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CAPÍTULO 1: O Capitalismo e os discursos no laço social

1.5. O discurso dos mercados: os gadgets no comando

Na sequência deste trabalho, iniciaremos a discussão a respeito do marketing viral a partir do que a psicanálise conceitua como laço social – os discursos – em sua relação com as características próprias ao tempo histórico no qual vivemos. Partimos, neste primeiro capítulo, do Discurso do Mestre em sua homologia com a relação entre o capitalista e o trabalhador na produção de mais-valia; seguimos para o Discurso Universitário do mestre moderno ou do mestre pervertido, dissertamos sobre a “corruptela” do Discurso do Mestre no Discurso do Capitalista e, por último, comentamos as afinidades entre o consumo e o Discurso da Histérica. No encerramento deste capítulo, achamos pertinente tecer ainda alguns comentários a respeito da possível presença no laço social contemporâneo do Discurso do Analista, porém de modo bastante distinto, ou mesmo oposto àquilo que se opera na prática clínica da psicanálise.

A partir de apontamentos de Lacan na Conferência de Milão (1972/1978) sobre alguma outra coisa - que não o discurso analítico - que estaria emergindo e que manteria a posição do semblante de objeto a no lugar de agente do discurso, Nestor Braunstein (2010) batiza de discurso dos mercados o que o psicanalista francês indicou na mesma Conferência como sendo o “discurso PESTE”. Lacan se refere aqui à frase atribuída a Freud ao desembarcar nos EUA em 1909: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”

(FREUD apud LACAN, 1955/1998, p. 404). Ou seja, Lacan está sem dúvida falando do discurso do analista, mas de uma versão totalmente consagrada ao discurso do capitalista, onde no lugar de agente opera o semblante de objeto, o mais-de-gozar, o a (LACAN, 1972/1978). Lacan não retoma mais a questão ao longo de sua obra, mas Braunstein (2010) a desenvolve de maneira muito interessante aos nossos propósitos neste trabalho, uma vez que o autor entende que o discurso dos mercados parece “dominante nas formações sociais da primeira década de um novo século e também, muito previsivelmente, nas que virão” (p. 163), apontando o início do século XXI como o período em que esse tipo de laço estaria operando de forma mais intensa.

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Figura 7 - Discurso do Analista

Segundo Braunstein (2010), o agente deste discurso é encarnado pelas latusas ou gadgets, os objetos de consumo condenados à fugaz obsolescência e à renovação constante, dispositivos produzidos massivamente que se apresentam “cada vez menores, cada vez mais portáteis, cada vez mais repletos de funções digitalizadas” (p. 156). Retomando a já citada passagem da hegemonia do Discurso do Mestre para a dominância do Discurso Universitário na aurora do capitalismo, podemos notar que o saber-fazer (S2) que antes pertencia ao escravo passa ao lado do senhor (S1). O trabalhador, sucessor do escravo, é reduzido à condição de objeto no mercado de trabalho, a mais uma mercadoria à qual se dá um preço (valor-de-troca). Uma vez convertido em valor o trabalhador torna-se objeto, substituível como qualquer outro, o que abre caminho para a automação da força de trabalho substituir homens por máquinas para trabalhar para o capitalista no lugar dos seres humanos. É então que o saber “deverá dar como resultado a produção dos produtos do saber” (p. 156): o saber passa a ser incorporado pelos objetos, pelas máquinas comercializadas como objetos de desejo. Dispositivos que, com um quarto de giro a partir do Discurso Universitário operariam agora do lugar de agente, um agente silencioso, sem rosto, semblante da entidade pretensamente autônoma do mercado “com seus inescrutáveis ‘fluxos de capital’” (p. 155). Nestor Braunstein sustenta que a passagem gradual e progressiva da ideologia feudal à liberal e desta à neoliberal, corresponde à passagem da hegemonia do Discurso do Mestre para o Discurso Universitário (este sim,

para o autor, o discurso capitalista por excelência6), e agora destes para o discurso dos mercados. Ou seja, para Braunstein (2010), se houve na passagem do feudalismo para o capitalismo a substituição do mestre (senhor feudal) pelo saber (capitalista) enquanto agentes dos discursos dominantes, agora assistimos à troca do saber pelo objeto a – a misteriosa entidade mercadológica portentora de uma “ordem enunciada em surdina, que pode ser sanguinária, a do supereu: ‘Goza!’” (p. 155). Na atualidade, é a mercadoria quem impõe condições.

O autor segue sua argumentação sobre o discurso dos mercados destacando os matemas e suas respectivas funções. No lugar da verdade está o saber (S2), o saber da ciência que inventa os gadgets e que se encarrega de multiplicá-los. Trata-se do

[...] aparato de produção de conhecimentos que é a base do edifício da sociedade pós-industrial. É a ciência, esse saber autônomo, que se especializa sem cessar, com sua expansão tão ilimitada como avassaladora [...] . A ciência como uma “empresa” que marcha de modo imprevisível, que se dá seus próprios fins, que obedece a suas próprias leis, “espontaneamente”, e é ignorante de suas determinações sociais e políticas. Uma “ideologia da foraclusão do sujeito” cuja máxima expressão se encontrará na doxa econômica que postula que os mercados funcionam sozinhos, regidos por suas próprias leis, independentemente da vontade de seus atores e daqueles que são afetados pelos movimentos do capital. A ciência econômica, propomos, é o paradigma de uma atividade humana produtora de saber que faz ver a história como efeito de processos ingovernáveis e, por isso mesmo, fatais (BRAUNSTEIN, 2010, p. 157).

O outro para quem esse discurso se dirige é o sujeito ($), marcado pela divisão e por uma falta-a-gozar como no Discurso do Capitalista. Sujeito que crê na sua autonomia enquanto consumidor assim como na pretensa liberdade de escolha que a multiplicidade de marcas e gadgets aparenta proporcionar.

O sujeito barrado comandado pelos objetos de consumo do mercado produz nesse discurso significantes-mestre (S1), evoca no lugar da produção os Nomes-do-Pai com os quais se identifica. Para o autor, estes são os Nomes-do-Pai que, ao sujeito, “puderam dar continuidade à sua existência, em meio à desorientação geral, à pululação de ofertas significantes e à falta de garantias de todas elas” (p. 157). Entendemos que essas características da sociedade atual citadas pelo autor convergem com a análise de Fontenelle (2006) sobre os desdobramentos do processo de “fetichização da cultura” mediante o desenvolvimento da indústria cultural – processo estudado a fundo por Horkheimer e Adorno (1944/1985) desde a década de 307 – onde a quase totalidade das dimensões da cultura passam

6 Sustentando as indicações de Lacan ainda no Seminário 17 (LACAN, 1969-1970/1992). 7 Trabalharemos mais a fundo estes autores no capítulo 3.

a estar condicionadas pelo capital. Segundo a autora, a fetichização tinha como objetivo dar forma ao mundo moderno após o fim da época feudal, com novas instituições, valores e crenças – o que compreendemos como a produção de novos significantes-mestres que substituíssem as figuras de autoridade religiosas e dos sistemas monárquicos, uma vez que o S1 é o significante que intervém em uma cadeia de significantes e a ordena (LACAN, 1969- 1970/1992). Entretanto segundo Fontenelle (2006), desde o final do século XX, assistimos a uma implosão dessas formas produzidas, “um novo estágio do capitalismo marcado por aceleração e descartabilidade permanentes” (p. 42) onde as referências de outrora se enfraqueceram e as identidades tornaram-se voláteis. A autora sustenta que a publicidade e o marketing se valem justamente desse contexto – que eles próprios ajudaram a produzir - para ocupar com as marcas o lugar das antigas formas e ordenações. O espetáculo das marcas entrelaçado aos ícones e celebridades da indústria cultural, compõe a nova sociedade onde estar na imagem coincide com a própria existência, o que produz “um sujeito marcado o tempo inteiro pela necessidade da performance”, para o qual interessam “as máscaras, os disfarces, a capacidade de exercer diferentes papéis, o tempo inteiro, para poder ser captado pelo outro enquanto uma imagem de si mesmo” (p. 42). Argumentaremos adiante no capítulo 3 que as redes sociais da Internet são ferramentas sem precedentes em favor do exercício técnico de manipulação da auto-imagem endereçada ao Outro pelos sujeitos. E não seria essa condição do sujeito na contemporaneidade a mesma que leva Braunstein (2010) a apontá-lo como aquele que “atomizado e isolado pelos dispositivos que o excluem do laço social [...] aferra-se a identificações que satisfaçam sua necessidade de cumprir com algo ou com alguém” (p. 158)?

A Internet opera frequentemente como agente ou semblante que se dirige ao sujeito e lhe propõe as opções de significantes uns (S1) que o representarão mediante a criação de comunidades virtuais em que não é necessário pôr o corpo e nas quais a imagem pode ser ajustada à vontade. Ele e ela se perguntam “Quem sou?”. E a resposta é “Tu podes escolher quem és, se optas por um dos significantes de identificação que te são oferecidos Uma vez que escolhas teu S1, saberás quem és” (BRAUNSTEIN, 2010, p. 158, grifos do autor).

Interpelado pelas máquinas com perguntas como “Quem é você?” (Orkut), “O que você está fazendo?” (Twitter) ou “No que você está pensando?” (Facebook), o sujeito é convidado a depositar seus significantes em pequenos espaços vazios, quase ao modo de uma associação livre diante do silêncio do analista. Desse modo, uma quantidade infindável de informações de cunho pessoal são fornecidas pelos usuários, conhecimento que é devidamente registrado e devolvido ao internauta quando o mesmo faz pesquisas pela Internet (fenômeno conhecido

como “personalização” da busca que apresenta resultados relacionados com as informações pessoais anteriormente registradas) ou através da exposição à publicidade também “personalizada”, baseada nestes mesmos dados (PARISER, 2011). É curioso notar que há em Lacan, ainda no Seminário 17 (pouco mais de dois anos antes da conferência de Milão), a alusão – certamente irônica – à criação de uma máquina eletrônica que registrasse os ditos dos analisandos e produzisse a partir deste registro a própria resposta do analista:

O analista que escuta pode registrar muitas coisas. Com o que um contemporâneo médio é capaz de enunciar, se não esta acautelado, pode-se fazer o equivalente a uma pequena enciclopédia. Isto daria uma enormidade de claves, se estivesse registrado. Poder-se-ia mesmo, depois de construir isso, mandar fazer uma pequena máquina eletrônica. Esta, aliás, é a ideia que alguns podem ter - constroem a máquina eletrônica graças à qual o analista só tem que retirar o ticket para dar-Ihes a

resposta (LACAN, 1969-1970/1992, p. 35).

Contudo, – e aqui podemos começar a distinguir o Discurso do Analista do discurso dos mercados – ao contrário do saber insabido do psicanalista que não atua com o saber senão com a ignorância, o gadget não sabe que não sabe pois o saber (S2) que o comanda é o da ciência da programação digital, que já estipula respostas prévias e é incapaz de reconhecer atos falhos ou chistes, apenas contrassenhas. Em oposição ao manejo do psicanalista que não dá respostas nem atende à demanda do sujeito (apenas aponta para os significantes do desejo em sua singularidade radical), o objeto tecnológico se anuncia como um aparato de realização da fantasia que limita o sujeito à sua identidade de consumidor, de target, a quem resta sempre reproduzir significantes massificados mesmo que sob a máscara da diferença ou da liberdade de escolha: “tenho...”, “pareço-me a...”, “estou no rol dos...”, “sou um discípulo de...”, “um crente em...”, um membro de...”, um consumidor de...”, etc. Para Braunstein (2010), assim como ocorre no Discurso do Analista, o discurso dos mercados histericiza o outro, introduzindo o Discurso da Histérica onde o sujeito é o agente. A diferença está no fato de que o sujeito do consumo supõe um grande Outro no objeto tecnológico ao qual se dirige, um mestre capaz de produzir saber sobre suas demandas e satisfazê-las. Já no caso do psicanalista, o sujeito demanda a um suposto mestre o saber sobre seu sofrimento – lugar que o analista recusa, confrontando o analisando com seus próprios significantes, trazendo à tona o saber do inconsciente.

A resposta que se espera do objeto técnico [...] não implica, para quem faz o pedido, a necessidade nem a conveniência de uma modificação na posição subjetiva; o gadget é meramente um servente ao qual se lhe faz fazer. A demanda de análise supõe, pelo contrário, a expectativa de acabar com o sofrimento pela virtude de um

novo saber que resultará da experiência analítica e que fará do sujeito alguém distinto do que era antes (BRAUNSTEIN, 2010, p. 162).

Retomaremos o discurso dos mercados no capítulo 4, onde o articularemos com a questão dos filtros de conteúdo, presentes em sites, redes sociais e na publicidade “ultrapersonalizada” da Internet, que padronizam dados dos usuários utilizando algoritmos matemáticos.

CAPÍTULO 2: Tecnologias do desejo: as transformações dos meios de comunicação e as