar certo e resultar em separação, entretanto, não deixa de ser interessante o fato de que os dois únicos casamentos sem que tal regra fosse respeitada terminaram em separação do casal. E mais ainda, pois se tratava de mulheres filhas de chefes.

O primeiro caso foi o de uma das filhas de meu anfitrião que se casou com seu primo (matrilateral) que residia no PIV Culuene e, ao invés de ele se mudar para Tanguro, foi ela quem partiu para a casa de seu tio. O casamento durou pouco tempo e a garota voltou para a casa dos pais sem maiores constrangimentos – talvez até porque ainda não tivesse engravidado.

O segundo caso apresenta ingredientes mais românticos, embora também não tenha resultado em final feliz para o casal. Após uma edição do Egitsü em Aiha, quando o pessoal de Tanguro ficou hospedado naquela aldeia por volta de dez dias, a balsa iria levar-nos de volta até o porto kuikuro para que pudéssemos terminar o trajeto via terrestre. A balsa já ia longe do porto de Aiha quando uma jovem aparece correndo margeando o rio e, de repente, se atira na água e começa a nadar em direção da balsa. Havia um barco a motor, desses conhecidos como voadeira, que estava amarrado à balsa. Um rapaz saltou no barco e foi buscá-la usando o remo. Quando chegaram à balsa, pelo menos para minha surpresa, a filha do cacique Waja estava decidida a se casar com seu primo de Tanguro (Narüvütü) e apenas com seu vestido se jogou em direção de seu pretendente. Já em Tanguro, a moça permaneceu na casa de seu tio, pois para sua infelicidade, ele não tinha o mesmo interesse. Poucos meses depois a jovem desistiu dessa situação e retornou para Aiha, onde ainda hoje reside na casa de seus pais.

53 Nesse período foram oito casamentos, cinco moradores de Tanguro que mudaram da casa de seus pais

para a casa de seus sogros e três homens de Aiha que vieram morar em Tanguro, um jovem lutador, um jovem chefe e um homem com descendência Narüvütü. Este último se divorciou em Aiha e se casou novamente em Tanguro, mudando-se também para a casa de seus sogros – sendo que seu pai, mãe e irmãos já residiam em Tanguro, ou seja, ele se casou em Aiha, por isso mudou-se para lá e, após a separação preferiu se casar na aldeia em que vive sua família, mesmo que agora haja uma retomada de sua família para a Terra Pequizal de Narüvütü ele continua na casa de seus sogros.

Ato e ajo, tal como descrito por Basso (1973), estão no rol das categorias de relação que extrapolam os limites de uma divisão entre afinidade e consanguinidade, por isso mesmo que a autora desenvolve a questão em termos de diferenciar as categorias de relação das categorias de relacionamento, tendo como resultado a importância da fabricação dos corpos e do cognatismo. Uma das brincadeiras favoritas é importunar alguém apontando quem são seus ―namorados‖ ou ―namoradas‖. Certa feita, numa completa indiscrição de minha parte, percebi a indignação de Sampaio – um de meus companheiros de pesca – provocada por minha falta de tato por não perceber a diferença entre ihütisu (esposa) e ajo (namorada). Depois de terem perguntado por minha namorada, disseram para eu enumerar as namoradas de Sampaio. Foi aí que comecei a contar pelo nome de sua esposa, Haihualu. Num tom rude que acabou por colocar fim na brincadeira, ao menos no momento, ele disse ―Haihualu uhitsü‖, quer dizer, Haihualu era sua esposa e não sua namorada o que, percebi na hora, serem coisas bem diferentes.

Voltando ao tema da relação entre sogra e nora, seria prolongar demais nossas prerrogativas ao dizer sobre sua presença no mito de origem quando a sogra mata a nora, a mãe dos gêmeos Sol e Lua. Nesse casamento mitológico foram as mulheres que partiram em direção ao Onça, enviadas pelo pai que as fez de madeira. Trabalharemos esse episódio mais pormenorizadamente por se tratar de uma longa sequência que narra desde a origem do mundo até as lutas entre os peixes e os animais terrestres. Essa epopéia é uma das mais famosas sobre o Alto Xingu e posteriormente tratarei de apresentar mais uma contribuição. Por hora vale apenas destacar como o mito traz o casamento invertido (sem a uxorilocalidade) e um final trágico, tema recorrente para falar da relação conflituosa entre nora e sogra (Lévi-Strauss [1964] 2004: 157) e como o respeito à regra da uxorilocalidade faz evitar nos casamentos atuais.

No fim, e por essas coisas que simplesmente acontecem, a filha de meu anfitrião que havia retornado à aldeia após um casamento malsucedido e esse rapaz Narüvütü que não pretendia se mudar para Aiha acabaram por se casar e hoje moram na mesma casa que me hospedo, ou seja, segundo a regra da uxorilocalidade. Embora essas informações sobre os casamentos sejam pouco sistematizadas o interesse é ressaltar que, ao menos em Tanguro, o casamento com a prima cruzada no interior da aldeia e a moradia na casa do sogro é sempre uma opção amplamente levada em consideração.

Kassi Narüvütü

Não afirmamos categoricamente essa tendência à endogamia no plano da aldeia, mas é fato que não presenciei nenhum dos jovens de Tanguro em idade de casamento deixar a aldeia para se casar. Pelo contrário, além desse rapaz que afirmou não querer se casar com a filha do chefe de Aiha exatamente para não ter que se mudar para lá, um de seus irmãos, mais velho que ele, permanece solteiro. Questionei Main sobre essa situação e sua resposta foi muito simples: ―nhalü itáo‖, ou seja, ele não se casava porque não havia mulheres para ele em Tanguro. As mulheres com quem ele poderia se casar já estão casadas e, devido ao fato de ele não desejar mudar-se de aldeia, permanecia solteiro. Tais observações, ao menos, nos permitem inferir a importância da residência pós-marital e a margem de manobra para interesses e escolhas individuais com relação ao matrimônio.

Esses casos também ajudam ilustrar como em Tanguro parece haver uma tendência entre os casamentos ocorrerem entre as casas. Meu anfitrião também era considerado ―dono da aldeia‖. Ele se casou com duas esposas que são irmãs. Um de seus filhos já está casado com uma das filhas de seu cunhado, novamente o casamento com a prima cruzada matrilateral – como demonstrado na genealogia acima. Ele tem mais duas filhas casadas com dois irmãos (Narüvütü) que se mudaram para sua casa e que também são primos cruzados. Essa disposição matrimonial conecta a relação entre os casamentos matrilaterais no interior da aldeia com a instituição da chefia. Não desenvolveremos o tema por hora, mas é importante ter em mente que a chefia, os casamentos e a noção de casa não devem ser tomadas separadamente.

Mulheres casadas com o ―dono da aldeia‖; uxorilocalidade enfraquecida com o tempo Homem casado segundo a regra da uxorilocalidade

Homens casados segundo a regra da uxorilocalidade

Figura 8: casamentos realizados entre três casas de Tanguro Walama

Há que se destacar que todos esses casamentos ocorrem entre primos cruzados, ou seja, o dono da aldeia é primo do chefe Walama, ao que se tornou cunhado ao receber suas irmãs. O dono da aldeia considerava seu primo como cacique, devido ao sistema de relacionamento entre cunhados segundo o qual o recebedor de mulheres é devedor de outros bens e serviços. Em contrapartida, ele recebe homens para trabalharem para ele quando casados com suas filhas, todos de uma mesma casa, sendo que uma das setas amarelas desposará em breve outra de suas filhas, ficando com duas mulheres, o que tem como efeito a diminuição da concorrência de outro grupo doméstico54. É uma situação que se confirmará ou não com o tempo, mas as próprias mães costumam brincar que seus filhos mais novos também se casarão entre si. Vez por outra as mães dos meninos diziam que no futuro os mais jovens iriam se casar com as meninas mais novas da outra casa55.

Vimos que a atualização ou não destes casamentos depende também dos interesses individuais e não apenas de certos arranjos entre as famílias. A relação entre a casa dos Narüvütü e a casa do dono da aldeia demonstra isso. O primeiro homem a ir casou-se com a primogênita de uma das esposas e ficará também com a filha da outra esposa de meu anfitrião. Um de seus irmãos, desde minhas primeiras viagens, insiste em se casar com uma das filhas da segunda esposa de meu anfitrião, mas ela faz jogo duro com ele e não o aceita como pretendente. Ele pesca para a mãe da garota, lhe dá presentes, mas ela não o quis por esposo. Como não há mais mulheres em idade de casamento nessa casa, ele me disse com profundo pesar que não havia mais esposas para ele, que não havia mais o que fazer, a não ser esperar. Perguntei por que ele não ia buscar em outras aldeias, ao que ele negou enfaticamente, mostrando seu desejo de permanecer em Tanguro. Ele ficou sozinho numa casa recém-construída, sendo que dois de seus irmãos moram na casa do dono da aldeia e um terceiro irmão mais velho mora na casa ao lado, onde é casado após sua separação em Aiha.

Além dessas setas indicando casamentos efetivos, existem ainda mais quatro possíveis casamentos que poderão ou não ocorrer num futuro próximo, mas o que isso demonstra é o interesse dessas casas em permanecerem conectadas através dos laços de

54 A chamada poliginia sororal, capaz de manter a uxorilocalidade como regra de residência ao fazer o

marido mudar-se para a casa de suas esposas – que são irmãs.

55 Todavia, o mesmo não acontecia com os rapazes solteiros mais velhos, especialmente com Rud que,

como será visto, não pode nem pensar em sexo ou casamento porque sua concentração é totalmente voltada para a luta.

parentesco e matrimoniais. Isso é indissociável do tema da chefia, uma vez que ela é retransmitida entre os grupos. O dono da aldeia passou a chefia para seu cunhado de quem recebeu duas mulheres e na geração seguinte a chefia retornará para seu filho que já foi casar e morar na casa de seu sogro. E vale lembrar que embora Walama seja considerado o chefe de Tanguro, Yakalo, o primogênito de Vadiuví casado com a filha de Walama, é apresentado em diversas ocasiões rituais como futuro chefe, como aquele que está sendo construído, que é conduzido pelo pulso para se sentar no lugar do chefe (mais à frente).

Figura 9: Yakalo recebe os convidadores de um Egitsü em Aiha

Por esquemático que pareça, entendemos que esse cálculo, embora não seja completo, ajude na elaboração desse processo tão debatido pela literatura atual do Alto Xingu, de como é construído o aparentamento (Figueiredo 2010, Guerreiro Junior 2012) e qual sua relação com a chefia, principalmente através da luta e dos lutadores. Transformar consanguíneos em afins ou afins em consanguíneos seria secundário, no sentido de que o mais importante seria a manutenção de um status de chefia através da construção e continuidade da hereditariedade dos chefes em oposição aos camarás e também a atualização disso através da produtividade e da demonstração de

generosidade dos chefes que sempre é conseguida de acordo com a quantidade de trabalho que ele consegue aglutinar ao seu entorno para a realização de rituais.

***

Outras características sociológicas importantes de serem apresentadas desde o início marcam as relações entre os Kalapalo e seus outros desde o plano mais interno ao fogo doméstico (Menget op. cit.) até mesmo com a alteridade mais distante, os ―outros índios‖ e mesmo os brancos. No karib alto-xinguano existe um quadro classificatório que dá conta tanto das relações entre esses nove grupos e seus outros vizinhos, inclusive os kagaiha, ou caraíba.

Otomo é o que poderia ser considerado o grupo local, geralmente associado a um território que pode corresponder a sítios ancestrais ou a localidades atuais. Os Kalapalo, por exemplo, são chamados muitas vezes por ―Kunugijahütü otomo‖, ou seja, o pessoal de Kunugija, pois o sufixo hutu significa ―lugar‖ e Kunugija um dos territórios ancestrais dos Kalapalo. Otomo é o coletivo de oto, ―dono‖, e refere-se aos moradores de um lugar sendo que as aldeias xinguanas são designadas em karib por X otomo, onde X é geralmente um topônimo (Franchetto, 1986: 67). Acrescentaria aqui que a referência ao otomo, em alguns casos, também pode ser uma pessoa, quando se trata de grupos domésticos mais reduzidos, como ―o pessoal de fulano‖.

As categorias da alteridade estabelecem uma gradiente de distância a partir do qual o otomo, o grupo doméstico mais restrito, se expande em direção ao exterior. Do ponto de vista Kalapalo, kuge pode ser considerado ―gente‖, uma marcação usada para falar sobre os demais grupos alto-xinguanos que se reconhecem mutuamente. Uma maneira prática para se dizer quem faz parte desse universo ocorre através das atividades comuns a esse conjunto de pessoas e povos, a luta, por exemplo. As prerrogativas nos convites para a participação nos rituais, a dieta baseada no peixe e no beiju, a formação circular das aldeias, a casa das flautas (kuakutu) no centro da aldeia, a generosidade e a calma, o interesse pelas trocas de presentes, dentre outras características, delimitam o alto-xinguano, aqueles que são kuge.

Esse marcador, para usar o termo já trabalhado por autores como Viveiros de Castro (1977) e Franchetto (1989), também pode ser acrescido de hekugu, algo como ―legítimo‖, ―verdadeiro‖, onde, novamente do ponto de vista Kalapalo eles seriam os

mais ―autênticos‖. Esse marcador enfático é usado para inúmeras outras categorias da alteridade, seja sociológica ou cosmológica. Os chefes verdadeiros são anetü hekugu, os pajés huati hekugu e mesmo as aldeias principais são consideradas ete hekugu. Uma característica desse marcador é por ele ser um diferenciador, o que sugere que, para ser de verdade, não pode haver muitos. Assim como um dos grandes emblemas do ser alto- xinguano, a luta: ikindene hekugu, algo como a ―verdadeira luta‖, aquela que poucos sabem, ou melhor, a verdadeira luta que poucos sabem de verdade. Todos sabem lutar, mas o quanto cada um sabe lutar é que diferencia os lutadores de primeiro escalão dos lutadores secundários. O uso do marcador hekugu enfatiza a diferença e separa tecnicamente os melhores lutadores, os kindotoko, ―os donos da luta‖ dos demais lutadores comuns. Uma divisão que se inicia na reclusão diferenciada dos kindotoko daqueles que apenas lutarão nos combates coletivos.

Enquanto otomo e kuge são marcadores que denotam o pertencimento a um mesmo grupo de substância ou quadro sociológico com os quais são estabelecidas relações de trocas comerciais, matrimoniais e rituais, outros marcadores afastam a alteridade e com isso se diminui o intercâmbio com os outros grupos que não mais fazem parte do Alto Xingu. O termo ngikogo é usado para designar outros povos indígenas com os quais os alto-xinguanos mantêm poucas relações como os Xavante, Kayapó, Suyá dentre outros, com uma nítida diferença no que se refere aos hábitos e costumes desses povos. O uso da borduna, a alimentação a base de caça, a prática da guerra e mesmo o canibalismo ainda hoje são imagens que os alto-xinguanos, ao menos os Kalapalo, se utilizam para demarcar essa alteridade mais distante. A oposição entre o ethos pacífico, calmo e generoso dos povos alto-xinguanos se opõe à ―braveza e mesquinhez‖ desses outros povos sempre que se quer recuperar a diferença entre eles.

Telo é também uma partícula que denota alteridade. Geralmente é usada para diferenciar o outro de quem se fala. Não opera no mesmo nível dos ngikogo, uma vez que essa expressão é usada para definir as demais populações indígenas não alto- xinguanas. Telo pode ser usado para diferenciar mesmo as pessoas dentro de um mesmo grupo. Um exemplo etnográfico. Numa semana antes da realização do Egitsü de Tanguro em 2010 o pessoal de Aiha viajou para ajudar na organização do ritual. A família do chefe Waja ficou hospedada na mesma casa que os anfitriões – por sinal, a mesma em que passei todo o tempo desta pesquisa. Junto com o chefe, sua esposa e suas filhas ficaram também seus genros e os filhos deles.

Por hora cabe retomar a utilização da expressão telo para diferenciar mesmo ao nível daqueles que, momentaneamente, residem na mesma casa. É comum que brincadeiras de crianças terminem em choro ou desentendimentos do tipo. Um dos hóspedes para evitar tal situação puxou seu filho que tentava brincar com a outra criança dizendo: ―telo, nhalü, telo‖, ou seja, dizia que aquela criança era ―outra‖, que não aquelas que a criança estava acostumada a brincar em sua aldeia e por isso não deveria brincar daquela maneira com ela. Todos ali eram Kalapalo, estavam residindo na mesma casa, entretanto, o reconhecimento da diferença também se dá de maneira mais restrita. Telo também apresenta a noção de substituição, que será de grande importância quando tratar da transmissão da chefia via reclusão. Telope significa ―o próximo‖, o que será o substituto do chefe atual, que deve ser mostrado como tal. Não é somente nesse nível que opera, pois também pode significar coisas banais, como a escolha por um ou outro objeto, como a preferência por pacotes de miçangas coloridas.

Existem também categorias referentes à alteridade cosmológica que valem ser mencionadas neste momento. Trata-se das relações que se mantém com os seres kuegü e com os itseke, comumente traduzido por espíritos. São categorias diferentes entre si que podem ou não designar a mesma coisa, dependendo da relação. Os seres kuegü são aqueles que têm potencialidades de transformações a partir da relação que se estabelece