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Destotalização analítica, totalização etnográfica: artes e esportes

Capítulo 2. As práticas esportivas como modelos de relações interétnicas no Alto

2.4 Destotalização analítica, totalização etnográfica: artes e esportes

Embora num contexto diferente, Els Lagrou (op. cit.) se ocupa em caminhar paralelamente ao ampliar o entendimento teórico sobre a arte indígena. Aliás, um problema semelhante ocorre entre o chamado ―esporte indígena‖ no Alto Xingu e a arte entre os Kaxinawa. A falta no vocabulário nativo de uma palavra para designar ―arte‖ é tratada pela autora como um problema relacionado ao etnocentrismo, ao querer encontrar conceitos ocidentais em todas as culturas. Antes de estagnar as análises buscando termos correlatos que talvez possam não existir, o melhor é pensar na estética, posto que esta se encontra dissolvida em todas as esferas da vida nativa.

Entre os Kalapalo também não consegui encontrar um termo para esporte. Sempre que tentava perguntar se havia alguma palavra que sintetizasse a luta, os dardos, as disputas de arco e flecha, o futebol, enfim, não havia uma maneira de colocar essas atividades dentro de alguma categoria nativa. O máximo era a conjugação do verbo junto com a disputa: tá agilü, futebol agilü, sendo que esse verbo pode denotar vários significados, como jogar, arremessar, derrubar, para o caso da luta.

Apoiada no trabalho de Gell, Lagrou destaca o papel não valorativo que esta deve assumir no sentido de não tomar a arte enquanto objeto, mas enquanto conceito para depois reconstruir toda uma agenda de pesquisa, pautada numa outra perspectiva. Entendemos esse procedimento analítico como sendo semelhante ao usado por Lévi- Strauss para confirmar a precedência do totemismo enquanto sistema classificatório e não como instituição (Lévi-Strauss 1961, 1962). Destotalizar determinado objeto para que após sua especificação etnográfica possa ser re-totalizado a partir de novos significados.

Pois, se num caso se destotalizou o totemismo e no outro a arte para inseri-los num conjunto de práticas (classificatórias), por que não fazer o mesmo com os esportes? O que se tem é um conceito multifuncional que serve de abrigo para inúmeras atividades que apesar de designadas por esse termo, são praticadas e disputadas em inúmeros contextos que, por vezes como no caso Kalapalo, nem apresentam uma categoria nativa correspondente.

Nas palavras críticas de Bromberger (2008) o tratamento nem sempre atento aos esportes toma forma na tentativa de exaltar a importância da etnografia. Em seus trabalhos sobre a caça à raposa ficava a discussão com seus colegas sobre no que se focar, se nas características sociais dos praticantes, abordagem defendida pelos sociólogos, ou na parte técnica, sensitiva, aprimorada dos gestos e dos movimentos que acompanham cada etapa da caçada. Em resumo, não bastava no plano dos significados dizer que a caça à raposa é um esporte e mudar a atenção para as coisas ditas mais importantes. Mudança de foco análoga ao que parece ocorrer nos estudos sobre a luta. Afirma-se sua importância em relação a determinados assuntos essenciais para a região, como as relações interétnicas, a chefia ou o ritual, classificando-a como ―esporte‖ ou ―desporte‖ sem se esmiuçar nos significados que a luta em si pode conter. A técnica desprendida e apreendida, a contabilização dos resultados, as projeções nos dias anteriores e os comentários posteriores aos combates são temas que não suscitaram ainda a atenção dos pesquisadores devido à imposição mecânica da luta no interior da categoria genérica esporte, daí a ênfase e insistência numa etnografia das práticas:

Há bastante o que se questionar sobre os discursos generalizantes das funções sociais do esporte. De qual esporte se trata? Onde? Quando? Como? (Bromberger 2008)

Desse modo, o problema parece se repetir com outros termos. O que se chama de esporte, prática gregária e civilizadora, não é apenas esporte. Está inserido em todo um contexto que, por vezes, não é levado em consideração nas pesquisas. A propósito, essa já foi minha proposta ao relativizar as práticas esportivas universitárias e mostrar que elas estão inseridas em um universo restrito e particular (Costa op. cit.). Um momento de passagem em que os universitários deixam as casas dos pais para entrar na ―vida universitária‖ e saírem renovados pela experiência aprendida. Todo um ethos festivo e competitivo é vivido de modo bastante semelhante durante esse período e o reflexo pode ser visto nas performances realizadas durante as práticas esportivas. Determinadas partidas e mesmo competições, especialmente as que envolvem o consumo de bebidas e outras substâncias manifestamente proibidas pelo doping que impera no esporte de alto rendimento, vão à contramão de uma definição que dê conta de toda essa diversidade.

Se o primeiro debate era passar a entender o totemismo enquanto sistema classificatório e não como instituição, ou como no caso da arte, o debate é entre contemplação e eficácia dos objetos fabricados, nesse caso que nos interessa, resta saber até que ponto vale essa corrente separação entre jogo e esporte, lúdico e competitivo e se não é produtivo ultrapassar essas dicotomias em nome de um sistema classificatório que, como afirmou Guedes para o futebol: ―só não aceita a ausência de significação‖.

O quanto pode ser interessante não pensar a diferenciação entre esporte amador e profissional, entre atividade física e esporte de alto rendimento, se é ou não esporte em nome da descrição e análise etnográfica. O que parece acontecer com as práticas esportivas indígenas é ilustrativo, pois são antes tratadas como brincadeiras do que como competição. A luta no Alto Xingu é uma disputa que, na acepção da prática e performances entre os competidores, poderia facilmente ser considerada um esporte de alto rendimento. Preparam-se corpos durante toda uma vida para chegar ao alto nível de competição; até mesmo prêmios são ofertados aos campeões. Já outras atividades são realizadas num clima de maior diversão, especialmente as disputas com o arco e flecha.

Entretanto, será que valeria levar essa distinção entre práticas pela mesma lente da separação entre amador e profissional, entre o lúdico e o competitivo? Talvez fosse importar por demais categorias que não fazem parte do universo indígena, não estão no plano da classificação nativa. Mas ocorrem disputas corporais diferenciadas em que o nível de preparação e competitividade despendido é diferenciado. Somam-se a isso o complicado problema na definição dos grupos indígenas, quais os limites da identidade e alteridade. Destotalizar o esporte significa, tal como o método proposto por Lagrou para pensar a arte, tratar as categorias em conjunto com o contexto das interações sociais e, nesse caso, a materialização das relações através da participação nas diferentes práticas. Uma proposta que não delimita a priori o que se almeja encontrar, mas debate de acordo com a relação etnográfica.

Tanto em Menezes Bastos como em Lagrou a proposta é formular teoricamente as manifestações artísticas, num caso a música como mediador entre mito e história, no outro, as artes plásticas/materiais e a importância da noção de agência. A noção do belo é fundamental em ambas, sendo indissociáveis estética e ética. Menezes Bastos parte da arte para a música, enquanto Lagrou pretende através da noção de agência um debate sobre estética. Ao destotalizar analiticamente as artes marciais, nossa proposta é de

atribuir etnograficamente os significados para esses conceitos através das práticas esportivas.

Usando a noção de arquétipo, Viveiros de Castro chega a conclusões semelhantes para falar sobre o ideal alto-xinguano: ―O lutador é o tipo ideal de xinguano, em termos físicos; o ‗chefe‘ (amulaw) [kal. anetü] é a personalidade ideal‖ (1977: 216). Mais à frente fará uma retomada de como lutadores campeões serão futuros chefes, o que deve ser construído com muito trabalho e dedicação não só do lutador, mas também de sua família de chefe durante a reclusão. O ponto a destacar é a simultaneidade entre a beleza estética e a ética moral, o corpo belo e trabalhado do lutador e a generosidade e resignação dos chefes, pessoas extremamente dadivosas e vergonhosas, que sintetizam o conceito nativo de ihütsu (―vergonha‖) tema amplamente debatido na literatura Kalapalo:

Ser bom lutador é um critério básico de avaliação da pessoa xinguana. Ser calmo e generoso é também ser bom lutador – os critérios de classificação de alguém como ipuñiñiri-mina [kal. kuge hekugu], homem bom, implicam necessariamente a habilidade na luta. (op. cit.: 217).

As artes marciais são artes no corpo, existiria, então, para o pensamento ameríndio lugar mais apropriado para se fazer o belo? A fabricação do corpo de um lutador é uma fabricação para a luta de onde podemos retomar a importância da agência nos debates sobre a arte. No capítulo seguinte detalharemos essa fabricação, por hora vale ressaltar como as artes marciais alto-xinguanas expandem os debates sobre as artes na América do Sul. A agência, neste caso, está no próprio corpo e as disputas são como relações políticas negociadas através de diferentes graus de intensidade e de qualidade na fabricação desse corpo belo, forte e apto para competir, mas também para pescar, tocar flautas, dançar, construir casas, enfim, ser uma pessoa bonita, kuge hekugu, que além das qualidades físicas possui qualidades morais, porém sem estabelecer essa distinção, ou seja, a beleza e a generosidade ou a feitude e a maldade estão no corpo e no espírito de cada um.

Com isso percebe-se a tentativa de ampliar o entendimento dessas práticas esportivas nativas, pois da colocação dos esportes em função de ―arrefecimento de

tensões‖ ou ―neutralização dos antagonismos‖78, chegamos ao debate proposto por Menezes Bastos de uma antropologia das artes para a região. A temática aqui se desenvolve e ilustra como pode ser interessante pensar não em termos reificados, como demonstrado no totemismo e nas artes e como pretendemos ter demonstrado através da destotalização dos esportes. A elaboração de uma teoria etnográfica das práticas esportivas está diretamente relacionada ao contexto em que foi realizada. Portanto, entender a luta enquanto uma prática esportiva e, ao mesmo tempo, como arte marcial demonstra como os sistemas classificatórios se entrecruzam e noções como a de competitividade, beleza e agência podem ser encaradas simultaneamente.