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CAPÍTULO 3: Capitalismo, meios de comunicação e marca publicitária: as teias do

3.2. A abstração da mercadoria em imagem da marca

Ao longo do século XX, contudo, uma série de transformações que incluem os avanços das novas tecnologias da informação e a globalização da economia modificaram aspectos fundamentais da organização taylorista-fordista de produção e do poder do Estado na regulamentação burocrática da relação capital-trabalho, “abrindo espaços para os ideais de “flexibilidade” e para o momento neoliberal do capitalismo” (RAMOS, 2010, p. 33). Com o crescimento do consumo a partir da década de 1950

a exigência crescente da renovação da produção, a obsolescência programada da mercadoria e a orientação da competição comercial para a mínima diferença entre os produtos, exigem do sistema produtivo um ritmo e uma flexibilidade que a rigidez da produção serializada em linhas de montagem não é capaz de acompanhar (RAMOS, 2010, p. 35).

A emergência dos monopólios multinacionais globalizados traz consigo a fragmentação da produção (não mais espacialmente concentrada), enquanto a evolução tecnológica – da informática à microeletrônica e à robótica - permite a flexibilização da produção, facilitando a adaptação da mesma às diversas demandas da clientela (SEVERIANO, 1999). Assim, a personalização dos produtos e a variedade de “estilos” aos quais os mesmos são endereçados alcançaram, na segunda metade do século XX, níveis ainda maiores daqueles criticados por Horkheimer e Adorno (1944/1985). E, se a padronização técnica e estética promovida pela indústria cultural servia à dominação social, a intensa estratificação da produção sob a aparência democrática da “liberdade de escolha”, releva-se um instrumento ainda mais eficaz de controle:

“fragmentação”, “pluralidade”, “diversidade”, “personalização” etc., são termos originalmente referidos à dinâmica dos processos produtivos, de sorte que a extrapolação deles para o terreno da subjetividade humana revela-se ideológica porque camufla os fins: fragmenta-se, pluraliza-se, diversifica-se e personaliza-se para melhor controlar (SEVERIANO, 1999, p. 72).

Tal estratificação leva, para Ramos (2010), à mentalidade do ticket, que

ao organizar os consumidores em tribos e targets, oferece uma lista de produtos a serem escolhidos em bloco. A organização do mercado em tickets é um dos mais eficientes dispositivos da indústria cultural para dar ao consumidor o reconhecimento de seu pertencimento a um grupo. É desse modo que as propagandas operam contemporaneamente ao associar às marcas, mais do que aos produtos, um ticket, isto é, uma lista de produtos, comportamentos, opiniões, emoções, enfim, um estilo (RAMOS, 2010, p. 46, grifo do autor).

Marca-se aqui, portanto, uma mudança importante no que diz respeito ao rumo das produções publicitárias: seu foco se desvia do produto em si e passa a ser investido na marca, em sua associação com os múltiplos targets e estilos. Passa-se assim a um novo nível de abstração da mercadoria, que adquire um valor para além do valor-de-troca, o valor-signo. Segundo Severiano:

O signo, na realidade, não passa da abstração última de um modelo geral do sistema que vai desde a concreção (valor-de-uso – formas pré-capitalistas), passando pelo valor-de-troca (“capitalismo de mercado”), até a sua forma sígnica mais abstrata (valor signo – “sociedades de consumo”). O esquecimento dos níveis anteriores é o que transforma o signo em simulacro: ausência absoluta de qualquer determinação.

Dupla fetichização, em que são ocultadas a história do objeto e a do sujeito

(Severiano, 1999, p. 77, grifo do autor).

Para a autora, o primeiro nível do fetichismo é aquele postulado por Marx onde as relações entre os homens no ato de produção da mercadoria são ocultadas: o fato de que o trabalho humano é transformado em mercadoria e passa a ser valorado não mais a partir daquilo que produz (valor-de-uso), mas a partir da relação com as outras mercadorias (valor-de-troca). Com o desenvolvimento do capitalismo e a implementação de uma sociedade voltada para o consumo, a publicidade cria uma rede de signos que se associam às mercadorias e, mais do que se referirem a elas, tomam o seu lugar. Ou seja, “o que à época de Marx tinha uma aparência de “coisa” – a mercadoria –, desmaterializa-se e passa a ter uma aparência de “signos”, absolutamente intercambiáveis em suas significações” (p. 79). Características das relações entre as pessoas, valores sociais, estilos, tudo isso passa a ser incorporado às mercadorias e a substituir sua materialidade por valores sígnicos. De acordo com a autora (de maneira similar ao que também procuramos mostrar no capítulo 1 em relação aos objetos de consumo) o valor-signo das marcas no capitalismo tem, em sua discursividade, a pretensão de obturar a falta estrutural dos sujeitos de maneira homóloga ao fetiche na perversão. Por essa razão ela postula que a sociedade atual promove uma dupla fetichização: no sentido marxiano e psicanalítico.

Para Severiano (1999), o processo de globalização das sociedades contemporâneas, com suas características fragmentárias, conduziu de modo inédito à multiplicação, proliferação e consequente indistinção dos objetos de consumo, fazendo da marca publicitária, enquanto componente identitário, seu principal elemento de diferenciação. De modo semelhante, Fontenelle (2002) em seu estudo da marca McDonald´s, destaca o fato de que,

apesar dos restaurantes da marca acrescentarem características próprias aos locais onde se situam suas lojas, é o nome da marca que é buscado pelos consumidores. De acordo com a autora, a marca é uma “ilusão de forma” em uma cultura onde a obsolescência programada das mercadorias e a necessidade de ampliação do consumo geram a demanda ininterrupta pelo novo, resultando em um estado de aceleração e descartabilidade permanentes. A marca publicitária ocupa o lugar do vazio dos sujeitos em uma sociedade cuja característica da “descartabilidade” tornou-se predominante. Entretanto, o preenchimento desse “vazio”, assim como para Severiano (1999), se dá no “duplo fetichismo” da mercadoria orquestrado pelas marcas publicitárias, a experiência mais regressiva de fetichismo na cultura (RAMOS, 2010).

Fontenelle (2002) argumenta ainda, a partir das formulações de Guy Debord (1967/1997) sobre a “sociedade do espetáculo”, que o estágio mais avançado do fetiche da mercadoria é quando ela se converte em imagem – a imagem da marca. A “forma-imagem como desenvolvimento da forma-valor” (FONTENELLE, 2002, p. 285) indica uma radicalização do fetiche que se dá no seio do atual estágio de desenvolvimento capitalista. O deslocamento do fetiche para a forma-imagem fica evidenciado quando, a partir da década de 1980, o processo de aquisição de empresas por valores acima da avaliação de seus bens ativos é atribuído à importância da marca dessas empresas no mercado. Outras tendências que apontam para essa mudança são os licenciamentos, como no caso da marca Disney, que fatura com empresas que desejam produzir e comercializar produtos caracterizados por seus personagens, e empresas como a Nike, que não possuem fábricas e apenas “administram” a marca com seu fortíssimo poderio de marketing. Torna-se mais importante “dominar mercados do que possuir fábricas, e a única forma de dominar mercados é possuir marcas dominantes” (AAKER apud FONTENELLE, 2002, p. 181).

A construção de valor para uma marca segundo Fontenelle (2002) é um processo que leva em conta uma série de fatores subjetivos. Tomando como exemplo o McDonald´s, a autora destaca a preocupação dos seus administradores em oferecer ao consumidor uma “experiência total” com a marca: a vivência de usufruir um serviço amigável, em um ambiente organizado, seguro, com diversão para as crianças, etc. No final, todos esses aspectos serão “integrados” à marca na forma de valor. “A estratégia da marca é o somatório de toda a sua comunicação”, que permite realizar o que os profissionais do ramo chamam de “correto posicionamento da marca”, ou seja, “levar os consumidores a identificarem um certo número de características e qualidades desejadas num produto específico” (ZYMAN apud FONTENELLE, 2002, p. 162-163).