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CAPÍTULO 4: O marketing viral na Internet e os laços sociais no capitalismo

4.2. Marketing viral e Discurso do Mestre

Vimos no capítulo 2 que o marketing viral apropria-se dessa circulação de informações e imagens nas redes sociais para fazer circular a marca publicitária, o que nos remete à afirmação de Fontenelle (2002) de que vivemos um período do capitalismo onde as transações também produzem valor. De modo semelhante, Ramos (2010) propõe a noção de “troca-valor” na sociedade de consumo. O autor defende que atualmente presenciamos a queda do dinheiro como fetiche, onde o dinheiro “perde, como propriedade sua, uma certa “singularidade mágica”, como sendo um objeto com atributos próprios independentes das relações que o sustentam” e “passa a ser percebido justamente a partir de tais relações” (p. 174-175). Nesse contexto, o fetiche do objeto dinheiro se desloca para o ato de troca em si, como se esse ato possuísse “sua própria lógica fetichizada, como se carregasse em sua realização atributos que lhe são próprios e, por isso, independentes das relações e dos objetos que a sustentam” (p. 175). Com isso, o “valor de troca” como garantidor do fetiche da mercadoria – um atributo para além das relações que a produzem – passa a ser a própria coisa: a “troca-valor”, que é

produzida no ato, coisificado em si mesmo, como atributo de si mesmo, abstraído de qualquer objeto. Deste modo, a dimensão fetichizada da troca se produz no deslocamento metonímico “inserido em redes de informação, nas quais o próprio ‘consumo da rede cria a riqueza, a transação se transforma no produto’”

(S S’ S’’ S’’’... = S2): a “troca-valor”, assim como o sujeito, produz-se nos intervalos, está em “ ” e não nos “Ss” (RAMOS, 2010, p. 175).

Tal argumentação nos remete à concepção de circulação mercantil de Marx, onde as relações de troca entre os homens acontecem independentemente da totalidade objetiva por elas constituída. Entendemos que o deslocamento metonímico como um saber (S2) que produz a “troca-valor” é homólogo ao trabalho humano de troca de mercadorias. Uma vez que esse trabalho for percebido independentemente daquilo que ele sustenta, a circulação surge objetivamente como totalidade fetichizada. E se considerarmos aqui também a possível identificação do mercado com os meios de comunicação, conforme aponta Jameson (1996), a circulação de imagens e informações adquire uma objetividade para além dos conteúdos veiculados, como uma espécie de “troca-valor”.

Introduzamos nesse ponto o Discurso do Mestre enquanto o tipo de laço social que produz o mais-de-gozar. A circulação de mercadorias como totalidade objetiva parece reproduzir a estrutura de produção de mais-valia expressa no Discurso do Mestre. Sem as relações de produção onde, a partir da ordem do mestre (S1), o saber-fazer (S2) trabalha, não há produção de mais-valia (a). Por isso mesmo o mestre mantém velada no lugar da verdade sua condição de castrado, de sujeito barrado ($), uma vez que necessita do saber que está do lado do outro para produzir a mais-valia. Do mesmo modo: sem as relações de troca não há circulação de mercadorias e tampouco há a produção de valor que dela decorre. A ordem do mestre (S1), que poderia ser expressa como “Troque!” ou “Faça circular!”, dirige-se ao saber- fazer encarnado pelos homens no ato de troca, saber do qual o mestre é dependente para produzir valor. É assim que a transação se transforma no produto, ou seja, a relação de troca é um saber que trabalha para o capitalismo e produz valor no ato de fazer circular a mercadoria. Vejamos então que valor é esse produzido na circulação (o excesso do qual o capitalismo se apropria a partir das relações de troca) quando pensamos a circulação não da mercadoria material a partir do valor-de-troca, mas a circulação da mercadoria em seu nível mais abstrato e fetichizado – a marca publicitária – a partir das relações de troca de imagens cada vez mais presentes na sociedade contemporânea. Entendemos que esse esforço teórico nos deixará em condições de, finalmente, compreender os aspectos fundamentais da estratégia do marketing viral no laço social da atualidade.

Fontenelle (2002) afirma que o processo de circulação da imagem das marcas adquire extrema importância para o atual estágio do capitalismo. Somada a isso está a responsabilidade dos sujeitos que, ao consumir imagens-mercadoria, convertem-se em meios

pelos quais as marcas circulam e proliferam. Podemos pensar que, na Internet, essa proliferação pode ser dar tanto na publicação de fotos pessoais nos perfis de redes sociais, como também no ato de compartilhar publicidade por esses mesmos perfis. Segundo Silva (2008), o marketing viral faz do usuário das redes sociais um agente de divulgação das marcas publicitárias. Assim como ocorria com a propaganda boca-a-boca, um dos principais benefícios dessa estratégia para as empresas é que a mensagem da marca é transmitida para o próprio círculo de amizades da pessoa que a envia, e por isso é tomada por aquele que recebe a mensagem como uma espécie de recomendação, o que agrega à imagem da marca um valor muito peculiar: a confiança. Cabe aqui destacar como a questão da confiança pode ser compreendida a partir da psicanálise. Segundo Brito (2008), “confiança” foi a primeira denominação utilizada por Freud para designar o fenômeno da transferência, fenômeno este que permite ao analisando reproduzir em análise as relações de objeto que mantém fora dela. Trata-se do conteúdo imaginário depositado na figura do analista como grande Outro do sujeito. A partir disso, podemos pensar que tanto no marketing viral quanto na propaganda boca-a-boca, a intenção é que a marca publicitária se valha do conteúdo imaginário que o sujeito deposita naqueles que o rodeiam (como a confiança), com a finalidade de agregá-lo como valor-signo à imagem da marca para assim facilitar sua proliferação no círculo afetivo .

Estabeleçamos agora as diferenças entre a propaganda boca-a-boca e o marketing viral na Internet. Primeiramente, o marketing viral permite a replicação da mensagem em velocidade e escala gigantescas. Seu alcance extrapola em muito o círculo de amizades da pessoa que a replica, uma vez que cada um que a recebe pode potencialmente replicá-la novamente (agora para a sua própria rede de contatos), fazendo-a chegar a milhares ou mesmo milhões de pessoas. Além disso, enquanto a recomendação de uma marca ou produto através da propaganda boca-a-boca demanda que a pessoa transmita a mensagem com suas próprias palavras, o ato de compartilhamento de um conteúdo pelas redes sociais é feito mediante a geração de cópias da mensagem matriz, ou seja, é a própria mensagem publicitária original – seja ela um advertising, uma promoção ou um vídeo – que é transmitida às pessoas sem a “interferência” daquele que a transmite20. Mas para que o conteúdo da mensagem seja compartilhado com maior eficiência, o ideal é que ele não seja tomado como o que realmente é (mensagem publicitária) para assim facilitar a concretização de uma “ação espontânea de comunicação” (Silva, 2008, p. 96). Com isso, devem ser produzidos conteúdos midiáticos que

20 O usuário pode até escrever algo juntamente com a mensagem que compartilha, mas o conteúdo original

aparentem terem sido feitos por pessoas comuns. Após um determinado tempo em que o conteúdo tem sua circulação ampliada, a notícia de que se trata na verdade de uma mensagem publicitária faz com que a imagem da marca se faça presente por onde quer que a mensagem tenha passado. O conteúdo viral deve ainda ser propositadamente enviado a núcleos específicos de usuários ou a pessoas que tenham sido detectadas como influentes no seu círculo social, tudo isso de acordo com o nicho de mercado que se deseja atingir. Há aqui um paralelo interessante que se pode fazer com o antigo paradigma dos meios de massa. Citando Al Ries, Fontenelle (2002) afirma que o trabalho tradicional de “relações públicas” consiste em promover uma marca por meio de notícias reais na mídia21 e que, para isso, seria necessário conquistar os “formadores de opinião”. Acontece que esses “formadores de opinião” que possibilitavam que as imagens das marcas chegassem ao público desejado pelos anunciantes constituíam os monopólios de mídia televisiva, de rádio ou de jornais impressos, enquanto que, na época atual, são pessoas comuns monitoradas nas redes sociais pelos departamentos de marketing das empresas e usadas como meio de veiculação da marca. Ao invés da “ficção totalitária que articula jornalismo, entretenimento e publicidade numa mesma sequência ininterrupta de imagens, regidas pelas leis da concorrência comercial entre os canais de televisão” (KEHL, 2004b, p. 155), na Internet o marketing viral funda a ficção que articula a publicidade ao conteúdo pessoal veiculado pelos usuários das redes sociais.

Pensemos então agora o marketing viral a partir do Discurso do Mestre. Primeiro encontraremos como agente uma ordem, um significante-mestre (S1) que poderia ser expresso pelo imperativo “Compartilhe!”. Esse significante dirige-se a um saber (S2) que está do lado do outro: o saber-replicar a mensagem em um círculo de confiança. É um saber que apenas o sujeito que é usuário das redes sociais detém: o mestre depende dele para que o compartilhamento da imagem da marca seja facilitado pela confiança existente entre o sujeito e os componentes do seu círculo afetivo. O mestre vela no lugar da verdade o fato de que é castrado ($), ou seja, de que precisa do saber do outro para produzir o que deseja. O que o trabalho, o saber-fazer daqueles que replicam as mensagens aos seus círculos produz como excesso, aquilo do que o mestre se apropria (a), é a circulação da imagem e do nome da marca. É importante destacar que, do mesmo modo que a relação produtiva básica, trata-se de um trabalho que não é pago por inteiro pelo mestre, pois o objetivo final desse processo é o acúmulo de capital pelos detentores das marcas, capital que obviamente não é distribuído entre aqueles que trabalharam pela difusão da imagem das marcas. O que acontece muitas

vezes é que as mensagens publicitárias nas redes sociais trazem em seu texto algum tipo de promoção, onde a condição para o benefício em questão é que o sujeito compartilhe a mensagem entre seus contatos. Nesse caso, poderíamos comparar o “prêmio” da promoção com o salário do trabalhador, que nunca chegará a um valor que seja equivalente ao tempo de trabalho despendido na produção. O real valor por ter feito a marca circular nunca será pago ao usuário.

É interessante notar ainda que o significante “Compartilhe!”, pode ser cotidianamente lido e escutado nos mais variados meios de comunicação que compõem a indústria cultural contemporânea sob a mesma forma imperativa que aparece nas páginas da Internet. Essa ordem nos é dada a todo o momento não só nas propagandas comerciais da televisão, do rádio, das revistas e jornais mas, muitas vezes, no próprio conteúdo desses veículos, que nos incitam a acessar seus respectivos sites ou perfis de redes sociais e “compartilhar” seus conteúdos na rede. Isso nos leva a aventar a hipótese de que, assim como o consumo representa o ideal de Outro na contemporaneidade (BAIMA, 2011), a partir das recentes transformações do capitalismo com as novas tecnologias da informação, a circulação expressa no imperativo “Compartilhe!” pode também estar ganhando espaço como ideal do Outro no capitalismo. Sabemos que não seria possível dentro dos limites deste trabalho explorar tal hipótese com o cuidado e o rigor necessários. Porém, gostaríamos ainda assim de descrever alguns indicativos que parecem apontar para essa tendência. Um deles é a recente declaração de Jeff Bewkes, presidente da empresa estadunidense Time Warner (um dos grandes monopólios da indústria cultural desde a década de 1970), afirmando que o fato de uma das séries televisivas de maior sucesso produzida pela companhia ser a série “mais pirateada do mundo” era “um tremendo boca-a-boca”, servindo de porta de entrada para futuros clientes dispostos a pagar por ela (SÁ, 2014). Declaração no mínimo surpreendente, uma vez que a Time Warner (juntamente com diversas outras gigantes do entretenimento dos E.U.A., como Disney e Universal) manifestou-se publicamente em 2012 a favor da aprovação do projeto de lei da Câmara dos Representantes dos E.U.A. denominado S.O.P.A (Stop Online Piracy Act), de combate à pirataria na Internet (enquanto manifestaram-se contra o projeto empresas como Google, Facebook e Twitter, cujos negócios dependem fundamentalmente da circulação dos conteúdos midiáticos e não do pagamento de direitos autorais) (ENTENDA [...], 2014) . Ou seja, ao que parece, a circulação do produto na Internet transforma-se em valor (troca-valor) para a empresa, independentemente das pessoas efetuarem o ato de compra (por mais que na declaração do presidente da Time Warner essa troca-valor esteja sendo pensada como meio

para levar mais consumidores à compra). Outro indicativo de que a circulação pode se configurar como um ideal do Outro na contemporaneidade pode ser deduzido dos alertas sempre constantes a respeito da repetição compulsiva do ato de usar a Internet e acessar redes sociais, tanto para verificar o que outras pessoas compartilharam – o que poderia ser entendido como um ato que responde a um imperativo de consumo via o “consumo da mídia” (JAMESON, 1996) – quanto para compartilhar conteúdo – o que por sua vez pode estar respondendo a um imperativo de circulação que proporciona um gozo para além do conteúdo compartilhado. Tal gozo parece estar relacionado com uma realidade que exige cada vez mais do sujeito a existência como imagem (FONTENELLE, 2002), e obedecer ao imperativo de circulação aparece como uma forma de publicizar-se, tonar-se visível pela replicação de si mesmo na rede onde tudo circula indefinidamente. A possibilidade técnica oferecida pela Internet e suas redes sociais para fazer circular as informações, se alia à necessidade do capitalismo de fazer as imagens da marca circularem - como ocorre no caso do marketing viral –, mas parece também coadunar-se com a exigência de que os sujeitos busquem seu lugar no mundo enquanto imagens.