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CAPÍTULO 4: O marketing viral na Internet e os laços sociais no capitalismo

4.3. Dois casos de vídeos virais

Entretanto, o aspecto que talvez mais nos tenha chamado a atenção a respeito do marketing viral seja a intenção de fabricar conteúdos que não sejam percebidos como publicidade para garantir que mais usuários trabalhem na sua divulgação sem apresentar resistência. É o caso dos dois exemplos de marketing viral citados na Introdução deste trabalho e que usaremos aqui, ao modo de uma vinheta clínica, como exemplos de ações de marketing viral.

Caso 1: os dois primeiros vídeos da série “Perdi meu amor na balada”, publicados em julho de 2012 na rede social Youtube, foram produzidos propositalmente para parecerem vídeos “caseiros” (no sentido da informalidade e da falta de recursos materiais). Tendo como pano de fundo um ambiente público ao ar livre, no primeiro vídeo um rapaz diz ter sido convencido por amigos a gravar um “apelo” para que as pessoas o ajudassem a encontrar a garota que teria conhecido em uma casa noturna de São Paulo no dia anterior, pois havia perdido o papel onde anotara seu número de telefone. Ele a descreve fisicamente, diz que só

sabe seu primeiro nome, Fernanda, e completa: “Estou desesperado, eu não durmo. Por amor vale tudo. Eu quero fazer qualquer coisa para encontrar com ela”. Em apenas um dia, o vídeo foi acessado por mais de 700 mil pessoas (CAMPOS, 2012). No segundo vídeo, publicado alguns dias depois, ele procura sem sucesso pela garota em uma loja (supostamente apontada por alguém que havia assistido ao primeiro vídeo como o local onde ela trabalhava). Entra na loja demonstrando em grande expectativa e, ao não encontrá-la, sai desiludido e cabisbaixo. Em ambos os casos, a postura, a fala e os trejeitos do ator tem a intenção de fazer com que aqueles que assistem se solidarizem com a situação e compartilhem o vídeo. Já o terceiro e último vídeo apresenta, desde o início, uma estética bem definida de filme publicitário, com o título do vídeo aparecendo de forma estilizada, a presença de sonoplastia, música de fundo, aproximações de câmera e cortes bem definidos. A narrativa é declaradamente ficcional: intercala cenas fugazes da noite em que o rapaz teria conhecido a garota com outras que mostram, como em um filme, os momentos em que o rapaz escrevia mensagens no Facebook (que de fato foram publicadas em seu perfil na rede social, onde ele mantinha contato real com as milhares de pessoas que se solidarizaram com a situação). Na sequência seguinte, são mescladas cenas que remetem ao segundo vídeo da série (quando ele procura a garota em uma loja), com a sua ida a um estúdio de tatuagem onde faz o retrato falado da moça, cujo desenho, estampado em um cartaz, ele cola em um muro juntamente com a inscrição “perdi meu amor na balada”. No final, o rapaz recebe uma mensagem em seu celular perguntando se ele havia visto o vídeo que tinha sido colocado na sua página. No vídeo, um homem diz que estava no mesmo local em que o rapaz conheceu a garota e, usando um celular da marca Nokia, usa um recurso de aproximação em uma das fotos que teriam sido tiradas naquela noite para revelar, ao fundo, o papel em que o telefone de Fernanda havia sido escrito. O rapaz então liga para a garota e a encontra. O vídeo termina como a maioria dos filmes publicitários veiculados na televisão: aparece o produto, um smartphone, cujo modelo é denominado “pure view” (“visão pura” em inglês), e logo abaixo o letreiro “o mais puro detalhe de suas imagens”, em referência à qualidade das fotos que tira.

Caso 2: já os vídeos que ficaram conhecidos como “A Louca da Vila Olímpia”, publicados em dezembro de 2012 também no Youtube, levam um pouco mais longe a pretensão de omitir seu caráter publicitário. No bairro da Vila Olímpia em São Paulo, uma mulher destrói a marteladas um carro estacionado. As pessoas ao redor a observam, enquanto algumas outras filmam o ocorrido com seus aparelhos de celular. Após quebrar alguns dos vidros do automóvel, a mulher sai caminhando (sob o olhar atônito dos presentes), entra em

um taxi e vai embora. As pessoas se aproximam, filmam e conferem o estado do carro. Algumas dessas filmagens amadoras foram posteriormente publicadas no Youtube, sendo que uma dessas publicações espontâneas alcançou em poucos dias mais de 800 mil visualizações (PORTUGAL, 2012). Nenhum vídeo havia sido publicado pelos próprios autores da ação publicitária nesse primeiro momento (OLIVEIRA, H., 2012). Cinco dias depois da publicação dos vídeos, o canal de televisão a cabo Sony Entertainment Television divulgou em sua conta no Youtube um vídeo denominado “A verdade sobre a louca da Vila Olímpia”. Tratava-se de uma edição que mesclava outros enquadramentos do episódio com cenas dos vídeos publicados pelos que estiveram presentes. Ao final, quando uma das câmeras (essa certamente executada por um profissional da equipe que produziu a ação) se aproxima da parte de trás do automóvel, a imagem focaliza dentro do carro um cartaz em meio aos estilhaços de vidro. Nele, os dizeres “Quer vingança? Revenge22” e, logo abaixo, o logotipo com a marca do canal de televisão. Em seguida, entra uma legenda sobre um fundo avermelhado: “Se sentiu enganado? Quer vingança? Aprenda assistindo a Revenge”. Há um corte para o logotipo da série de TV “Revenge 2”, seguida do letreiro “segunda temporada completa a partir de 9 de janeiro, toda quarta, às 22h” e logo abaixo o logotipo com a marca do canal.

A metáfora do vírus manifesta-se aqui em toda a sua potência. A fase de inoculação corresponde à publicação do vídeo na Internet. O período de incubação é o tempo em que o vírus da marca permanece oculto, sem se manifestar. A disseminação é quando o vídeo é replicado ou compartilhado e circula (a circulação do sangue poderia ser comparada com a circulação de informações). E a infecção é o momento em que o vírus da marca se expressa e infecta o organismo-rede. Entretanto, a metáfora do vírus da informática (que, por sua vez, já é uma metáfora do vírus biológico) nos parece ainda mais precisa neste caso. É como quando recebemos um email infectado: o vírus chega camuflado ao nosso computador e quando menos esperamos estamos infectados. Os programadores que desenvolvem o vírus são como os publicitários que elaboram as ações. Seu objetivo é que a marca se instale na mente dos consumidores como o vírus se instala nos sistemas computacionais, e se espalhe para outras pessoas que estejam conectadas (como se replicam e se disseminam os vírus para outros computadores conectados ao primeiro).

Os dois casos apresentados nos remetem a ações de “relações públicas”, porém agora no contexto das novas tecnologias da informação. Enquanto na época de Edward Bernays os “pseudoeventos” se davam em situações onde já se tinha conhecimento da cobertura dos

meios de comunicação de massa (que então faziam o trabalho de veicular o acontecimento), os “pseudoeventos” criados por essas ações de marketing viral apostam na veiculação por parte dos usuários das redes sociais. Antes de se revelarem ações de marketing, ambos os casos se pretendem parte da realidade, desde a emissão (no caso 1 o envio do vídeo do “apelo”; no caso 2 a performance da atriz) até a recepção (as pessoas que assistem, acreditam e compartilham os vídeos). Porém, como sabemos, os vídeos na verdade são forjados. Isso nos permite comparar o caso 1 com um programa de televisão que é previamente produzido e veiculado pelo emissor, enquanto que o caso 2 nos remete à transmissão de um fato, como ocorre no jornalismo televisivo ou nos reality shows (com um elemento a mais peculiar aos novos meios tecnológicos: quem produz e veicula o conteúdo midiático não é um canal de televisão que flagrou o acontecimento, mas o próprio público que presenciou o “pseudoevento”). Nos dois casos, porém, os conteúdos são convertidos em mercadoria – mercadoria que circula pela rede e é consumida pelo público. Quando ocorre a revelação da farsa, o que era da ordem da realidade se apresenta como imagem-mercadoria (conteúdo midiático que assume a forma da mercadoria) para vender uma mercadoria-imagem (o produto que se abstrai em imagem).

Ramos (2010) afirma que a propaganda comercial é um discurso de regulação social que pressupõe um saber sobre o gozo. E aquilo que os casos de marketing viral apresentados prometem é que a marca detém um saber sobre o gozo dos sujeitos. Estes últimos são tidos como destituídos do saber, pois quem sabia tudo desde o começo (inclusive que se tratava de uma farsa) era a marca. Assim o ato de enganar o público torna-se apenas uma maneira de confirmar não só que é a marca quem sabe, mas também que o acesso a esse saber se dá pela via do consumo, como um “Outro que sabe gozar e convida a uma encenação coletiva” (p. 21). Os letreiros que encerram os vídeos finais nos dois casos consistem em promessas de um saber sobre o gozo dos sujeitos pela via do consumo. E a estratégia que consiste em primeiro apresentar uma narrativa como se fosse verdadeira, para depois revelá-la como farsa, é uma maneira de reforçar a promessa de gozo da publicidade – algo como “você constatou que nós de fato sabemos fazer você gozar, então agora acredite, esse produto também lhe fará gozar”. No caso 1, o letreiro afirma que o produto oferece “o mais puro detalhe de suas imagens”, ou seja, os recursos técnicos do produto seriam capazes de capturar em imagem a realidade pura. E não é exatamente a respeito do triunfo da imagem sobre a realidade que se trata essa ação de marketing viral? O sujeito, ao ser iludido, é submetido a experimentar no real aquilo que comunica o valor-signo da mercadoria anunciada: imagem e realidade estão fundidas (o que

reforça a promessa de que a marca detém um saber sobre seu gozo). No caso 2, isso fica ainda mais evidente: “Se sentiu enganado? Quer vingança? Aprenda assistindo a Revenge”. Ou seja, a vivência de ser enganado e desejar vingar-se (o valor-signo associado à mercadoria em questão), se dá no real, o que também só alimenta a promessa de que o sujeito, ao consumir o produto, usufruirá um saber que o fará gozar. A seguinte citação de Kehl (2004b) não poderia ser mais certeira em relação ao que acabamos de expor:

os objetos e imagens da sociedade do espetáculo convocam o sujeito a aparecer enquanto consumidor: sua visibilidade é reconhecida no ato de consumo, e não na ação política, e para isso a publicidade tem que trabalhar não com os ideais, mas com seu avesso. A cobiça, a luxúria, a ostentação, a inveja, a gula e a preguiça, entre outros “pecados” equivalentes à satisfação de nossos “baixos instintos”, são invocados subrepticiamente, quando não nomeados de forma irônica, como componentes do cânone normatizante do consumidor (KEHL, 2004b, p. 158).

No caso dessas ações de marketing viral onde o público primeiramente é ludibriado e depois comunicado de que foi enganado, poder-se-ia argumentar que são contraproducentes para os anunciantes, na medida em que a imagem da marca estaria sendo associada a algo negativo. Porém, se a publicidade trabalha também com o avesso dos ideais, talvez não mais o conteúdo, mas a circulação do nome da marca, seja a prioridade. Além disso, concordamos com Kehl (2004b) que o impacto midiático de um evento (como na popularização dos vídeos que tomamos como exemplo) em uma sociedade que funde imagem e realidade, torna-se autônomo em relação aos outros aspectos envolvidos em um acontecimento, sobrepondo-se ao seu valor histórico ou às suas consequências políticas. Por essa razão, não nos surpreende que em ambos os casos de marketing viral citados, a determinação do Código de Defesa do Consumidor de que toda publicidade deve ser caracterizada como tal tenha sido ignorada pelos produtores em nome do impacto causado na realidade. Se o marketing procura, como afirma Fontenelle (2002), um “tom de realidade” para imprimir na imagem da marca, o marketing viral parece expressar essa busca fundindo realidade e imagem da marca.