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unidades polilexicais

1.2 Criatividade e Tradução

1.2.3 Da língua aos textos

Nesta travessia por alguns textos, optámos por apresentar exemplos diversificados, tanto em português como em francês, que ilustrem a escrita específica de cada autor, visível nas escolhas subjetivas e conscientes de cada um. Pretende-se aqui ilustrar, através de experiências de escrita, a pertença autoral de cada texto. Como dizia Octavio Paz67:

Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de outro texto. Ningún texto es enteramente original porque el languaje mismo, en su esencia, es ya una traducción: primero del mundo no-verbal, después, porque cada signo y cada frase es la traducción de outro signo y de outra frase. Pero eso razonamiento puede invertirse sin perder validez: todos los textos son originales porque cada traducción es distinta. Cada traducción es, hasta cierto punto, una invención y así constituye un texto único.

Propomo-nos de seguida olhar para alguns desses textos mostrando que a identidade de cada texto é construída através da ação transformadora da língua, como o afirma Maingueneau (1993: 105) no seguinte excerto:

Qu’on écrive dans une seule langue ou dans une langue étrangère, le travail d’écriture consiste toujours à transformer sa langue en langue étrangère, à convoquer une autre langue dans sa langue, langue autre, langue de l’autre, autre langue. On joue toujours de l’écart, de la non-coïncidence, du clivage.

arqueologia, a mera acumulação de materiais, fragmentos, vestígios, também não serve para reconstruir uma imagem de um passado e de uma cultura. A analogia arqueológica tem-me servido ultimamente de referência para a minha própria teoria de tradução da poesia como um processo afim (…)”.

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A escolha dos autores e dos textos é subjetiva. São autores e textos que chamaram a nossa atenção pela “letra” que os identifica e que fazem parte do nosso universo de experiência de leitura e de tradução.

(i) David Mourão-Ferreira, « Trepadeira submersa », Amantes e outros contos. (Editorial Presença, 1989)

Foi com David Mourão-Ferreira que pela primeira vez ouvimos falar do desrespeito da “letra original” do seu conto « Trepadeira submersa »68. O conto narra a relação entre duas personagens, uma professora, Rita, e uma outra personagem que só é identificada no final do conto em que surge um « ambas », que é sua aluna. A ausência da identificação do género acarreta ambiguidades e interpretações para o sentido geral da narrativa que o « ambas » resolverá posteriormente. Assim, uma simples questão de género, constitui um elemento fundamental para a “ letra”, ou a essência deste texto. O autor contava que quando foi contactado por uma editora belga para a tradução para francês do livro, pediu que lhe fosse enviada uma primeira versão do conto “Trepadeira submersa”. Ao receber a tradução do conto, e ao ler o início em francês, não autorizou a publicação da tradução do conto por essa editora. A tradutora tinha « desrespeitado a letra do original », ao desvendar o género das duas personagens, através do uso do « passé composé » e do acordo do particípio passado com o verbo « être ».69

(ii) Zazie dans le métro de Raymond Queneau (Gallimard, 1972)

É com a palavra – Doukipudonktan – que se inicia o livro de Raymond Queneau70, que ilustra uma das particularidades da escrita do autor – a oralização da escrita e o humor que lhe é característico. Apagar essa oralização, visível nos frequentes jogos fonéticos utilizados e fabricados, é retirar ao texto a sua pertença autoral, aquilo que caracteriza o sujeito e a sua experiência da língua, através das idiossincrasias da sua escrita.

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No início dos anos 90 existia na FLUL o Curso de Especialização em Tradução. David Mourão- Ferreira animou uma sessão sobre a tradução do seu conto “Trepadeira submersa” in Amantes e outros

Contos, num dos seminários por nós lecionados. 69

Posteriormente, o texto foi traduzido (por M.-C. Vromans e Françoise Laye) e publicado em França, sob o título, Soleils masqués, 1991, Ed. Viviane Hamy. Neste caso, as tradutoras preservaram a ambiguidade de género que apenas é desvendada no final com a expressão “entre toutes les deux”.

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Raymond Queneau, como já referido na nota de rodapé nº 12, pertence ao grupo OuLiPo (acrónimo de

Ouvroir de littérature potentielle), juntamente com outros autores e matemáticos, por exemplo G. Pérec e

M. Duchamp, que se definem como « rats qui construisent eux-mêmes le labyrinthe dont ils se proposent de sortir» (cf. OuLiPo, Abrégé de littérature potentielle, p. 6). O conceito de contraintes está diretamente ligado à noção de criatividade.

59 Doukipudonktan representa a escrita fonética de «D’où qui pue donc tant ». É através de jogos de linguagem que o autor transpõe a oralidade para a sua escrita.

(iii) Romance da raposa de Aquilino Ribeiro (Bertrand Editora, edição de 2002)

Aquilino Ribeiro, um autor emblemático e criativo, virtuoso nos contornos estilísticos, oferece-nos neste texto infantil um trecho de uma vivacidade lexical extraordinária (p. 18). Destacam-se os seguintes exemplos : o uso morfossintático – «fechar a noite» ; a adjetivação – «lua bochechuda e enfarruscada» ; a composicionalidade – «a saia de açafrão»; a personificação das nuvens – «as nuvens enfarruscavam»:

Fechara a noite, mas por cima dos altos pinheiros bailava a lua cheia, muito bochechuda, ainda que enfarruscada. E quem a enfarruscava eram as nuvens que iam passando e peneirando, uma chuvinha miudinha molha-tolos, que a ela molhava por necessidade, que não por tola. O pior é que já levava encharcados os botins amarelos e a saia de açafrão.

(iv) A Caverna de José Saramago (Editorial Caminho, 2000)

Saramago molda a relação entre os discursos - direto, indireto e indireto livre – utilizando a sua própria representação e diacríticos. A pontuação é em Saramago uma marca da sua subjetividade, como se pode observar no excerto abaixo transcrito (p. 77):

A Cipriano Algor afigurou-se-lhe de mau agoiro o convite, já estava a ouvir o genro a anunciar, pela centésima vez, que iriam viver para o Centro logo que alcançasse a sua promoção a guarda residente, Ainda acabaremos os três num cartaz daqueles, pensou, para casal jovem já têm a Marta e o marido, o avô seria eu se fossem capazes de convencer-me, avó não há, morreu há três anos, e por enquanto faltam os netos (…).

(v) Les revenentes de G. Pérec (Julliard, 1972)

Pérec pertence, tal como Queneau, ao grupo OuLiPo. O desafio de Pérec foi de escrever um romance em que utilizasse apenas a vogal « e ». Para isso, teve de recorrer a várias estratégias de ordem estilística, sintática, fonética e morfológica. E a escrita transforma-se numa travessia fonética para a construção do sentido.

Me pendre? Mets je ne cherche le décès!!

- Qe cette Excellence reste serène! Je te pends et je te dépends! Entre temps, z'ètes le grend Pen et me prenez.

- C'est vré? Je bende?

- Tels les mecs près de Trézène.

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qe je le feré!

- Ne le regretterez, Excellence, je t'en fé le serment, et même le serrement. Et Estelle lèche tendrement le membre négleegent et sédentère de l'Evêqe et entreprend de le pendre. Mets ce n'est tellement thésée.

- Hé, les mecs et les nenettes, demende Estelle, venez m'éder! (vi) Alberto Caeiro, “Guardador de rebanhos”

No poema de Alberto Caeiro o corpo é repensado em função dos cinco sentidos, numa redistribuição subjetiva do pensamento e numa reinterpretação das sensações.

Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

A travessia pela escrita autoral poderia continuar à descoberta da subjetividade de cada artesão da escrita que nela investe, transformando a matéria abstrata, dando-lhe forma e vida, apropriando-se dela, incutindo-lhe novas formas de representação da realidade, criando novos campos ficcionais. A escrita funciona como um espaço único e indefinido para aquele que escreve, como o afirma Gauvin (2004: 86):

Le lieu par excellence d’un espace rêvé, utopique ou atopique, avec tout ce que cette projection dans un ailleurs indéfini peut avoir de paradoxal pour qui fait profession d’écrire.

Pretende-se olhar para a escrita, despertar para a variedade de formas de representação da escrita, olhar para a «terracota» já moldada pelas mãos de cada sujeito, sentir que é essa variedade que constitui a realidade da língua, transposta a discursos que pertencem a um determinado sujeito e que é essa língua-discurso que será objeto da tradução e que trará desafios ao tradutor, como o sugere no Prefácio do livro Sagarana o tradutor francês de Guimarães Rosa :

Nous avons jouté, joué, cherchant dans le défi verbal les reflets en français des éclats fulgurances et mystères de la langue de João Guimarães Rosa, mais aussi - téméraire projet – les échos des «archétypes » que celui-ci voulait « traduire » dans son écriture.71

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61 E Pym (1998: 161) propõe um tradutor de carne e osso para traduzir esta língua que tem também ela um corpo :

I refer to people with flesh-andblood bodies. If you prick them, they bleed. Um texto constitui um elemento original, único e autónomo. Assim, também em tradução, o mesmo texto deveria preservar as mesmas propriedades: originalidade, unicidade e autonomia. Assim o entende Haroldo de Campos (1992: 35) ao denominar o seu projeto de tradução – a transcriação. A ideia subjacente é guardar na língua da tradução a autonomia do texto traduzido, ao mesmo nível do original.

Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta à recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma.

Em resumo, poder-se-ia afirmar a materialidade da língua através da leitura do original. Essa materialidade corresponde à “letra” bermaniana, que emerge das escolhas livres, avaliadas tendo em conta a língua enquanto campo abstrato no qual cada sujeito constrói a sua própria identidade linguística.

Existe uma variedade infinda de procedimentos avaliativos que denotam a presença do sujeito no seu texto, que, de certa forma, inscrevem na língua, enquanto experiência discursiva pontual, a sua marca, agindo e transformando a materialidade física da língua. Estamos perante a “letra” de Berman. O conjunto dos traços constitui a “letra” de cada autor, i.e., os traços específicos que caracterizam a escrita de cada autor. E como reconhecer um determinado processo de escrita? É certamente através das opções linguísticas que o sujeito faz que ele constrói a sua relação com a língua. A título de exemplo poder-se-ia enunciar os seguintes procedimentos:

sistematismos; homogeneidade; heterogeneidade; coerência; pontuação; combinatórias lexicais; modalização; sintaxe; léxico; tipos de frases; tipos de discursos; ritmo, prosódia, oralidades; figuras de retórica; topologia da escrita.

Traduzir é sempre um processo de reescrita do texto original, como o afirmou Lefevere (1992: xi), já citado no ponto 1.2.1 – Da língua à transculturalidade. O processo de reescrita é também um processo de inovação literária, cultural e social, pois através da tradução surgem novos conceitos e novas realidades. Por outro lado, a

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reescrita é também uma manipulação e uma negociação constantes. Acrescentamos que toda a tradução é também um processo de inovação linguística.

Recusa-se a ideia de que um texto possa ser normalizado ou neutralizado. Wuilmart (2007: 391) fala de “nivelamento”72 do texto literário e critica o tradutor que se deixa aprisionar nas fronteiras das línguas-alvo. Sugere que o tradutor se liberte da língua para que as portas da alteridade se abram. Cada processo de escrita, no original, é um processo criativo, como diz a autora:

L’auteur ne construit sa parole qu’en s’écartant de la norme, en retournant à l’étymologie, em bouleversant la syntaxe, en jouant sur les connotations multiples.

A originalidade de cada um reside na capacidade de esculpir na língua um novo caminho, diferente de todos os outros, mas ao mesmo tempo igual a todos os outros na sua essência. A escrita constitui um objeto dinâmico e é um meio flexível onde é possível agir, transformar, subverter, recriar.

Os escritores, com as suas palavras que agem, sulcam as paredes da língua, ornamentando-as e transformando-as em paredes outras onde caibam outras palavras ou outros discursos. Os novos sulcos abertos mostram um outro pulsar da língua, construído sobre o já existente, utilizando os mesmos objetos mas criando novas associações, novos sentidos e novas realidades. A língua é ação, o texto é ação, o discurso é ação. Os escritores estão num corpo a corpo com o material flutuante que é a língua e que lhes permite inovar e diferenciar-se dos outros, como transparece do excerto de Casanova (1999: 348):

C’est dans leur affrontement avec la question de la langue que les écrivains des espaces excentriques ont l’occasion de déployer l’univers complet des stratégies par lesquelles s’affirment les différences littéraires. La langue est l’enjeu majeur des luttes et des rivalités distinctives: elle est la ressource spécifique avec ou contre laquelle vont s’inventer les solutions à la domination littéraire, le seul véritable matériau des écrivains permettant les innovations les plus spécifiques.

O tradutor deve libertar-se da língua-alvo como o autor se libertou ao escrever o texto original da língua-fonte. O mesmo processo criativo deve ser recuperado pelo leitor/tradutor. É, tanto para o autor como para o tradutor, um ato de liberdade.

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63 Traduzir deve recusar a normalização, a neutralização. Tal como uma paisagem é constituída por diferentes relevos, o texto vai alternando o seu relevo, fazendo surgir ritmos diferentes, metáforas várias, percursos, mais ou menos sinuosos, marcados pelos jogos entre o tópico e o rema, pela maneira como a sintaxe se “enforma” e “enfoca” na construção do sentido, ou melhor, dos sentidos dos textos.

Um texto pode ser comparado a uma paisagem em que o relevo se altera em função do olhar do sujeito, do seu posicionamento geográfico, da hora dia em que observa a paisagem, da forma como chegou à paisagem, das vielas que desembocam em sítios inóspitos ou de cortar a respiração, às autoestradas que nos roubam a paisagem diversificada e a tornam mais monocromática e neutralizam, de certa maneira, as diferenças.

Projetar um passeio é como projetar a leitura-tradução de um livro. Iniciar esse passeio é iniciar a leitura de um texto. A descoberta far-se-á a par e passo, num processo dinâmico e construtor, de sentimentos que se vão alicerçando nas descobertas que emergem das paisagens da obra, das emoções que afloram das palavras.

Como na paisagem e nos percursos que se escolhem para descobrir, também no texto literário, várias são as escolhas que nos permitem abordá-lo e captar o que de essencial ele encerra.

A paisagem alterna com o olhar, provocando uma “interanimação”, tal como a obra se “interanima” na relação com o leitor/tradutor, penetrando nos veios sinuosos do texto, escavando a matéria do texto, substituindo, criando temporariamente novos paradigmas, rejeitando outros, inventando outros, acreditando que o texto é feito de matéria dinâmica e consciente e o trabalho do tradutor deve também reger-se por uma reflexão emotiva mas consciente.

O tradutor-viajante percorre o texto à procura do Outro, do estranho, do estrangeiro; o tradutor-viajante alcança o texto tal qual um forasteiro que entra nas fronteiras do outro, misturando-se com as alteridades do outro, condicionando o outro e a sua tradução.

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