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A identificação entre mercado e meios de comunicação

CAPÍTULO 3: Capitalismo, meios de comunicação e marca publicitária: as teias do

3.3. A identificação entre mercado e meios de comunicação

A identificação entre mercadoria e marca/imagem é o avanço da fusão - já apontada por Horkheimer e Adorno (1944/1985) no fim da primeira metade do século XX como característica do que os autores chamam de capitalismo tardio - entre economia e cultura. Segundo Jameson (1996), da mesma maneira, neste novo momento “pós-moderno” do capitalismo13 as fronteiras entre o mercado e os meios de comunicação tornam-se nebulosas e “os produtos vendidos no mercado transformam-se no próprio conteúdo da imagem da mídia, de modo que, por assim dizer, um mesmo referente parece prevalecer em ambas as esferas” (p. 293). E afirma:

Isso é muito diferente da situação mais primitiva, em que se anexava a uma série de sinais informativos (reportagens, folhetins, artigos) um anuncio que buscava conquistar fregueses para um produto comercial desvinculado deles. Hoje em dia, os produtos são difundidos, por assim dizer, ao longo de todo o espaço e tempo dos segmentos de entretenimento (ou até de notícias), como parte desse conteúdo, de modo que, em alguns casos bastante divulgados (sobretudo no seriado Dynasty), nem sempre fica claro quando termina o segmento da narrativa e quando começa o intervalo comercial (já que os mesmos atores também aparecem nesse segmento) (JAMESON, 1996, p. 293).

Essa interpenetração entre mercado e meios de comunicação através do conteúdo é intensificada pela natureza dos próprios produtos, em cuja hierarquia encontramos o clímax na “própria tecnologia da reprodução, que agora, é claro, estende-se muito além do clássico televisor e, em geral, passou a condensar a nova tecnologia informacional ou computacional do terceiro estagio do capitalismo” (p. 293-294). Haveria então um “bônus tecnológico de prazer, proporcionado pelos novos equipamentos e como que simbolicamente reencenado e ritualisticamente devorado a cada sessão do próprio consumo oficial da mídia” (p. 294). Tal

13 É importante aqui diferenciarmos a posição de Jameson da de teóricos frequentemente denominados “pós-

modernos” (como Lyotard ou Baudrillard), que entendem as consequências do avanço tecnológico das últimas décadas como um atestado de ruptura com o próprio modo de produção capitalista, sendo possível considerá-lo historicamente superado. Como nos alerta Camargo (2009), para Jameson essa ruptura “diz respeito a mudanças no próprio modo de produção capitalista e a pós-modernidade representa, de fato, um novo momento histórico”, porém um momento onde ela se mostra “como a lógica cultural de um novo estágio de dominação do capitalismo, o capitalismo tardio” (CAMARGO, 2009, p. 119). Nossa posição, bem como as de Adorno, Horkheimer e Jameson e dos outros autores nos quais nos baseamos no presente capítulo (RAMOS, 2010; FONTENELLE, 2002; SEVERIANO, 1999), é a de que as categorias marxianas de “mercadoria” e “valor” mantem-se necessárias para a compreensão da sociedade atual, uma vez que “há um conteúdo de dominação capitalista a ser desvelado na cultura atual, pós-moderna, que por ser um novo paradigma não é menos suspeito de dominação do que a indústria cultural” (CAMARGO, 2009, p. 120).

processo pode ser caracterizado como um novo tipo de consumo: o consumo do próprio processo de consumo, “acima e além de seu conteúdo e dos produtos comerciais imediatos” (p. 294).

Para além da imagem como forma última da reificação da mercadoria (DEBORD, 1967/1997), haveria na contemporaneidade, segundo Jameson (1996), um outro aspecto da identificação entre mercado e mídia que se daria de forma invertida: “os próprios processos narrativos e de entretenimento da televisão comercial é que, por sua vez, são reificados e transformados noutras tantas mercadorias” (p. 294). O autor cita como exemplo a “quase fórmula” narrativa das séries de televisão, a produção de estrelas e celebridades, as notícias de pessoas e acontecimentos reais toda noite nos telejornais (que se estruturam cada vez mais como os seriados narrativos). Tudo isso aponta para uma profunda modificação da esfera pública:

[...] a emergência de um novo campo de realidade da imagem, que tanto é ficcional (narrativo) quanto factual (até os personagens dos seriados são apreendidos como estrelas reais, dotadas de "nomes", com histórias externas sobre as quais se pode ler), e que agora - como a clássica "esfera da cultura" do passado - torna-se semi- autônomo e flutua acima da realidade, mas com a diferença histórica fundamental de que, no período clássico, a realidade persistia independentemente dessa "esfera cultural" sentimental e romântica, ao passo que, hoje, ela parece ter perdido esse modo de existência distinto (JAMESON, 1996, p. 295).

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Mesmo referindo-se a um período anterior ao que se reporta Jameson, para Adorno (1963/1975) a televisão tende a apagar a fronteira entre realidade e imagem. Enquanto a imagem veiculada é “tomada como uma parcela da realidade, como um acessório da casa, que se adquiriu junto com o aparelho” (p. 349), o sentido que é impresso à realidade pela imagem volta a refletir-se nela. É importante ressaltarmos aqui que, para a psicanálise lacaniana, a realidade é uma construção fantasmática, é sustentada pela fantasia como uma tela que o sujeito coloca para proteger-se do real insuportável do seu desejo. A realidade não coincide com a dimensão da verdade. Não se trata aqui, portanto, de afirmar que a imagem afasta os homens da verdade, uma vez que não é a realidade que o reconcilia com ela. A questão é que o espetáculo, enquanto relação entre pessoas mediada pelas imagens, passa a ter fins de dominação e controle social quando condiciona toda uma sociedade a funcionar a partir de sua lógica (DEBORD, 1967/1997). A análise de Kehl (2004b) vai, certamente, nesse sentido:

A substituição do espaço público pelo espaço de visibilidade televisiva, cujo poder de transmissão de imagens vem abarcando parcelas cada vez mais amplas da vida, consolidou uma espécie de ficção totalitária que articula jornalismo, entretenimento

e publicidade numa mesma sequência ininterrupta de imagens, regidas pelas leis da concorrência comercial entre os canais de televisão, e não pelas características do objeto que essas imagens buscam representar (KEHL, 2004b, p. 155, grifo do autor).

Para Fontenelle (2002), a percepção da fronteira entre o que é da ordem da realidade e o que é da ordem da ficção midiática é ainda mais enturvada pelo marketing, em sua busca por agregar um “tom de realidade” às marcas. É só lembrarmos do episódio dos “cigarros da liberdade” em Nova Iorque citado no capítulo 2, onde mulheres foram contratadas para fumar em um evento com ampla cobertura midiática, criado pelo profissional de “relações públicas” Edward Bernays como estratégia para tornar o hábito do fumo, antes restrito aos homens, aceitável socialmente também para mulheres. Fontenelle (2002) retoma então a noção de “pseudoevento” de Daniel Boorstin, que diz respeito a um acontecimento forjado com o objetivo de ser noticiado ou reproduzido. “Nesse sentido, sua ocorrência é arranjada em função do meio de divulgação ou reprodução da notícia e seu sucesso é medido pela amplitude com que é noticiado” (p. 266). Contudo, a autora cita também Neal Gabler, que considera o conceito de “pseudoevento” superado no final do século XX, uma vez que mídia e realidade estariam cada vez mais identificadas uma à outra, a ponto de qualquer acontecimento, uma vez tornado mídia, passar a fazer parte da realidade, seja ele falso ou não. Nesse contexto, tanto a imagem da marca publicitária se vale de elementos da realidade para constituir-se, quanto à própria realidade social refere-se à marca para definir ela mesma – o que aponta para o nível de poder que as marcas publicitárias exercem na sociedade atual. De maneira similar, para Jameson (1996), no atual estágio do capitalismo, quando não só as mercadorias reificam-se em imagens mas as próprias imagens dos meios de comunicação são convertidas em mercadoria, a identificação entre mídia e mercado deixa de ser meramente metafórica ou analógica e passa a ser uma realidade “literal”. Aqui, nos parece inevitável constatar a atualidade das observações de Horkheimer e Adorno (1956/1973), para quem “a ideologia e a realidade correm uma para a outra; [...] a realidade dada, à falta de outra ideologia mais convincente, converte-se em ideologia de si mesma” (p. 203). Essa “cultura da imagem”, segundo Fontenelle (2002), é uma resposta ao desenvolvimento da sociedade de massas do capitalismo, bem como “de uma evolução técnica que, desde o final do século XIX – com a fotografia, o cinema, depois a TV e, hoje, os novos meios de informação -, tornou possível a reprodução da imagem” (p. 289).

3.4. Novos meios de comunicação, publicidade e marketing no contexto do capitalismo