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Em alternativa à visão predominante do bem-estar, nos anos 1980, Amartya Sen desenvolveu a abordagem das capacitações. A abordagem apresentada enfoca principalmente as liberdades substantivas cultivadas pelos indivíduos, ao contrário da análise econômica

tradicional que se concentra na renda e na riqueza (e/ou em cestas de consumo)39.

A origem da abordagem seniana, segundo o próprio Sen (1990), foi influenciada mais intensivamente por Aristóteles, e em menor medida por autores como Adam Smith e Karl Marx. No que tange à raiz aristotélica de sua teoria, Sen ressalta a preocupação de Aristóteles com o bem para o homem e com o interesse na qualidade de vida em termos da capacidade para realizar atividades valorizadas pelos seres humanos. Adam Smith também exerceu

39 A abordagem também se diverge da preocupação libertária com os procedimentos para a liberdade, a

obediência às regras de liberdade formal e a conduta correta. Rawls (2000) afirma que na teoria libertariana o Estado é visto como uma instituição qualquer. Este Estado deve ser mínimo, uma vez que, um Estado cujas funções ultrapassem o cumprimento normal dos contratos infringiria os direitos dos indivíduos. De acordo com Sen (2000), os libertários concedem ênfase excessiva à liberdade formal. O termo é empregado para designar direitos individuais e liberdades sociais básicas que o cidadão possui direito, assegurado por lei, de gozar. O autor afirma que privações como fome coletiva e ausência de tratamento médico podem estar presentes ainda que estes direitos libertários sejam respeitados. Um exemplo ilustrativo é a escravidão no Brasil que foi legalizada por um longo período ainda que colocasse o indivíduo em uma posição subumana. Desta forma, a inflexibilidade dos direitos libertários não garante a remoção de privações. O libertarismo desconsidera a importância das liberdades substantivas, assim como acontece na teoria utilitarista e welfarista.

influência em sua teoria, dado que, se preocupou com as liberdades humanas naturais. Do mesmo modo, “[…] uma parte importante do programa de reformulação dos fundamentos de economia política de Marx é claramente relacionada para ver o sucesso da vida humana em

termos de cumprir as atividades humanas necessárias40 (SEN, 1990, p. 4) (tradução nossa)41.

Para a formulação da abordagem das capacitações, é de suma importância a ruptura com a visão tradicional da economia. Como marco para esta ruptura, Sen (2001) cita o pensamento rawlsiano sobre os bens primários. Este pensamento foi importante para o reavivamento do normativismo e ajudou a enfatizar a importância da liberdade. Sen (2001, p. 134) afirma que:

Quando se trata de avaliar a teoria da justiça de Rawls como um todo, é claro que é necessário concebê-la dentro de restrições específicas impostas pelo próprio autor, mas a “atitude rawlsiana” numa forma menos restrita teve um profundo impacto sobre um domínio bastante amplo do pensamento político, social e econômico contemporâneos (SEN, 2001, p. 134).

Segundo Sen (2001), a teoria da justiça rawlsiana pressupõe que cada indivíduo tem direitos iguais a um esquema de liberdades básicas iguais, condizente com um esquema de liberdade global. As desigualdades sociais e econômicas precisam estar vinculadas às posições e cargos livres a todos os indivíduos na forma de igualdade equitativa de

oportunidades. Dentro do “Princípio da Diferença” 42, os indivíduos com menor vantagem

dentro da sociedade devem ser favorecidos em termos de bens primários. Então, o enfoque rawlsiano defende a igualdade de liberdades básicas, mas a distribuição de bens primários deve beneficiar os menos favorecidos na sociedade.

Rawls (2000) divide os bens primários em cinco categorias: a. direitos e liberdades fundamentais, que também constituem uma lista; b. liberdade de movimento e livre escolha de ocupação num contexto de oportunidades diversificadas; c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidades nas instituições políticas e econômicas de estrutura básica; d.

renda e riqueza; e. bases sociais do autorrespeito43.

A vertente rawlsiana é um ponto de partida para a inclusão da perspectiva da liberdade. Todavia, conforme Sen (2001), os bens primários são melhores vistos como meios para a liberdade do que como elementos que a constituem. Vistos deste modo, os bens primários podem ser interpretados somente como meios para outras coisas, dentre elas, a liberdade. Por isso, embora ajude a enfatizar a importância da liberdade, esta visão ainda é

40 Ver Sen (1990).

41 “[…] an important part of Marx's programme of reformulation of the foundations of political economy is

clearly related to seeing the success of human life in terms of fulfilling the needed human activities”.

42 Ver Sen (2001). 43 Ver Rawls (2000).

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insuficiente para captar a extensão da liberdade, já que esta é vista somente como um meio

para o alcance de realizações44.

Ainda assim, segundo Sen (2011), a análise em termos de bens primários como acontece no raciocínio de Rawls é um avanço em relação ao enfoque na utilidade e na renda, mesmo que pessoas distintas tenham oportunidades também distintas na conversão de bens primários em uma vida valorizada por estas pessoas, e que isso dependa do ambiente natural e social em que os indivíduos estão inseridos. Os indivíduos possuem diferentes aptidões na

conversão de renda e recursos em boa vida45.

Sen (1980) admite a influência rawlsiana em sua abordagem, que pode ser vista como uma extensão da preocupação com bens primários. Sen (1983b, p. 338) acrescenta que “nosso foco na capacitação difere tanto da preocupação utilitária com reações só mentais quanto da preocupação rawlsiana com bens primários como tal, embora a abordagem das capacitações

seja muito influenciada pela análise moral de Rawls” (tradução nossa)46. A diferença

fundamental entre as duas abordagens está na concepção de meios para a liberdade.

Para Sen (2001) é necessário estabelecer uma distinção entre liberdade e os meios para o alcance da liberdade. Estes últimos propiciam que as pessoas obtenham mais liberdade. É o caso dos bens primários ou recursos. Ao estender este raciocínio para o consumo de mercadorias, percebe-se que o conjunto orçamentário (baseado nos recursos da pessoa, como nível de renda e possibilidade de adquirir tais mercadorias dados os preços) é a representação da extensão da liberdade neste espaço, isto é, a liberdade de escolha entre pacotes alternativos de mercadorias.

44 Ver Sen (2001).

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As vantagens e desvantagens que os indivíduos podem auferir em detrimento de outros podem ser avaliadas em função de diferentes variáveis como renda, riqueza, utilidade, recursos, liberdades, qualidade de vida, direitos, bens primários, satisfação de necessidades, entre outras. Cada uma destas variáveis fornece uma visão correspondente de igualdade. A escolha entre estes espaços é fundamental na avaliação da igualdade. Os igualitaristas de renda pedem rendas iguais para todos, os igualitaristas de bem-estar querem níveis iguais de bem-estar, os utilitaristas clássicos defendem utilidade com pesos iguais para todos os indivíduos, os libertários puros exigem igualdade de direitos e liberdades. Para o autor, todas estas classes são igualitaristas. Contudo, os seres humanos são diversos e as investigações sobre igualdade que utilizam a suposição que todos são iguais desconsideram o aspecto da diversidade humana. Assim, o autor elabora uma abordagem alternativa a estas que considera as heterogeneidades a que os seres humanos estão submetidos. Ao reconhecer as diversidades, Sen (2001) cita as considerações de Marx ao constatar que a igualdade nas recompensas pelo trabalho desconsiderando a diversidade das necessidades era uma extensão do direito burguês que vê as pessoas como meros produtores. Com isso, percebe-se que os seres humanos não podem ser enquadrados em uma única categoria ou classificados conforme um único aspecto. A própria diversidade na composição e tamanho das famílias contesta a homogeneidade aparente.

46“Our focus on capability differs both from the utilitarian concern with just mental reactions and from the

Rawlsian concern with primary goods as such, though the approach of capabilities is much influenced by Rawls’ moral analysis”.

Nesse sentido, quando se trata do consumo de mercadorias os meios para a liberdade são representados pelos recursos que sustentam o conjunto orçamentário e a extensão da liberdade é o conjunto orçamentário em si. Todavia, Sen (2001) ressalta que os recursos que uma pessoa possui não são indicadores fieis da liberdade que efetivamente desfruta, pela própria diversidade dos seres humanos. Por conseguinte, não podem ser a base para comparar liberdades.

Qualquer que seja o critério de julgamento da realização é necessário distinguir entre a extensão da realização e a liberdade para realizar. O posicionamento do indivíduo em um ordenamento social pode ser julgado por meio da realização alcançada e por meio da liberdade para realizar. “A realização liga-se ao que conseguimos fazer ou alcançar, e a liberdade, à oportunidade real que temos para fazer ou alcançar aquilo que valorizamos” (SEN, 2001, p. 69). A grande questão é que na avaliação do ordenamento social, as vertentes se atêm somente à realização. O papel da liberdade fica restrito a um papel apenas instrumental como um meio para o alcance das realizações.

A perspectiva da liberdade é importante, haja vista que a liberdade concede oportunidade para que o indivíduo alcance seus objetivos. Portanto, trata-se da aptidão para realizar aquilo que é valorizado por ele. Este é o “aspecto da oportunidade” da liberdade. A oportunidade é concedida ao indivíduo, ele está livre para fazer o uso desta oportunidade ou não. Além disso, o processo de escolha também é relevante, uma vez que o indivíduo não é forçado a escolher uma coisa ou outra, isto é, o indivíduo escolhe livremente sem a imposição de restrições por um terceiro.

As escolhas dependem das circunstâncias, das instituições e do contexto que levam o indivíduo a optar por uma coisa ou outra. Este é o “aspecto do processo” da liberdade. O aspecto da oportunidade da liberdade deve ser complementado por processos justos que não envolvam a violação de direitos das pessoas ao utilizá-los (SEN, 2005; SEN, 2011).

A visão da liberdade adotada pelo autor diz respeito “[...] tanto os processos que permitem a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que as pessoas, têm dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais [...]” (SEN, 2000, p. 31). Desta forma, podem ocorrer privações da liberdade caso haja processos ou oportunidades inadequadas.

A perspectiva da liberdade é fundamental na análise seniana, pois, ultrapassa o papel meramente instrumental em que ela aparece apenas como uma intermediária para que se atinjam as realizações, e se relaciona com a oportunidade e o processo que proporcionam aos indivíduos o potencial para o alcance de suas metas e objetivos. Nesse sentido, o bem-estar

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humano não é meramente material e envolve a liberdade para que as pessoas possam fazer suas escolhas e seu modo de vida.