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CAPÍTULO 4: O marketing viral na Internet e os laços sociais no capitalismo

4.1. Produção e consumo nas redes sociais da Internet

Neste capítulo nos propomos a analisar a estratégia do marketing viral a partir do modo com que se dão os laços sociais no contexto histórico atual do capitalismo. Pretendemos responder aqui à seguinte pergunta: de que modo o marketing viral se vale da evolução técnica dos meios de comunicação, aliada à sua utilização pelos sujeitos, para colocar em prática os objetivos gerais perseguidos pelo marketing e pela publicidade, a saber, a construção e circulação da imagem da marca somada à fixação do seu nome na mente dos consumidores? Para tanto, iniciaremos retomando a relação entre o atual modo de produção capitalista e os novos meios de comunicação como parte do já comentado processo de fusão entre economia e cultura. Do lado da economia, a concepção do consumo das redes de informação como “transação que se transforma no produto”, onde o processo de circulação de informações e veiculação da imagem da marca gera valor, nos remete à face objetiva do movimento de circulação mercantil segundo Marx:

Embora a totalidade desse movimento possa muito bem afigurar-se um processo social, e embora os componentes isolados desse movimento originem-se na vontade consciente e nos objetivos particulares dos indivíduos, a totalidade do processo aparece como uma relação objetiva, de surgimento espontâneo; uma relação que resulta da interação de indivíduos conscientes, mas que não faz parte de sua consciência nem é globalmente abarcada por eles. Seus conflitos dão origem a um poder social alheio, que se situa acima deles. Sua própria interação (afigura-se) um processo e uma força que independem deles. Por ser a circulação uma totalidade do processo social, ela é também a primeira forma em que não apenas a relação social afigura-se uma coisa independente dos indivíduos, digamos, como numa moeda ou num valor-de-troca, porém o mesmo acontece com a totalidade do próprio movimento social (MARX apud JAMESON, 1996, p. 290-291)

Valendo-se do conceito de circulação como totalidade objetiva do processo social de troca, conforme exposto por Marx, Jameson (1996) argumenta que o atual conceito de mercado como guardião da “livre iniciativa” torna-se falso uma vez que se revela como uma estrutura

“totalizante” independente da interação/competição dos indivíduos teoricamente “livres”, já que a função do mercado permanece sendo a domesticação e o controle social (mesmo que teoricamente prescindida da interferência do Estado absoluto) executada por ele enquanto entidade abstrata. Do lado da cultura, igualmente falsa é “liberdade de escolha” dos indivíduos em relação aos produtos da indústria cultural: é a indústria, por meio de todo o aparato comunicativo “em seu sentido contemporâneo e global mais amplo (que inclui a infraestrutura de todos os mais recentes aparelhos e equipamentos de alta tecnologia da mídia)” (p. 292-293), que estabelece nichos de consumo e organiza os consumidores em tribos e targets que conotam estilos pessoais. Contudo, a identificação entre mercado e meios de comunicação, para o autor, torna-se possível não por conta da semelhança entre os dois, mas antes por essa diferença que ambos conservam em relação aos seus respectivos conceitos. Então, pensamos poder derivar das proposições do autor o seguinte raciocínio: mercado e meios de comunicação são “dois sistemas de códigos” (p. 293) identificados por uma mesma promessa (falsa) de liberdade que desemboca, atualmente, no processo de consumo do consumo. Por sua vez, esse processo propicia um certo “bônus de prazer” a partir da estrutura “totalizante” dos meios de comunicação (situada acima e além dos conteúdos que ela possa estar veiculando), encabeçada pela nova tecnologia informacional ou computacional do terceiro estágio do capitalismo.

Para Jameson (1996), o consumidor encontra satisfação, portanto, não só nos produtos midiáticos, mas também no próprio ato de consumo da mídia. Porém, se nos aprofundarmos no fenômeno do consumo a partir da psicanálise, concluiremos que, no caso da satisfação com o ato de consumo, não se trata de um bônus de prazer (como afirma o autor), mas sim de gozo. O gozo manifesta-se como um excesso em relação ao prazer, não como um bônus de prazer, mas um bônus em relação ao prazer. Lacan vai definir o gozo como pertencente a um registro além do princípio do prazer (a pulsão de morte), como aquilo que, diante da proibição decorrente da Lei de interdição do incesto (consubstancial às leis da linguagem), insiste em retornar no ato de repetição. Já o prazer está ligado ao desejo e surge como uma barreira contra o gozo (VALAS, 2001). Segundo Ramos (2008b), o prazer com o consumo de um produto é vivido de maneira particular e imediata. Já a repetição do ato de consumo representa a tentativa de adequação do sujeito a um imperativo universalizado, quando o imperativo estrutural da instância supereuoica – “Goza!” – associa-se ao ideal de Outro

contemporâneo19 - “Goze sendo consumidor!”(BAIMA, 2011). Tal repetição, independente dos objetos consumidos, proporciona um gozo para além do prazer, para além do objeto, e opera uma falsa reconciliação com o todo social, alienando o sujeito no Outro da lei. Enquanto laço social, trata-se aqui do Discurso do Capitalista, onde o sujeito é comandado pelo mestre a participar de um curto-circuito que o liga diretamente ao gozo – uma busca sempre frustrada, pois se trata da tentativa de reaver o objeto perdido da entrada na linguagem. Pensamos já ser possível deduzir, nos debruçando sobre as citadas afirmações de Jameson (1996) a partir do arcabouço conceitual psicanalítico que, para além do prazer com o consumo dos produtos midiáticos, os sujeitos obtém um bônus, um gozo no próprio ato repetitivo de consumo da mídia enquanto adequação ao imperativo consumista. Resta-nos compreender agora como isso se dá no âmbito das novas tecnologias de comunicação interconectadas através da Internet.

Manuel Castells (2000) afirmava que a possibilidade do receptor da informação exercer também o papel de emissor na Internet revolucionaria as relações de poder dos tradicionais processos de comunicação em favor dos usuários. Vejamos um exemplo extremamente atual. Os avanços tecnológicos que levaram ao computador pessoal e, mais recentemente, à popularização e proliferação de aparatos de mídia com funções antes restritas ao âmbito profissional ou a uma faixa mínima de consumidores – como máquinas fotográficas, câmeras de vídeo e aplicativos de edição (hoje condensados em um só item multifuncional, um telefone com acesso à Internet, ou smartphone) – podem proporcionar a sensação de que o que antes era restrito, agora é permitido a todos: qualquer pessoa que detenha um desses aparelhos é capaz de produzir conteúdo midiático em qualquer lugar e enviá-lo instantaneamente às outras pessoas (desde que essas pessoas utilizem também alguma das ferramentas de comunicação presentes na Internet). O que antes era privilégio dos monopólios dos meios de comunicação de massa, agora é de fácil acesso às pessoas comuns. Contudo, nos parece que esses produtos surgem como gadgets ou latusas, termos usados por Lacan (1969-1970/1992) para designar os objetos de consumo produzidos pela ciência que fazem as vezes de objeto a. Freud (1930/2006) afirma que a tecnologia é tanto o

19 Segundo Lacan (1972-73/1985), o supereu é o imperativo que ordena ao sujeito que goze. Baima (2011)

afirma que tal imperativo supereuoico (estrutural dos sujeitos humanos e, portanto, transistórico) emite mandatos de gozo pleno impossíveis de serem atingidos (uma vez que o gozo foi perdido da entrada na linguagem), o que convoca incessantemente a falta e impõe o sentimento de culpa (cujo fundamento está na insuficiência de gozo, na tentativa de reaver o objeto perdido, o objeto a). A lei do supereu é vazia, formal, mas é preenchida pelo sujeito com o ideal do Outro: “o ideal social de consumo aparece como um Outro não barrado e o supereu se apoia nesse ideal do outro consistente para impor ao sujeito barrado a busca pelo gozo pleno. Perante essa configuração, fica para o sujeito o dever de ocupar o papel de consumidor e se imbricar na busca pelo gozo” (p. 106).

aperfeiçoamento dos órgãos do corpo quanto aquilo que remove as barreiras para que eles operem. Desse modo, seus produtos são como uma prótese capaz de realizar desejos de onipotência e onisciência que, em tempos remotos, eram corporificados nos deuses. Freud afirma que as máquinas fotográficas, por exemplo, são instrumentos capazes de materializar a memória visual. Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que a câmera de vídeo é capaz de fazer o mesmo, ainda com o incremento da memória sonora (como fazia o gramofone citado por Freud), e que os programas de edição de vídeo permitem materializar a imaginação humana, como quando contamos uma história. Da mesma maneira, o telefone amplifica a audição em relação às distâncias, e o computador é a concretização do raciocínio acrescida de eficiência e funcionalidade, dentre muitas outras funções.

Se cada um desses objetos, isoladamente, já é capaz de aproximar os sujeitos da condição de deuses, dispor de todos esses atributos em um só aparelho parece ser, de fato, uma grande fonte de prazer material para quem os adquire. Contudo, a constante renovação e reposição desses gadgets no mercado – o que coincide com sua obsolescência programada –, sempre anunciada pelos veículos de informação como grandes eventos e gerando filas gigantescas em frente às lojas encarregadas de lançar as versões atualizadas dos produtos em primeira mão, gera o que podemos chamar de uma falta-a-gozar infinita. Há sempre algo que os sujeitos estão perdendo, há sempre uma promessa de um “novo” gozo a ser gozado (uma nova função, um novo design, um novo formato), um excesso de gozo acessível pela via do consumo e à espera dos sujeitos nas lojas. Estamos aqui, certamente, diante do Discurso do Capitalista. Trata-se de um discurso onde o capital é o mestre (S1) que investe no saber (S2) da ciência tecnológica para dar origem a novos gadgets, novas latusas que se conectarão aos sujeitos com a promessa de completude, de preenchimento de sua falta estrutural. No ato de compra, esses sujeitos podem mesmo se pensar agentes deste discurso, mas o que não percebem, ou melhor, a verdade sobre a qual não querem saber, é que estão apenas a obedecer ao imperativo que os impele a gozar como consumidores, como se por essa via fosse possível reaver o objeto a perdido.

Entretanto, a principal inovação tecnológica desses aparelhos (para além de características como o tamanho reduzido e a compactação em um só item de funções que antes só podiam ser realizadas separadamente) é a capacidade de conexão com a Internet. Como instrumento técnico, a Internet é o aperfeiçoamento do telefone e possibilita o estabelecimento da comunicação escrita, visual e auditiva entre milhões de pessoas em todo o mundo em uma velocidade quase instantânea. A rede transporta para outras pessoas nossas

palavras, nossas memórias visuais e sonoras, as montagens audiovisuais da nossa imaginação. Os gadgets com acesso à Internet são construídos para que a produção pessoal de conteúdo multimidiático possa ser facilmente “compartilhada” e consumida por outros usuários através das redes sociais como Facebook, Twitter e Youtube. Não à toa estamos utilizando aqui os termos “produção” e “consumo”: acreditamos ser possível, aos moldes do que propõe Jameson (1996), pensar o funcionamento dos atuais meios de comunicação como análogos ao funcionamento do mercado – como dois sistemas de códigos que se identificam “de maneira a permitir que as energias libidinais de um inundem o outro” (p. 293). Assim, no que diz respeito ao consumo de conteúdo midiático pelos usuários das redes sociais, além do mais-de- gozar obtido com o consumo dos gagdets em si, há também um “bônus tecnológico” de gozo com consumo da mídia Internet. Novamente podemos aí localizar o Discurso do Capitalista: o capital (S1) dirige-se ao saber tecnocientífico (S2) que dá sustentação material à Internet (com a fibra ótica, por exemplo) e que cria algoritmos matemáticos capazes de fazer funcionar uma rede social. A mídia rede social se oferece para consumo (a) a sujeitos ($) que se imaginam agentes do discurso, e a velocidade com que os conteúdos são consumidos nas redes sociais (as ininterruptas atualizações de conteúdo), acaba por gerar uma constante falta-a-gozar (ou “conteúdo-a-consumir”). O consumo veloz e constante da mídia pretende a todo tempo dar conta da falta e assim rechaçar a dimensão da castração.

Porém, se nos aprofundarmos um pouco mais nessa análise da rede social no laço do Discurso Capitalista, talvez possamos perceber algo que se acrescenta tanto ao significante- mestre (S1), quanto à tecnociência na posição do saber (S2). Se levarmos em conta, como propõe Safatle (2005), que o imperativo de gozo com o consumo não substituiu a exigência de uma ética do trabalho que regule a disposição dos sujeitos em direção à produção para o mercado (a ética protestante de Max Weber onde o trabalho é meio de acumulação do capital), convivemos hoje com ambos os imperativos. Trata-se de uma ordenação social que convoca o saber-fazer a trabalhar para produzir mais-valia, como no Discurso do Mestre. E, ao mesmo tempo, comanda o saber-fazer a produzir o mais-de-gozar destinado ao consumo, o que realiza uma torção no Discurso do Mestre convertendo-o em Discurso do Capitalista. Propomos aqui, para entender as configurações do laço nas redes sociais, tomar o significante- mestre no Discurso do Capitalista como aquele que convoca tanto ao consumo quanto à produção.

Do mesmo modo que a mercadoria no capitalismo tardio é alçada a um nível de abstração para além do valor-de-troca e relaciona-se com as outras mercadorias a partir da sua

imagem (ou valor-signo), vimos no capítulo 3 que a fusão entre mercado, imagem midiática e realidade é o contexto onde a condição de visibilidade social dos sujeitos pode se reduzir ao ato de “relacionar-se enquanto imagem”, próprio das marcas publicitárias. Entendemos que o saber-fazer da produção de conteúdo midiático pelos sujeitos nas redes sociais é por sua vez produto do seu atravessamento pelo imaginário circulante do sistema de mídia em geral (que inclui televisão, jornais, revistas e todo o conteúdo midiático da indústria cultural), e que consiste “em reter o olhar do outro, na captação infinita da atenção, como que transmudando o planeta em fibra ótica, de modo a fazer coincidir, instantaneamente, cérebro, olho e mundo” (Sodré, 1987, p. 44). Assim, esse saber dá origem a um produto “novo” a ser consumido por outros sujeitos. “Novo” no sentido de que o conteúdo do sistema da indústria cultural se mistura aos modos particulares de gozo desses sujeitos, dando origem a um conteúdo midiático diferente daquele produzido pelos meios de massa. E esse caráter de “novidade” sempre premente é o excesso, o a mais de gozo (a) que é consumido.

Nossa proposta é que a compreensão das redes sociais a partir do Discurso do Capitalista leva ao entendimento do: 1) significante-mestre (S1) como a ordem dirigida ao S2 para que produza e a ordem dirigida ao sujeito ($) para que consuma; 2) saber-fazer (S2) como aquele que combina de maneira particular o conteúdo midiático da indústria cultural e da imagem das marcas, produzindo o mais-de-gozar para o consumo dos outros sujeitos. De fato, é o saber tecnocientífico que dá suporte à confecção e envio desses conteúdos (ou seja, à produção), mas o caráter excessivo de gozo é fruto do semblante de “novidade”, daquilo que estava faltando para que aqueles que consomem sintam-se completos. Tal compreensão vai ao encontro da afirmação de Quinet (2006), para quem o Discurso do Capitalista converte cada sujeito em um “explorador em potencial de seu semelhante” (p. 39), por obter a mais-valia que resta do trabalho do outro, resto colocado em circulação e que produz cada vez mais consumo. Para Soler (2011), o Discurso do Capitalista não escreve laço entre os homens, somente entre o sujeito e o objeto mais-gozar, o que gera uma massa de indivíduos devotados somente ao próprio gozo, que não se iludem mais com a completude mediante seu relacionamento com um par, mas apenas com parceiros “conectáveis e desconectáveis ao alcance da mão” (QUINET, 2006). Parece-nos essa a figura, cada vez mais comum nos dias de hoje, do usuário compulsivo de redes sociais que tem ao alcance da mão seu smartphone onde passa o dia “conectado” aos outros, produzindo e consumindo conteúdo midiático. Talvez possamos aqui também enxergar a configuração de uma montagem perversa, onde o funcionamento em conjunto dos sujeitos conectados uns aos outros faz as vezes de uma figura

de um Outro sem furos, a todo o tempo preenchido com gozo. Nesse caso o gadget seria o instrumento que garante o domínio do gozo do Outro, um Outro que não é outro senão o próprio funcionamento em conjunto dos sujeitos

No entanto, fazemos aqui a ressalva de que concordamos com Xavier e Ferreira- Lemos (2013) que os laços estabelecidos entre os sujeitos nas redes sociais podem se dar de inúmeras formas e que seria um erro concluir que essas redes, apesar de “sociais”, não possibilitam também a formação de vínculos libidinais entre os sujeitos. Apesar de também pensarmos que essa possibilidade sempre irá existir (sempre haverá um resto!), nossa dedicação atual concentra-se em apontar para essa “totalidade empenhada em apagar os vestígios da sua própria impossibilidade” (ZIZEK, 1996, p. 327), ideologia que hoje permeia o uso das redes sociais em suas relações com o atual modo de produção capitalista e sua expressão na “sociedade das imagens”.