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unidades polilexicais

1.1 Língua e criatividade

1.1.3 A adequação à situação

A adequação à situação, o último aspeto da criatividade referido por Duarte (2001), tem em conta a adequação de um enunciado a uma determinada situação. As escolhas e decisões dependem do sujeito enunciador que interfere, de forma consciente, na criatividade do enunciado, através das suas opções individuais. Como refere a autora (2001:117):

A criatividade linguística dos falantes manifesta-se também na forma que dão aos seus enunciados em função da análise da situação em que os estão a produzir. Processos de atenuar a força ilocutória de um enunciado e eufemismos tão tipicamente usados em situações caracterizadas por algum grau de formalidade e distância entre participantes.

A seleção lexical bem como os registos selecionados pelo falante para uma determinada situação constituem também elementos que dão conta da criatividade do sujeito, como o sublinha Duarte (2001: 118):

De uma maneira geral, é igualmente a criatividade linguística que está em jogo ao seleccionarmos um dado registo ou estilo em função da situação e da nossa relação com os restantes participantes na interacção, e ao escolhermos o vocabulário que melhor se adequa ao assunto da interacção verbal.

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Analisemos, neste contexto, alguns exemplos retirados das obras de Mia Couto. Os exemplos selecionados constituem eufemismos e permitem, como refere Duarte (2001), citada anteriormente, atenuar a força ilocutória e caracterizar, em parte, a situação de comunicação.

Em UVF, o autor resume do seguinte modo a relação entre duas personagens, para ilustrar a distância “aparente” entre os representantes do estado e, neste caso, o “tradutor”:

“O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.” (UVF 19)

Essa distância é reforçada no texto pelo uso de expressões como “O fulano me fingia desconhecer” e a escolha de adjetivos como “mucoso, subserviente”, “submisso”, “arrogante” (UVF 18).

A situação de comunicação determina as escolhas do autor. Essas escolhas, como já referido, são conscientes, livres e pertencem a um único sujeito, sendo, portanto, motivadas e intencionais.

A língua de um autor é o resultado das suas opções, da sua liberdade, das suas decisões, do ato de reflexão que se realiza entre o sujeito e a língua, do conhecimento que o autor tem da língua enquanto pertença de uma comunidade e de todos os fatores que interagem na relação entre o sujeito e os falantes.

Cada língua mostra a sua pertença a um determinado autor, quer se pense em Mia Couto, Guimarães Rosa, David Mourão-Ferreira, Eça de Queirós, José Eduardo Agualusa ou outro. A especificidade da escrita de cada autor é visível no seu estilo, nas suas opções lexicais, no seu trabalho retórico sobre a língua (metáforas, metonímias…), nas transformações operadas, na criação de novas palavras ou no alargamento do sentido das palavras já existentes.40

A criatividade em língua resulta de uma ação motivada e intencional, ancorada sempre nos modelos pré-existentes e produtivos da língua. A criatividade existe em todas as ações que pressuponham uma intervenção na língua, através de qualquer tipo

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Veja-se, a título de exemplo, o excerto tirado do Milagrário pessoal de José Eduardo Agualusa, quando o autor se refere a uma “antiga linhagem de messalinas” (51) e põe na boca da personagem Bernardo “outras palavras raras para se referir às profissionais do sexo: colandrinas, ervondras, fandelírios, vulgívagas, mariposas, palomas, dissolutas, toleradas” (52), o que mostra o trabalho sobre o léxico, a história das palavras e, por conseguinte, da sociedade, a reposição de termos arcaizantes, contribuindo, assim, para fazer reviver o seu sentido. O subtítulo do 5º capítulo ilustra a criação de palavras “Uma enxurrada de neologismos – com o perdão pela redundância (…)”.

47 de alteração, em todos os níveis linguísticos – léxico, morfologia, sintaxe, fonologia – e que por sua vez transformam a própria semântica.

Cada falante, escritor, poeta, jornalista, tradutor tem as suas idiossincrasias, as suas especificidades, as suas experiências, cada um deles toma as suas decisões, escolhe um caminho linguístico e é nestas decisões conscientes que se gera a criatividade.

A criatividade re-anima a palavra, e por conseguinte os seus significados, como se a palavra possuísse uma alma e essa alma fosse de novo vivificada, através de um exercício de atualização das suas partes, isto é, dos significados de cada uma das partes. Poder-se-ia falar de um processo de deslexicalização seguido de um processo de dessemantização. A palavra é, assim, esvaziada das suas relações combinatórias e privilegiadas. Desfazem-se, através da deslexicalização, as locuções, as colocações ou outros tipos de fraseologias fixas e observa-se a palavra, enquanto elemento individual, reorganizam-se os seus constituintes, inserem-se transformações, de maneira a criar, no contexto em que vai ser utilizada, novos significados.41

Assim, a palavra (ou a fraseologia) ganha novas dimensões, transporta novas categorias, através de uma reatualização da representação do mundo. São palavras “novas” construídas a partir dos potenciais recursivos da própria língua. “As regras de formação de palavras” permitem a produção de novos itens lexicais, levando assim à renovação lexical de uma língua, como Alves (2004: 124) afirma:

O acervo lexical de todas as línguas vivas se renova. Enquanto algumas palavras deixam de ser utilizadas e tornam-se arcaicas, uma grande quantidade de unidades léxicas é criada pelos falantes de uma comunidade linguística. Da mesma maneira que a língua se renova, através de mecanismos que estão inscritos na língua, assim, também o sujeito pode interferir no processo de renovação da língua antecipando e tornando mais célere essa renovação. E, da mesma forma, também o tradutor deve intervir no processo de transformação e renovação da língua de chegada.

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A invenção de palavras pode resultar posteriormente na formação da cultura de um povo. É isso que mostra Agualusa no excerto seguinte do Milágrário Pessoal (57): “E as duas últimas? Inventou-as agora? Não, claro que não. Morança é um termo do crioulo guineense. Designa um agregado familiar. E desamparilho, em minha opinião uma das mais belas palavras do crioulo cabo-verdiano, dá nome àquela hora feliz, ao final da tarde, quando o dia cede lugar à noite, o calor esmorece, e os velhos se sentam nos passeios, fruindo o fresco e as cigarras, e vendo as moças passarem sacudindo as ancas.”

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E para concluir, observe-se na citação da autora Anna Moï42 a consciência da criatividade nas escolhas dos autores e a importância da definição de uma escrita autoral:

Comme un sculpteur choisit, pour modeler ses formes, le kaolin, la terracota ou la boue volcanique, comme un peintre peint à l’huile, à l’aquarelle ou à l’encre de Chine, comme un musicien s’épanouit dans la gamme diatonique, pentatonique ou sérielle, un écrivain travaille avec une matière première: les mots. Si je connaissais une seule langue, la question du choix d’une langue d’écriture ne se serait pas posée; j’en ai appris six. J’aurais pu malgré tout écrire dans ma langue maternelle. Cependant l’architectonique sociale confucéenne, qui infiltre la langue vietnamite et attribue à ses acteurs une place hiérarchique precise dans la société, m’importune: je n’en ai pas choisi l’idéologie et souvent je la conteste. Il me faut un matériau neutre et malléable, qui me garantisse une certaine liberté et la possibilité d’inventer des mots.43