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No Capítulo 1 (Seção 1.1), foi apresentada sucintamente a visão predominante sobre o estudo da pobreza. Cabe retomar essa discussão, para situar a abordagem teórica de Amartya Sen. Sen (1999) ressalta que a ciência econômica está baseada em origens políticas distintas. Uma delas é a tradição ética. Dentro da tradição ética, o autor faz menção a Aristóteles, que

promoveu uma relação entre a realização social e a finalidade de se atingir o bem para o homem, e não somente para um único homem, mas, estendido a uma nação.

Na outra origem, a ética permaneceu esquecida. Em vez de se preocupar com a promoção do “bem para o homem” ou com a forma como se deve viver, esta parte da economia se voltou para questões logísticas. O autor a chama de abordagem da engenharia, e afirma que nela, os seres humanos são caracterizados por um comportamento simplório e irrealista (SEN, 1999).

Entre os autores renomados, Sen (1999) alega que as questões éticas foram reunidas em maior proporção na obra de Adam Smith, John Stuart Mill, Karl Marx e Francis Edgeworth, ao passo que, as questões de engenharia e logística dominaram as obras de

William Petty, François Quesnay, David Ricado, Augustine Cournot e Leon Walras35. É

notório que, nenhum dos gêneros é totalmente puro, porém, com a evolução para a economia moderna a abordagem ética foi reduzida de maneira considerável.

A metodologia chamada “economia positiva” não apenas se esquivou da análise econômica normativa como também teve o efeito de deixar de lado uma variedade de considerações éticas complexas que afetam o comportamento humano real e que, do ponto de vista dos economistas que estudam esse comportamento, são primordialmente fatos e não juízos normativos (SEN, 1999, p. 23).

Segundo Kang (2011), o normativismo ficou esquecido durante muito tempo em virtude da hegemonia do positivismo dominado pelo utilitarismo. Por conta deste distanciamento entre a economia e a ética é que houve o empobrecimento da economia moderna, que nas suas simplificações descreve o comportamento racional como o comportamento real, e é obvio que o mundo é mais complexo que isto.

A racionalidade pode ser vista como: consistência interna de escolha, ou como maximização do autointeresse. Conforme Sen (1999), a primeira forma não é razoável, pois, as escolhas dependem de características externas como a natureza das preferências, motivações e valores. Por este motivo, a consistência interna, por si só, não é suficiente para garantir a racionalidade de um indivíduo. Sobre a segunda forma, o autor ressalta que generalizar tudo aquilo que não seja direcionado à maximização de autointeresse como irracional é uma suposição errônea. Pensar nos seres humanos como indivíduos que se guiam somente pelo autointeresse é no mínimo, pensá-los como seres cruéis.

Esta ideia de racionalidade justificada pela maximização do autointeresse é frequentemente atribuída a Adam Smith. Todavia, de acordo com Sen (1999), há indícios que ele não concordava completamente com estas pressuposições.

35 Ver Sen (1999).

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[...] existem muitas outras atividades na economia e fora dela nas quais o simples empenho pelo auto-interesse não é o grande redentor, e Smith não atribuiu um papel geralmente superior à busca do auto-interesse em nenhuma de suas obras. A defesa do comportamento auto-interessado aparece em contextos específicos, particularmente relacionados a várias barreiras burocráticas da época e outras restrições a transações econômicas que dificultavam o comércio e atrapalhavam a produção (SEN, 1999, p. 40-41).

O autor prossegue acrescentando que Smith era, de fato, contrário à restrição ao comércio, mas nunca desaprovou o auxílio público destinado aos pobres. Por conseguinte, nada sugere que ele negava a intervenção governamental em prol dos direitos dos pobres.

Smith (1996, p. 170) era defensor das liberdades naturais36. Para ele:

Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres [...]: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, [...]; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter [...].

Por estas razões, é que Sen (1999) enfatiza o estreitamento da ampla visão de Smith pela economia moderna, vista pelo autor como um dos principais entraves da abordagem econômica contemporânea.

Daí origina-se a crítica à economia moderna, onde se insere a economia do bem-estar, classificada por Sen (1999, p. 45) como “precária”, haja vista que nesta visão os seres humanos se guiam estritamente pelo autointeresse e não possuem qualquer consideração ética. A economia do bem-estar se norteia com base no utilitarismo, cujo critério de avaliação, como foi ressaltado na Seção 1.1 do Capítulo, esteve por um longo período baseado na felicidade. Os estados sociais eram julgados pelo somatório da felicidade em cada estado e a avaliação se dava de acordo com a felicidade total.

Sen (2011) afirma que o critério de felicidade ou de realização de um estado mental como sentir prazer, pode ser muito injusto com algumas pessoas que se adaptam a situações adversas e não encontram oportunidades para melhora social. Esta questão adaptativa, afeta negativamente a confiabilidade das comparações interpessoais de utilidade, haja vista que subestimam a situação dos indivíduos que se encontram em situações de privações severas.

Além disso, o utilitarismo restringe as comparações interpessoais para avaliação social somente às realizações. As realizações são identificadas coerentemente com as utilidades realizadas. Neste caso, o valor da liberdade dos indivíduos é apenas indireto como meio para se atingir as realizações (SEN, 2001).

36 Ver Smith (1996).

Quando as comparações interpessoais de utilidade passaram a ser taxadas como

normativas ou éticas, nos anos de 1930, alguns autores positivistas como Robbins37 as

qualificaram como “sem sentido”, de modo que a comparação entre felicidades de pessoas distintas não possuía base científica. Assim sendo, a utilidade enquanto estado mental foi substituída pela representação da escolha numérica de um indivíduo, e passou a representar somente a preferência de uma pessoa.

No momento em que tais comparações foram evitadas pela economia do bem-estar, foi disseminada a eficiência de Pareto, ressaltada na Subseção 1.2.3 do Capítulo 1. Embora este seja um critério de eficiência econômica, não é um critério justificável para o julgamento social. Sen (1999, p. 43) afirma que “um estado pode estar ótimo de Pareto havendo algumas pessoas na miséria extrema e outras nadando em luxo, desde que os miseráveis não possam melhorar suas condições sem reduzir o luxo dos ricos”.

Nesse sentido, nesta visão do bem-estar as avaliações ficaram restritas somente às utilidades. A utilidade passou a ser determinada como a representação ordenada das preferências de cada pessoa separadamente. “Como uma pessoa não tem realmente a opção de tornar-se outra, as comparações interpessoais de utilidade baseadas na escolha não podem ser ‘lidas’ nas escolhas reais” (SEN, 2000, p. 88). As comparações interpessoais foram abandonadas e incorporou-se o welfarismo por completo, causando prejuízos ainda maiores ao julgamento social.

Quanto ao welfarismo, os requisitos de avaliação social utilitarista a que se apoia a economia do bem-estar podem ser entendidos por três aspectos:

1. “welfarismo” [welfarism], requerendo que a bondade de um estado de coisas seja função apenas das informações sobre utilidade relativas a esse estado.

2. “ranking pela soma” [sum-ranking], requerendo que as informações sobre utilidade relativas a qualquer estado sejam avaliadas considerando apenas o somatório de todas as utilidades desse estado.

3. “consenquencialismo” [consequentialism], requerendo que toda escolha – de ações, instituições, motivações, regras, etc. – seja uma última análise determinada pela bondade dos estados de coisas decorrentes (SEN, 1999, p. 55).

Pela ótica do welfarismo, a utilidade é a única fonte de valor. Deste modo, os julgamentos dos estados de coisas se dão em concordância com as utilidades. Com base no consequencialismo, as escolhas devem ser julgadas em detrimento de suas consequências, ou seja, baseando-se nos resultados gerados.

37 Ver Sen (2001).

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Quando o welfarismo é combinado ao consequencialismo, temos o requisito de que toda escolha deve ser julgada em conformidade com as respectivas utilidades que ela gera. Por exemplo, qualquer ação é julgada segundo o estado de coisas conseqüente [...] e o estado de coisas conseqüente é julgado de acordo com as utilidades desse estado [...] (SEN, 2000, p. 78).

A conclusão a que se chega, é que o bem-estar social na estrutura welfarista é função de utilidades individuais. De acordo com este critério, o êxito é julgado pela soma total de utilidades gerada em cada estado, isto é, o ranking pela soma. O ranking pela soma implica que as utilidades de diferentes indivíduos sejam somadas para que se chegue a um valor total, porém, não leva em consideração a distribuição do total gerado (SEN, 1999; SEN, 2000; SEN, 2001; SEN, 2011).

O julgamento baseado na utilidade total atesta que o utilitarismo não tem interesse pela distribuição das utilidades e ignora os problemas referentes à desigualdade na distribuição de bem-estar e utilidades entre pessoas distintas. Além disso, o critério utilitarista atribui pesos iguais aos ganhos e perdas de utilidades de todos. Logo, trata os seres humanos de forma igualitária e ignora as diversidades. Nesta abordagem, a injustiça refere-se à perda de utilidade agregada. Esta é a visão que se caracteriza por ser a teoria ética e da justiça mais influente dentro da economia. Pode-se perceber que esta ética sofre de grande limitação (SEN, 1980; SEN, 2000; SEN, 2001; SEN, 2011).

Isto se torna explícito ao analisar que a economia tradicional, também não se atenta para os direitos morais e liberdades. Os direitos tomam uma conotação puramente legal com uso instrumental e não são dotados de qualquer valor intrínseco. Assim sendo, caso a violação de direitos seja vista como uma coisa ruim e a dotação de direitos como uma coisa boa, isto

jamais será explicitado, pois, apenas as utilidades devem possuir valor intrínseco38.

Por não reconhecer as diversidades dos seres humanos, o utilitarismo é desastroso e não consegue diferenciar ricos e pobres. Sen (1979) alertou que não se pode dizer que um indivíduo rico é rico, porque possui mais utilidade que outro indivíduo, que neste caso, pode ser chamado de pobre. Na medida em que as comparações interpessoais são abandonadas, a distribuição de utilidades não mais importa para a análise.

O julgamento, ou avaliação social também pode ocorrer por meio da opulência em que são observadas as rendas auferidas ou o consumo alcançado. Isto é condizente com o critério

38 Sen (1999) discute que a visão baseada em direitos não coexiste com o “welfarismo” e com o “ranking pela

soma”. Apesar disso, pode coexistir com o consequencialismo. Este argumento emerge-se, entre outros motivos, porque as atividades possuem consequências. Segundo Sen (1999), quando o raciocínio consequencial é empregado excluindo-se às restrições impostas pelo welfarismo, pode sugerir uma boa estrutura para o pensamento prescritivo no que tange aos direitos e liberdades. Obviamente este raciocínio é contrário ao welfarismo consequencialista da economia do bem-estar.

de maximização de utilidades, uma vez que esta maximização é delimitada pela restrição orçamentária dos indivíduos, considerando-se que suas rendas são limitadas. Desta forma, o bem-estar social também pode ser visto “[...] diretamente como uma função do vetor de rendas (sem ser intermediado pelas utilidades relacionadas com essas rendas), ou da combinação de características multiatributivas do status econômico ou opulência individual” (SEN, 2001, p. 153). Isto mostra que a vantagem de um indivíduo também pode ser avaliada de forma direta quanto a sua renda, riqueza e recursos.

Segundo Alkire (2002), a renda é uma medida que se destaca dentro da abordagem neoclássica, por transmitir utilidade ou valor. Por isto, disseminou-se a ideia de maximizar a renda nacional per capita. A renda então foi utilizada por muito tempo como a melhor proxy para o bem-estar.

Quanto a isso, Sen (2000) ressalta que ainda que as comparações interpessoais de utilidade fossem equivalentes a comparações de rendas reais, isto seria difícil de concretizar, haja vista que as diversidades dos seres humanos induzem que tenham funções de demanda diferenciadas. De todo modo, a renda e as mercadorias são usadas em prol do bem-estar apenas material.

Pelo fato das pessoas serem desiguais, é razoável que este fato seja levado em consideração. Nas análises de Sen (2001, p. 50-51),

Os seres humanos se diferem uns dos outros de muitos modos distintos. Diferimos quanto a características externas e circunstanciais. Começamos a vida com diferentes dotações de riqueza e responsabilidades herdadas. Vivemos em ambientes naturais diferentes – alguns mais hostis do que outros. As sociedades e comunidades às quais pertencemos oferecem oportunidades bastante diferentes quanto aos que podemos ou não podemos fazer. Os fatores epidemiológicos da região em que vivemos podem afetar profundamente nossa saúde e bem-estar. Mas, além dessas diferenças nos ambientes natural e social e nas características externas, também diferimos em nossas características pessoais (p. ex., idade, sexo, aptidões físicas e mentais) (SEN, 2001, p. 50-51).

Então, mesmo que duas pessoas possuam a mesma renda, elas podem ser desiguais na forma ou no potencial de realizar o que é valioso para elas. Apesar disto, as estratégias de mensuração a partir da renda tratam a renda de todas as pessoas de forma simétrica. Portanto, não se leva em consideração o fato de alguns terem mais dificuldades que outros em converter a renda em bem-estar e liberdade. Além disso, o autor afirma que, “[...] o que podemos ou não fazer, podemos ou não realizar, não depende somente de nossas rendas, mas também da variedade de características físicas e sociais que afetam nossas vidas e fazem de nós o que somos” (SEN, 2001, p. 60).

O pensamento baseado na renda e na utilidade é dominante e fundamenta o conceito mais utilizado de pobreza, sua mensuração, bem como, a formulação de políticas públicas.

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Pelo exposto até aqui é possível concluir que embora possua grande aceitação científica, este corrente teórica é falha. Os modelos econômicos, em sua maioria, têm mais preocupação com a sua representação matemática e aceitação, que com o mundo real. As hipóteses simplificadoras acabam desprezando a complexidade o mundo real e camuflando os problemas que o envolve.

As dificuldades deste tipo de avaliação social com base em variáveis estritamente econômicas podem ser resumidos em: descaso com os direitos e liberdades; trata os indivíduos da mesma forma e ignora as desigualdades; não importa como é a distribuição e todos os indivíduos são homogeneizados; sofre limitações pelas condições adaptativas e mentais a que os seres humanos estão submetidos. Por estes motivos, essas ideias são falhas. Logo, essa linha de pensamento não fornece uma boa representação para a estimação da pobreza e para as formas de combatê-la.

Assim, Sen desenvolve uma vertente particular do bem-estar na qual a liberdade é vista como um elemento central. Esta vertente rejeita o utilitarismo como medida, ignora a pressuposição comportamental de maximização de utilidade, e critica a ética utilitarista.