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Os textos pós-coloniais e a criatividade linguística

Contextualização e Corpus

2.1 Os textos pós-coloniais e a criatividade linguística

Este espaço é dedicado a uma breve reflexão em torno dos textos coloniais para situar os textos em análise, isto é, as obras de Mia Couto no contexto geral da literatura pós-colonial. No entanto, remetemos para os especialistas141 uma reflexão mais cuidada e profunda, e são numerosos os que se debruçaram e se debruçam sobre as literaturas africanas ou as literaturas pós-coloniais em geral de forma mais sistemática e aprofundada. Interessa-nos perceber melhor as relações entre o contexto sociocultural e os textos literários, entre os espaços moçambicanos e os homens, entre a história e as estórias. Assim, cingir-nos-emos a uma breve apresentação de algumas temáticas que nos permitem situar os textos que constituem o corpus deste trabalho. Não se pretende trazer um discurso novo para uma área que tem uma investigação extraordinariamente rica, mas fazer incursões momentâneas que nos informem sobre as interrogações que os textos nos suscitam.

O território de Moçambique e o seu povo passaram por duas guerras longas, no tempo e no espaço, em primeiro lugar a guerra da independência, que terminou em 1974, e a guerra civil, que se prolongou por quase vinte anos, destabilizando o território de Moçambique e as consciências dos moçambicanos e que terminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992. Moçambique contou então com o apoio da ONU para o desarmamento das tropas intervenientes no conflito.

Este longo período deixou profundas feridas em todos aqueles que participaram nesta atmosfera beligerante. Mia Couto resume, numa entrevista142, o horror da guerra e a responsabilidade do escritor moçambicano perante o caos que assolou Moçambique:

O escritor moçambicano tem uma terrível responsabilidade: perante o horror da violência da desumanização, ele foi testemunha dos demônios que os preceitos morais contêm em circunstâncias normais. Ele foi sujeito de uma viagem irrepetível pelos obscuros e telúricos subsolos da humanidade. O escritor deve ser um construtor de esperança. Se não for capaz disso, de pouco valeu essa visão de caos, esse Apocalipse que Moçambique viveu.

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Cf., por exemplo, Rosário (1989), Chabal (1994), Leite (1998 e 2003), Mata (2001), Firmino (2004), Zabus (1991, 2ª edição 2007).

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127 O bem-estar das populações sofreu ataques constantes e o fim da colonização não correspondeu, pelo menos de imediato, à resposta tão esperada pelo povo moçambicano. Seguiram-se anos de reconstrução da terra e do homem moçambicanos, anos de procura de uma identidade perdida, anos de diálogo entre a tradição e a modernidade. Essa perda é retratada logo no primeiro parágrafo de TS (1992, 7ª ed. 2002: 9):

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.

É neste contexto de afirmação e de procura de identidade que a literatura moçambicana tem um papel determinante. Os autores africanos, ou pelo menos uma grande parte desses autores, legitimam a existência de uma literatura africana143, que apresenta diferenças em relação às “literaturas europeias”, através da relação intrínseca entre os cataclismos sociopolíticos e os discursos literários. África e os seus homens, os seus espaços, tradições, estórias, superstições, crenças, medos, fantasmas, habitam os textos africanos, interagem e dialogam com eles. É neste contexto de colonização e descolonização que surgem novos discursos. Leite (2003: 19) refere-se à especificidade desse discurso:

Ver em que medida esta especificidade, a “hibridez” da relação colonial portuguesa, apontada pelo autor, se dimensiona, obtusamente, no quadro das literaturas póscoloniais, na criação de novos campos literários e novos cânones, na construção das nacionalidades literárias, nas práticas da instituição literária, da educação, da edição, são porventura algumas das problemáticas a ponderar criticamente, em cada uma das literaturas nacionais da África lusófona.

As guerras deixaram sentimentos profundos e negativos – dor, sofrimento, miséria, por um lado, e, por outro, alienação, discriminação, injustiça. Estas vivências negativas fizeram emergir, da forma mais brutal, todas as dialéticas do ser humano injustiçado, encurralado no seu próprio espaço. A fuga surge como uma forma de vida e a literatura vai dar voz a essas fugas identitárias, a essas viagens estáticas, à tal procura.

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Optamos por uma designação abrangente. Deixamos para os especialistas a reflexão sobre uma terminologia mais pormenorizada. Referimo-nos, mais especificamente, às discussões em torno das designações, como por exemplo “Literatura africana de expressão portuguesa” ou “Literatura lusófona”. Cf. Leite (1998 e 2003).

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Chabal (1994: 17) salienta três aspetos que distinguem as literaturas africanas das outras literaturas: a língua, a relação entre a literatura africana e a europeia e a forte união entre cultura e literatura. O caso de Moçambique, e também o de Angola, dado o elevado grau de iliteracia das populações autóctones, e o carácter oral das suas línguas autóctones, levou a que a língua portuguesa ocupasse um lugar privilegiado na construção de uma literatura nacional, tanto no período de colonização, como na descolonização que se segue. A educação, as escolas, as universidades tinham como língua de ensino o português. A língua do colonizador impõe-se também como língua da cultura e da literatura. É através do português que é veiculada a herança oral do povo moçambicano. Como refere Leite (1998: 23), o português é a “língua oficial” que vai contribuir para a coesão nacional:

Por razões históricas, o perfil linguístico de cada país africano faz hoje coexistir pelo menos uma língua europeia, e um número variável de línguas africanas. A língua oficial tem contribuído, na maioria dos casos, para a realização de uma coesão nacional nestes países pluriétnicos. No que respeita à literatura, ela tem- se desenvolvido, enquadrada dentro desta diversidade linguística. É ainda um princípio nostálgico, idealista e essencialista, pensar em termos estáticos na recuperação de uma mundividência pré-colonial, não levando em linha de conta as transformações sofridas nestas sociedades com o colonialismo, as independências e a modernização.

No ponto seguinte, situamos Mia Couto no contexto la literatura pós-colonial, de forma a justificar a escolha do autor ou, por outras palavras, a escolha da língua, do discurso ou ainda das obras do autor no espaço plurilingue de Moçambique.