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Em virtude dos fundamentos liberais, alguns economistas heterodoxos também têm dificuldade de aceitar os argumentos da abordagem das capacitações. De fato, a abordagem exalta a importância do mecanismo de mercado e dos benefícios oriundos das trocas. Entretanto, a vertente também entende a importância do papel do Estado para a garantia da melhoria das condições de vida dos seres humanos.

Destarte, há o amplo reconhecimento que para a superação da pobreza há itens básicos que precisam ser supridos que não são fornecidos pelo mercado, logo não podem ser saciados apenas pela renda ou transações aí efetivadas. Com isso, abre-se espaço para o estabelecimento de um Estado social.

É por isso que pode-se dizer que a vertente defendida por Amartya Sen situa-se em um caminho intermediário entre o mercado e o Estado. No caso do combate a pobreza, a atuação do Estado é fundamental para a expansão das liberdades substantivas, logo das capacitações básicas das pessoas. O mesmo é válido para o mercado, que também expande as capacitações na medida em que permite o suprimento das necessidades econômicas individuais por meio da compra e venda de bens e serviços.

No que tange à sua visão do bem-estar, ficou claro que o autor nega a equivalência entre bem-estar e utilidade. Desta maneira, o bem-estar a que se refere à abordagem das capacitações é multidimensional, permite comparações interpessoais e diz respeito à melhoria as condições de vida dos seres humanos.

A abordagem das capacitações vai além do espaço das realizações, uma vez que seu núcleo central não é somente o que o indivíduo realiza, mas o que ele é capaz de realizar, caso deseje aproveitar a oportunidade que lhe é dada. Esta ideia é fonte de críticas à abordagem. Talvez fosse mais adequado se concentrar nas vantagens e desvantagens quanto às realizações do que no potencial para a realização (SEN, 2011).

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O potencial para a realização é importante, porque, o enfoque nas capacitações é muito mais amplo que o enfoque nos funcionamentos realizados. Para exemplificar, basta reproduzir uma situação apontada por Sen (2011, p. 270-272). É útil pensar em duas pessoas com os mesmos funcionamentos realizados. Ambas estão desnutridas. Quando há o enfoque apenas na realização, a conclusão plausível é que ambas estão passando fome.

Entretanto, as potencialidades destas pessoas podem permitir apurar este fato de forma mais acurada. Pelo enfoque nas oportunidades para a realização, pode-se concluir que um indivíduo está desnutrido por ser vítima da fome, enquanto o outro, na verdade, está desnutrido porque, por vontade própria, jejua conforme prega sua religião. A capacitação da pessoa que jejua voluntariamente é muito mais ampla que daquela vítima da fome. Desta forma, estas pessoas não podem ser rotuladas sob a mesma situação.

Há certo receio em se tratar de avaliações que permeiam por questões heterogêneas como é o caso dos funcionamentos e capacitações. Isto ocorre dentro da ciência econômica, principalmente pela influência positivista, ressaltada na Seção 2.1. Sen (2011) comenta que a pressuposição de utilidade homogênea – quando na verdade há diversidade dentro da

concepção utilitária72 – assim como o uso da Renda Nacional Bruta (RNB) (ou PIB) como

indicador primordial de condição econômica, produzem sensação de segurança por conta do

que o autor chama de comensurabilidade73.

Sen (2004) afirma que a comensurabilidade de dois objetos diferentes se refere ao fato de serem mensuráveis em termos de outros. Ao contrário, a incomensurabilidade ocorre quando as várias dimensões de valor são irredutíveis umas às outras.

As capacitações são incomensuráveis por possuírem diversas dimensões de valor irredutíveis a uma única. “Com efeito, se a contagem de um conjunto de números reais é tudo o que poderíamos fazer para raciocinar sobre o que escolher, então não haveria muitas opções que pudéssemos escolher de forma sensata e inteligente” (SEN, 2011, p. 275).

Além disso, a abordagem também é criticada por centrar-se nas capacidades individuais e não nas coletivas. Por isto, é acusada de incorrer no individualismo metodológico, o que, para Sen (2011) é um grande erro. Ainda que o individualismo metodológico seja definido de formas diferentes, na visão empregada pelo autor, os fenômenos sociais não podem ser desvinculados da forma como o indivíduo “pensa, escolhe e faz”. Nesse sentido, tais críticas decorrem da interpretação equivocada da relação entre as características do indivíduo e as influências sociais sobre ele no enfoque das capacitações.

72 Ver Sen (2011, p. 273). 73 Ver Sen (2011).

Levar em conta o papel de “pensar escolher e fazer” por parte dos indivíduos é apenas o começo do reconhecimento do que realmente acontece (é claro que como indivíduos pensamos sobre questões, fazemos escolhas e agimos), mas não podemos acabar por aí, sem uma apreciação da profunda e pervasiva influência da sociedade em nosso “pensar, escolher e fazer”. Quando alguém pensa, escolhe e faz algo, certamente é essa pessoa – e não outra – quem está fazendo tais coisas. Mas seria difícil compreender como e por que ela realiza essas atividades sem alguma compreensão de suas relações sociais (SEN, 2011, p.297).

Sen (2011) expõe algumas razões para o estudo das capacitações individuais, o que não quer dizer que as capacitações grupais devam ser desprezadas, mas, que análise feita desta maneira é mais completa. A grande questão é que na avaliação das capacitações grupais, leva-se em conta a interação das valorações individuais. Isto porque, a relevância das capacitações dos grupos deve ser entendida com base no valor que os indivíduos que os compõem conferem a sua competência. Sen (2011, p. 280) explica esta questão na seguinte frase “na valoração da aptidão de uma pessoa para participar na vida da sociedade, atribui-se implicitamente valor à própria vida da sociedade, e isso é um aspecto bastante importante da perspectiva da capacidade”.

Analisar apenas as capacitações grupais seria o mesmo que atribuir a todos os indivíduos um único aspecto. Deste modo, cada indivíduo seria inserido em um grupo social específico e se perderia a diversidade, uma vez que, uma pessoa pode compor vários grupos distintos. Afinal de contas, um trabalhador que também estuda comporia o grupo dos trabalhadores ou o grupo dos estudantes? Esta questão seria de difícil resolução, caso a análise fosse voltada para as capacitações grupais.

Outro ponto da abordagem que sofre críticas recorrentemente refere-se à visão de igualdade. Sobre isso, Sen (2011) ressalta que não propõe a igualdade de bem-estar e sequer a igualdade de capacitações para a realização do bem-estar. Isto porque, os aspectos processuais são diversos e não se pode concentrar na igualdade somente em termos de capacitações. A abordagem se concentra nos fins e não nos meios. Como os recursos são classificados como meios, a igualdade de recursos (improvável) implicaria na igualdade de capacitações apenas se todos possuíssem as mesmas capacitações. Como as pessoas são diferentes entre si, possuem necessidades diversas. Por isso, a dotação de bens primários e recursos não pode ser a mesma para todos os indivíduos.

Segundo Sen (2011), podem emergir diferentes usos da abordagem das capacitações dependendo da natureza das questões enfatizadas, da disponibilidade de dados, bem como, do material informativo empregado. Pode-se tratar, por exemplo, de políticas de combate à pobreza, incapacidade, liberdade cultural, entre outros. Logo, pode ser vista como uma abordagem geral que enfoca as vantagens individuais em virtude das oportunidades.

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Neste trabalho, como já foi mencionado, a abordagem das capacitações será utilizada na análise da pobreza. Pelas proposições expostas, fica claro que se trata de uma abordagem mais completa que aquela tradicionalmente utilizada na economia para o seu estudo. Isto ocorre porque por meio dela, a pobreza não fica restrita a um único espaço ou dimensão e pode ser entendida na sua multidimensionalidade.

Enquanto a visão unidimensional usualmente seguida, se concentra na proposição de crescimento econômico para o combate à pobreza, a visão multidimensional fornecida pela vertente das capacitações é importante, já que seu enfoque é no desenvolvimento. Ao contrário da literatura ortodoxa sobre pobreza, a relação entre pobreza e crescimento se dá em sentido inverso, isto é, a promoção de capacitações básicas, de potencialidades, é que promove a melhoria dos indicadores econômicos. Os indicadores econômicos influenciam nas