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Expelir para acumular: eméticos e escarificação como agregadores de

Capítulo 3. Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos para lutar

3.2 Procedimentos técnicos e preparação intensiva: a fabricação do corpo do

3.2.1 Expelir para acumular: eméticos e escarificação como agregadores de

Neste momento nosso problema será mostrar a fabricação desse lutador, isto é, como um conjunto de procedimentos técnicos e ensinamentos tradicionais são transferidos aos jovens que adentram a esse período. Além dos procedimentos diretamente incididos no corpo, o típico comportamento da não-agressividade pública, da generosidade, do conhecimento sobre luta, flautas, danças, cantos, mitologia (akinha), enfim, a formação da pessoa nessa fase da vida só pode ser analiticamente desmembrada, pois ela em si visa somente o todo, ainda mais entre os chefes. Uma não separação entre ética e estética. Um chefe deve ser/saber/ter esses conhecimentos e uma maneira de se demonstrar isso é através de seu corpo que deve ser belo e forte. É no intercâmbio ao nível regional que se exibem os corpos produzidos: masculinos para lutar, femininos para casar. A reclusão é momento de produção estética diretamente talhada nos corpos individuais, a partir de suas relações domésticas e interétnicas92.

O corpo é feito desde o útero materno pelo pai através da constante atividade sexual. Após o nascimento, a Placenta, que é um itseke, quer levar o recém-nascido para sua aldeia, por isso deve ser ―bem tratada‖ e os pais devem ter muitos cuidados com seus filhos até mais ou menos dois anos. Não é por maldade, mas pelo desejo que ela

92 Conhecimento produtivo (ou estético): ―é produtivo ou estético o conhecimento que permite a

tem de levar a criança embora, por isso após o desligamento do bebê a Placenta deve ser enterrada com algum cerimonial e os pais entram na couvade. Não podem realizar nenhuma atividade que possa prejudicar o bebê, quer em relação de força física, alimentação e mesmo precauções cosmológicas. As crianças devem passar por períodos de estritos cuidados dos pais, às vezes dos avôs, para que ela saia desse ―limbo‖ que ainda a mantém conectada com a Placenta. O corpo desde antes de nascer já deve ser fabricado seguindo principalmente abstinências alimentares e sexuais. Se o corpo é conteúdo indispensável ao chefe, seu ―ponto de vista‖, ele deve ser fabricado para dar a forma necessária da chefia, ou seja, atributos morais e corporais que devem ser típicos dos chefes.

Após esse período de maiores precauções as crianças desfrutam de uma ampla liberdade para fazerem suas brincadeiras e atividades favoritas. Sempre em grande número passam a infância a correr, nadar, pescar e brincar. Transitam na infância até que essa liberdade comece a ser ―perigosa‖, devido o início do interesse sexual. O termo kutekgügü é usado para o menino quando se encontra nessa fase. É o momento de iniciar a reclusão e os jovens permanecerão por tempo variável – entre um e cinco ou seis anos. Essa diferença de tempo vai de acordo com as capacidades de cada família manter seus reclusos, todavia com alguma semelhança, especialmente no que tange à relação entre o recluso e seus pais:

A reclusão é pensada como uma verdadeira fabricação do corpo: engordar, crescer, fortalecer-se. E, nesta fabricação, os pais têm um papel essencial, comprável ao da concepção. Numaa pá nuhá, ‗estou fazendo meu filho‘, diz o pai do recluso. E fazer filho é difícil e penoso: no início, os pais devem se abster de relações sexuais (enfraquecem o filho), o pai deve buscar os eméticos, ensinar-lhes as técnicas do trabalho masculino (fazer cestos, pentes, flechas, saber mitos, encantações). Apenas a mãe pode buscar a água que ele bebe e fazer o beiju que ele come. Seus laços com a comunidade são cortados – ele se invisibiliza atrás do gabinete de reclusão, fala baixo, só se comunica diretamente com pais e irmãos (Grifos nossos. Viveiros de Castro 1977: 211).

Durante o período preso são dois os principais procedimentos realizados ao longo dos anos pelos reclusos na fabricação de seus corpos: a escarificação e a ingestão de eméticos. Para esse segundo ponto o trabalho de Verani entre os Kuikuro é elucidativo, assim como em Gregor (1982), da relação dos jovens reclusos com o ―dono dos remédios‖. Verani ainda destaca as narrativas que envolvem a descoberta de cada uma das plantas, raízes e cipós utilizados e como foram ensinadas devido algum

acontecimento mitológico. Os ketuakitohó formam uma ampla categoria de medicamentos usados para causar vômitos. Não nos determos nas capacidades botânicas dessas substâncias, tampouco em suas origens. O interesse aqui será outro, atrelado com a importância de se efetivar esses conhecimentos durante a reclusão, caso contrário, não se faz um lutador campeão93.

Existem outros vegetais usados tanto como eméticos como cicatrizantes e fortificantes. Por isso vale destacar a quantidade de itens listados e a variedade de indicações e posologias e como seu conhecimento faz parte do arcabouço transmitido aos jovens chefes. O interesse maior é na fabricação do corpo a partir desses elementos, onde o objetivo é a construção de um corpo forte, alto, resistente e belo. Quanto mais fortes e resistentes mais lutas conseguem aguentar.

Figura 17: Lutadores campeões na busca pelo óleo da copaíba (kal. tali)

Já a escarificação deve ser apresentada a partir da fundamental posição da arranhadeira (kal. hingi) no processo de fabricação corporal:

Veja! Esta é a arranhadeira, que serve para fazer o corpo (kihü hatoho, katsatsegoho). Arranha-se a pessoa fraca usando remédio (ikundu) e este tem

93 Esses ketuakitohó aqui apresentados foram citados por Rud, jovem lutador que acompanhamos mais

proximamente: Ugahé: pequeno e grande. Remédio que se usa depois de arranhar, para ficar forte e ajudar na cicatrização. Homi: pimenta. Amassa e passa depois de arranhar, para ficar forte e ajudar na cicatrização: ―pimenta dói demais!‖. Takíssi: árvore. Passa depois de arranhar: ―ele é forte!‖. Sacinguegü: Para arranhar e vomitar. Idjali téhugu: (barriga de anta) cipó. Chá para vomitar. Ketüti utungu: (espinho do piau) cipó. Chá para vomitar. Tahako uitü: (corda do arco) bambu. Chá da raiz para vomitar: ―para ficar alto‖.

efeito se a pessoa se arranhar ou for arranhada sempre. Assim, ela se torna forte. Arranha-se nas coxas, arranha-se. O doente precisa se arranhar para passar remédio e poder se recuperar, voltando a ser forte ou normal. O menino é arranhado nos pulsos para ter boa pontaria, dar a direção certa da ponta da flecha. O remédio passado nele tem como efeito torná-lo um bom caçador e pescador. A criança começa caçando passarinhos e lutando como fosse uma brincadeira. Com a arranhadeira ele se torna um bom caçador e pescador e ganha a força do lutador. Esta é maneira de ser da arranhadeira. (Mutuá Mehinaku, apud Ivan, op. cit.: 3)

As escarificações geralmente são realizadas por homens mais velhos que foram reconhecidamente grandes lutadores. As seções são feitas inicialmente nos gabinetes internos, mas com o passar do tempo também na parte de trás das casas com os lutadores sendo arranhados individualmente. Cada lutador previamente já tem sua porção de alguns dos remédios cicatrizantes e com poderes de fortalecer o corpo. As buscas na mata ocorrem pela manhã e as escarificações são feitas rotineiramente. Como veremos nas narrativas míticas os peixes campeões também usaram os dentes da utigue (peixe-cachorra pequena) para se arranharem antes das lutas contra os animais. Mas os peixes arranharam momentos antes das lutas, assim como dizem que os grandes campeões do passado também o faziam. Os lutadores de hoje não mais arranham no domingo e sim na sexta-feira, sendo raros aqueles que arranham no sábado. A explicação dos lutadores é bem simples: dói muito lutar depois de arranhar94.

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Pois não é um pouco isso que o doping faz? Ou seja, transformar a natureza? Fazer de um corpo naturalmente treinado um corpo com maiores potencialidades através da ingestão de determinadas substâncias? É mais complexo que isso, até mesmo porque aqui não se ingere, se expele, quer o vômito ou o sangue. Colocar para fora é o método de preparação substancial dos lutadores, ao passo que a ingestão é o caminho do doping no esporte de alto rendimento. Comparando rapidamente, a escarificação visa a retirada do sangue do corpo para que ocorra o fortalecimento do local arranhado. O uso de amarrações típicas, nos braços para os homens e nos joelhos para as mulheres visam à manutenção do sangue que ficou na parte desejada em cada corpo: os homens nos braços para ficar forte e as mulheres nas panturrilhas para ficarem belas. Um método controverso de doping nos esportes de alto rendimento é chamado ―dopagem sanguínea‖ ou doping sanguíneo quando um atleta retira uma quantidade de seu

sangue e o guarda em ambiente refrigerado fazendo com que seu sangue produza mais hemácias para repor aquelas perdidas. Perto das competições o atleta re-introduz o sangue em seu corpo, havendo assim hemácias em excesso para transportar o oxigênio para o sangue o que ocasiona melhora em seu rendimento. Não se trata de comparações sistemáticas, mas não deixa de ser interessante a oposição dos métodos de preparação quando se trata da relação do corpo e sangue. Num caso a retirada é fundamental para que se limpe e use os medicamentos cicatrizantes e fortificantes; no outro, embora a retirada seja também a etapa inicial, ela só pode ser completada pelo re-introdução sanguínea para a produção de mais hemáceas.

Figura 18: Um pai escarifica seu filho na parte de trás de sua casa

A escarificação nos homens é diferente da feita nas mulheres: os movimentos nos homens são de cima para baixo, ao contrário da escarificação feminina95. Nos momentos de lutas no Egitsü apenas os homens arranham e disseram que mesmo no Yamurikumü, onde ao final ocorrem às lutas femininas, elas também não arranham. As meninas reclusas são escarificadas em casa, no dia-a-dia de sua reclusão. Este fato relata uma diferença nas funções da escarificação, inclusive nos resultados obtidos. A diferença também é marcante quando se trata das partes do corpo que são escarificadas por homens e mulheres. Os homens arranham praticamente o corpo todo, com ênfase nas pernas, braços, peito e costas; já as mulheres arranham principalmente a panturrilha e as costas. As mulheres devem ter as panturrilhas protuberantes, sinal de beleza característico da mulher alto-xinguana; por isso as amarrações nos joelhos prendem o sangue naquela região do corpo. As amarrações nos homens são feitas no bíceps com as braçadeiras (kal. büngai), para quando arranhar ganhar força muscular no braço, especialmente para lutar.

Ser um botânico indígena capaz de proporcionar a seus filhos reclusos um bom conhecimento sobre as melhores plantas e suas utilidades é do tipo de propriedade intelectual que não se ensina gratuitamente. Se a chefia no Alto Xingu é transmitida, sendo que os chefes são substituídos, o conhecimento deve ser transmitido. A reclusão é

o momento de aprender, de introspecção, de olhar pela fresta e não ser visto, gnosiologia. As saídas dos lutadores reclusos, quando mais tempo decorrido, só são rompidas em vésperas das lutas para os treinamentos no centro da aldeia diariamente por volta do meio dia e para as idas ao mato buscar as plantas, raízes e cipós utilizados em sua reclusão. Não basta ter uma relação com o dono do remédio, é preciso conseguir na mata, aprender sobre, ter mentores que te ensinam sobre e que aplicam os remédios.

A escarificação é aplicada por um mestre de luta. Quem escarifica é ou foi grande lutador, por isso não se pode ficar sem esse conhecimento transmitido. A reclusão é duradoura, mas a escarificação também tem resultados imediatos, ou seja, nas vésperas da luta se intensificam a escarificação e o uso de cicatrizantes e fortificantes, além do uso das pinturas, da abstenção sexual e dos enfeites. Tudo isso quer dizer que a preparação de um lutador é agenciada para ser um campeão, pois um campeão é um chefe. Ou, pelo menos pode ser, posto que todo chefe se diz campeão, mas nem todo campeão deve ser chefe, ou ocupar as posições de chefia. O desejo de cada um faz diferença nesse quesito. Não se trata de dizer que a reclusão é exclusiva na formação da pessoa, mas que os jovens chefes são fabricados naquilo que eles têm de melhor para serem feitos, seus corpos.

Para ilustrar a sistematicidade de um conjunto de mitos que trata do tema Levi- Strauss ([1964] 2004) recorre à oposição entre continência e incontinência, fechamento e abertura, proposições que ainda são colocadas em termos de mesura e desmesura, donde o sistema completo tem também a incontinência mesurada e a continência desmesurada, para colocar em questão o exagero da continência de um lado e a domesticação da incontinência do outro. Tanto que chega à relação de oposição entre evacuação e o vômito. Para Huxley, a evacuação era o caminho de uma obra da natureza para a cultura e o vômito um regresso da cultura para a natureza. Já para Lévi- Strauss, apesar de afirmar a veracidade da oposição levantada por Huxley, não se pode limitar ao contexto etnográfico, ao estabelecer que a relação de oposição entre evacuação e vômito pode significar o caminho inverso do apontado, isto é, o aumento do escopo etnográfico permite ampliar o conjunto de oposições possíveis (op. cit.: 164). O exemplo Kalapalo é ilustrativo da domesticação de uma incontinência mesurada, ou seja, o vômito controlado e realizado sistematicamente significa um acúmulo de cultura. Todas as manhãs os reclusos ou sua mãe preparam as poções que eles ingerem e vomitam horrores, sendo que após terminar tomam banho gelado. A quantidade de eméticos tomados vem mostrar a necessidade do vômito na construção de

um corpo lutador, o ápice de cultura para um homem alto-xinguano. Quanto mais ele vomitar, em conjunto com outras prescrições, mais apto ele vai estar a postular a cultura, na forma de se transformar em um grande lutador.

Novamente percebemos como a fabricação do corpo lutador não pode ser observada por óticas que não visem à totalidade da pessoa: o debate fisiológico, que opera através da limpeza interna do corpo e do uso de certas plantas e raízes, não deve ser entendido separadamente da questão cultural de produção desse corpo, pois produzir um lutador apto para os combates é contribuir com a produção de cultura. É o ―homem total‖ de que já falava Mauss ([1950] 2003) inaugurando grande parte dessa agenda de pesquisa que parte do mais concreto em direção ao abstrato. O corpo é entendido como o instrumento que aglutina todas as demais formas de atividades da vida social, desde a própria educação corporal, até as técnicas do ritual: ―Ato técnico, ato físico, ato mágico- religioso confundem-se para o agente‖ (op. cit.: 407). Somem-se aos aspectos psicológicos, físicos e sociais, que marcaram essa definição maussiana, os aspectos cosmológicos, emblema de como a sociologia não dava conta de toda a cosmologia ameríndia.

Enquanto os aspectos sociais da reclusão podem ser visto na intensificação da relação de filiação ou no confronto regional, os aspectos psicológicos o são no entendimento de um ethos calcado na generosidade, paciência e vergonha (ihütsu). Já o físico é a própria transformação corporal tecnicamente aprendida e treinada exaustivamente, ao passo que o cosmológico pode ser ilustrado pelas relações que trataremos adiante, entre o lutador e a sucuri, dona da luta que pode ou não oferecer seus poderes e ensinamentos, ou mesmo à relação do neófito com o ―dono dos remédios‖. Concomitantemente, um lutador apto, belo e forte necessariamente deve ter outros conhecimentos aprendidos durante esse período, o que novamente demonstra a conexão entre os saberes técnicos, físicos, musicais, mitológicos, artesanais como veremos a seguir, a reclusão como um aspecto totalizador do ser Kalapalo.