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2.3 O estudo das capacitações

2.3.1 O bem-estar na abordagem das capacitações

Segundo Alkire (2002), algumas definições de bem-estar se referem apenas às privações materiais, ou aos aspectos que só podem ser providos pelo setor público. Contudo, a

56 Ver Sen (2011).

57 Os funcionamentos e capacitações produzem “uma ordem parcial de dominância”, ainda que não haja a

especificação dos pesos relativos. Isto significa que possuir mais de algum funcionamento ou capacitação produz uma melhora independentemente da especificação dos pesos (SEN, 2001; SEN, 2011).

visão de bem-estar na abordagem das capacitações refere-se a um bem-estar não somente econômico, mas, que envolve aspectos políticos, sociais, espirituais, nas esferas públicas e privadas. Este é posicionamento defendido nesta tese, isto é, o bem-estar deve ser compreendido na sua complexidade.

A concepção de bem-estar em sentido amplo, parte das limitações em se medir o bem- estar como é feito pela teoria econômica convencional. Essas limitações foram ressaltadas na Seção 2.1. Vinculam-se principalmente ao descaso com as heterogeneidades pessoais, ao subjetivismo e condições adaptativas a que o bem-estar utilitarista está sujeito. É por isso que esta visão não fornece uma posição correta de bem-estar.

O grande problema está na interpretação de bem-estar, quando este é concebido em

termos de utilidade58. Em diversos estudos, Sen (1979; 1980; 1993; 1999) aponta para a

divergência entre bem-estar e utilidade. Nesse sentido, Sen (1999, p. 63) afirma que: “1. o bem-estar não é a única coisa valiosa; 2. a utilidade não representa adequadamente o bem- estar”.

Conforme a visão tradicional do bem-estar: o bem-estar de um indivíduo depende somente do seu próprio consumo, sendo, portanto, autocentrado; o objetivo de uma pessoa é

maximizar o seu próprio bem-estar59; e as ações individuais são motivadas pela conquista de

seu próprio objetivo.

Uma das características interessantes que emergem das análises precedentes é que afastamentos das suposições de comportamentos tradicionais da teoria econômica – incorporando todos os três componentes do comportamento autocentrado – podem originar-se de muitas considerações éticas distintas. Podem incluir bonomia e simpatia por outras pessoas. Também podem existir comprometimentos com várias causas (SEN, 1999, p. 104-105).

Assim, podem-se obter comportamentos diversos do autointeressado, quando ocorre a violação dos requisitos de comportamento autocentrado. Isto pode ser feito, por exemplo, com a suposição de considerações éticas, como foi ressaltado na Seção 2.1, que podem proporcionar a uma pessoa a maximização de outro objetivo que não o próprio. Do ponto de vista das capacitações o bem-estar diz respeito ao fato do indivíduo sentir-se bem e é representado pela liberdade individual. Em âmbito da abordagem, destaca-se outra forma de bem-estar que não visa somente o autointeresse.

58 “Julgar o bem-estar de uma pessoa exclusivamente pela métrica da felicidade ou satisfação de desejos tem

algumas limitações óbvias” (SEN, 1999, p.61). No caso de comparações interpessoais de utilidade (interpretada como felicidade), percebe-se que uma pessoa que teve uma vida difícil pode se adequar mais facilmente a certas privações que outras que tiveram uma vida mais fácil. Isto também se verifica quando a utilidade é vista como satisfação de desejos. “Esse bem-estar, em última análise, é uma questão de valoração e, embora a felicidade e a satisfação de desejos possam ser valiosas para o bem-estar da pessoa, não podem – sozinhas ou até mesmo juntas – refletir adequadamente o valor do bem-estar” (SEN, 1999, p.62).

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Esta outra forma de bem-estar pode ser entendida ao acrescentar que um indivíduo pode ser distinguido de duas formas: pelo aspecto da sua condição de agente; ou em termos de seu bem-estar. A primeira forma significa reconhecer e respeitar a capacidade de estabelecer objetivos, comprometimentos e valores. O aspecto da condição de agente não está voltado somente para o próprio bem-estar e não faz sentido quando a motivação do indivíduo é somente o autointeresse.

O termo agente não se restringe a uma pessoa que meramente está agindo em nome de outra como ocorre tradicionalmente na economia, mas refere-se àquele que age e executa mudanças. Além disso, suas realizações são julgadas de maneira condizente com seus valores e objetivos intrínsecos. A condição de agente designa o papel da pessoa enquanto membro público, participante de ações econômicas, políticas e sociais (SEN, 2000).

A realização de uma pessoa não pode ser julgada apenas em virtude de seu bem-estar, uma vez que um indivíduo pode valorizar certos fatos que não se relacionem diretamente com a melhora de seu próprio bem-estar. Por exemplo, uma pessoa pode se sentir bem por conseguir algo para sua família ou comunidade. Do mesmo modo, esta mesma pessoa pode ter seu bem-estar diminuído caso não consiga obter o que deseja, ainda que isto não esteja diretamente relacionado com o seu próprio bem-estar (SEN, 1999).

Apesar disso, “não existe realmente nenhuma base sólida para requerer que o aspecto da condição de agente e o aspecto do bem-estar de uma pessoa sejam independentes um do outro e, suponho, é possível até mesmo que cada mudança em um dos dois venha a afetar o outro também” (SEN, 1999, p. 59). Destarte, é natural que os dois elementos caminhem juntos, uma vez que a ampliação do bem-estar pode elevar a capacidade de agência do indivíduo, e o aumento do poder de agência pode influenciar o seu próprio bem-estar.

O aspecto do bem-estar e o aspecto da condição de agente podem ser resumidos de maneira que, o primeiro diz respeito às realizações e oportunidades no contexto de vantagens pessoais do indivíduo; o segundo analisa as realizações e oportunidades em termos de outros objetivos e valores ultrapassando a procura pelo bem-estar pessoal e volta-se para o indivíduo

como “quem faz” 60. A condição de agente envolve o alcance de objetivos que não implicam

necessariamente no bem-estar próprio. Tal condição contraria a teoria econômica convencional na medida em que, reconhece que o indivíduo não se guia somente pelo autointeresse.

60 Dois elementos emergem-se do aspecto da condição de agente. O primeiro trata-se do “êxito acabado da

condição de agente” e refere-se à ocorrência daquilo que uma pessoa valoriza e visa realizar (sem a necessidade de participação ativa do indivíduo). O segundo é o “êxito instrumental da condição de agente” e diz respeito à ocorrência daquilo que é produzido pelo próprio esforço da pessoa.

Neste ponto, pode-se retomar a importância do papel da liberdade discutido na Seção 2.2. A vertente da liberdade se estende tanto ao aspecto do bem-estar quanto ao aspecto da condição de agente. Uma vez que os conceitos de capacitações e funcionamentos estão diretamente ligados à liberdade e à realização, os aspectos do bem-estar e da condição de agente originam quatro categorias diferentes ilustradas por Sen (1999; 2000; 2001; 2006; 2011): 1) “‘realização de bem-estar’ [well-being achievement]; 2) ‘liberdade de bem-estar’ [well-being freedom]; 3) ‘realização da condição de agente’ [agency achievement]; 4)

‘liberdade da condição de agente’ [agency freedom]” 61.

A liberdade de bem-estar se refere às capacitações das pessoas para realizarem vários vetores de funcionamentos, e assim, desfrutarem do bem-estar realizado. A realização da condição de agente está relacionada com os objetivos e valores que uma pessoa procura e que não implicam diretamente no seu próprio bem-estar. Enquanto a liberdade da condição de agente diz respeito a fazer acontecer estas realizações valorizadas e produzidas pelo indivíduo, a liberdade de bem-estar trata-se da liberdade para realizar aquilo que constitui o bem-estar do próprio indivíduo. Estes aspectos são “distinguíveis e separados, mas

complementares e interdependentes62” (SEN, 2001; SEN, 2006).

Segundo Sen (2001), um aumento da liberdade da condição de agente pode ocorrer

paralelamente a uma redução na liberdade de bem-estar e na realização do bem-estar63. Por

sua vez, quando a liberdade é vista como liberdade de bem-estar, pode conflitar com a realização do bem-estar, uma vez que, a escolha de um indivíduo não é essencialmente motivada pela procura do seu próprio bem-estar. Além disso, uma expansão da liberdade não implica necessariamente numa vantagem para o indivíduo, pois, a expansão de alguns tipos de escolha pode diminuir a capacidade de escolher os diferentes tipos de vida valorizados por ele. Isto se dá pela possibilidade de valoração dentro da avaliação da liberdade.

Por ignorar estes aspectos, de acordo com Sen (1999), a visão utilitarista fornece uma ideia deficiente de bem-estar. Sentir-se feliz é uma relevante realização para o indivíduo. Todavia, não pode ser considerada como a única realização importante para o seu bem-estar. Além disso, a abordagem econômica do bem-estar incorpora todas as categorias destacadas

61 Sen (2011) ressalta que as capacitações de um indivíduo podem ser analisadas tanto em temos da liberdade

para o seu bem-estar, quanto em termos da liberdade de agência.

62 Sen (2001) afirma ser incorreto dizer que um destes aspectos (condição de agente ou bem-estar) seja mais

importante que o outro, ainda que em algum contexto um deles possa ser mais proeminente que o outro, pois há uma pluralidade de espaços associada a uma pluralidade de propósitos.

63 Como o ser humano não se guia somente pelo autointeresse, os objetivos de agência podem ser contrários

realização e liberdade do bem-estar próprio, desde que o indivíduo esteja engajado em melhorar a vida de quem esteja em situação pior do que a sua.

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acima em uma única categoria, uma vez que, considera-se a liberdade valiosa somente instrumentalmente e deduz-se que a condição de agente norteia-se apenas para a satisfação de interesses individuais.

Na vertente das capacitações, o bem-estar de um indivíduo pode ser visto em termos de suas realizações. Apesar disto, a vantagem de uma pessoa pode ser melhor entendida por sua liberdade do que pela realização proporcionada por esta liberdade. Esta conclusão leva a um caminho relacionado aos direitos, liberdades e oportunidades reais do indivíduo. De acordo com Sen (1999, p. 64), “se na ponderação ética as vantagens da pessoa forem julgadas – pelo menos parcialmente – com base em considerações ligadas à liberdade, então não meramente o utilitarismo e o “welfarismo”, mas também várias outras abordagens que se concentram exclusivamente na realização, terão de ser rejeitados”.

Portanto, sob o enfoque das capacitações, o bem-estar assume uma característica multidimensional relacionada com a liberdade individual e com a realização do potencial humano. Se o bem-estar individual realizado é representado pelos funcionamentos realizados como ter longevidade, ser bem nutrido, ter boa saúde, etc., o bem-estar social implica na combinação de vetores de funcionamentos dos indivíduos.