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Contextualização e Corpus

2.3 Da oralidade à hibridez na obra de Mia Couto

Iniciemos agora uma nova viagem pelas obras de Mia Couto para desta vez destacar alguns aspetos que nos permitam caracterizar os seus textos como textos pós- coloniais. Cingir-nos-emos, mais especificamente, a aspetos ligados à oralidade. É o próprio MC que afirma, ao falar do continente africano, que o “continente é o resultado de diversidades e mestiçagens”150

. Interessa-nos agora ir ao encontro das vozes que emergem da África plural.

 A cultura oral no texto pós-colonial

Poder-se-ia dizer que é próprio da natureza africana, da essência de África, do sentido dos próprios africanos, a pertença a uma cultura oral que resulta das relações inter e intracomunidades e das relações que se tecem com o universo e com os seus representantes. O texto literário constrói-se nessa relação com a cultura oriunda das comunidades autóctones. Paula Chiziane151 refere a dificuldade que sente ao escrever em português e descreve-se como sendo “uma escritora de línguas africanas”:

Posso dizer que a oralidade é o elo mais forte da minha escrita. Para mim a oralidade dá mais dinâmica à palavra. Não gosto da palavra escrita que não se

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Couto , 2005: 60.

151 In

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pode ouvir. Para mim essa história de se ser bilingue, ou trilingue, ter uma cultura africana e escrever numa língua europeia é um grande dilema. Porque muitas das ideias que eu tenho, as ideias mais belas e mais profundas, tenho-as na língua em que as coisas me foram contadas... Eu não quero escrever em português, não estou interessada em ser uma escritora de língua portuguesa, estou interessada em ser uma escritora africana de expressão portuguesa. Ao querer ser uma escritora de expressão portuguesa eu tenho esses problemas, porque eu não consigo traduzir directamente as coisas como elas são para uma outra língua sem ser a minha. Tenho que recriar a língua, e neste processo de recriação muitos valores se perdem.

A autora mostra a necessidade de intervir na língua portuguesa, transformando- a, de forma a fazer caber nela as “coisas” que não se podem “traduzir literalmente”.

Leite (1999: 8) refere a miscigenação e a função de ‘contador de estórias” de Mia Couto e o diálogo que se estabelece entre o presente e o passado, entre o campo e a cidade, a realidade e a ficção, entre as línguas que se entrechocam nos mesmos espaços e a tudo isto acrescenta a criatividade do autor, o seu cunho pessoal, as suas “escrevências”.

Mia Couto, poeta, contador de estórias, retoma a herança linguístico-literária dos mais velhos, dos diversos falares da rua, urbanos, suburbanos, do campo, e acrescenta-lhes as suas “imaginâncias” pessoais, a “imagináutica” “escutante” de uma “escrevência” “inocorrente” e “lumbrativa”.

Mia Couto homenageia o povo moçambicano dando-lhe voz, através das suas tradições, das suas “estórias”, da sua natureza, onde a beleza contrasta com a terra- prisão, cheia de “minas” prontas a rebentar com o homem, em autêntica impunidade.

Em O Último Voo do Flamingo (70), Temporina ensina o italiano Massimo a andar. É um saber ancestral, que vem da realidade da guerra. Massimo, que vem da Europa, não compreende e pensa ser uma brincadeira.

- Andei olhando você. Desculpa, Massimo, mas você não sabe andar. - Como não sei andar?

- Não sabe pisar. Não sabe andar neste chão. Venha aqui: lhe vou ensinar a caminhar.

Mas não se tratava de uma brincadeira mas de aprender a andar sobre um terreno minado: “pise como quem ama, pise como se fosse um peito de mulher” (UVF 70), adverte Temporina. Este pequeno diálogo ilustra bem a diferença entre os dois mundos, entre a África e a Europa.

135 A cultura oral está presente em todas obras, através de histórias que se encaixam em outras histórias e constroem a trama plural da obra. E a cultura desse povo desafia o diálogo entre a vida e a morte, como por exemplo em A Varanda do Frangipani.

Deitado no meu leito, chamava os outros velhos para lhes contar um pedaço de minha história. Meus companheiros conheciam o perigo mortal daqueles relatos. No final de um trecho, eu podia ser abocanhado pela morte. Mesmo assim me pediam que prosseguisse minhas narrações. (VF 36)

A espiritualidade do povo moçambicano também se reflete na cultura oral e nas interações entre as personagens: “Quero lá saber que língua fala o teu demónio.” (VF 37), ou “O espírito fala português” (VF 38).

MC (2005: 123) refere isso mesmo na citação abaixo transcrita. O diálogo institui-se também com os mortos, pertence à espiritualidade do povo que habita as terras africanas.

O ser de um continente que ainda escuta (África está disponível para conversar até com os mortos) (...) trouxe um estar mais atento a essas outras coisas que parecem estar para além da ciência. Não temos que acreditar nessas ‘outras coisas’. Temos apenas que estar disponíveis.

Em VF o autor põe em cena o diálogo entre os mortos e os vivos. O narrador é Ermelindo Mucanga, morto na altura da Independência. É a personagem central desta narrativa que ficou sob a forma de um “xipoco”, isto é, um fantasma que vive no frangipani da Fortaleza de S. Nicolau, como já foi referido.

Como não me apropriaram funeral fiquei em estado de xipoco, essas almas que vagueiam de paradeiro em desparadeiro. Sem ter sido cerimoniado acabei um morto desencontrado da sua morte. Não ascenderei nunca ao estado de xicuembro, que são os defuntos definitivos, com direito a serem chamados e amados pelos vivos. (VF 12)

A ficção e realidade, a verdade e a mentira, são elementos constantes desta cultura e das histórias ligadas aos lugares. É a imaginação fértil de um povo que interrogava a sua própria essência:

Navaia tirava estória da sua própria imaginação? Houvesse ou não uma inventada história, o certo é que aquele mar não dava conselho para viagem. A história da jangada era, afinal, verdadeira? (VF 45)

Em A Varanda do Frangipani, obra tomada como exemplo, poder-se-ia construir o paradigma da cultura oral através da seleção lexical. É interessante verificar o recurso

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à categoria discursiva da fala, como ilustram os exemplos abaixo transcritos, retirados do quarto capítulo152:

“Escutavam-se as gaivotas” (VF 42)

“Não tardaria a ouvirem-se os choris-choris, esses passaritos que chamam pela maré cheia.” (VF 42)

“eram os tcho-tchó-tchós que ordenavam” (VF 42) “O barulho das ondas o ajudava a pensar” (VF 42) “Marta se calou” (VF 42)

“Por fim, acedeu a falar” (VF 42) “No aviso dela” (VF 43)

“Deixasse tudo quieto, mesmo silêncios” (VF 43) “lhe pedira que escutasse o mar” (VF 43)

“lhe haveriam de chegar os gritos humanos” (VF 43) “Ontem me pediram para ouvir” (VF 43)

“O que o velho dissera” (VF 43)

“o morto grita o nome do assassino” (VF 43)

“o inspector lembrava as palavras da enfermeira” (VF 44) “Navaia lhe contara uma história.” (VF 44)

“Acreditou ouvir reais vozes junto à praia.” (VF 45) “Esse barulho não são as pessoas.” (VF 45)

“Ficaram como sentinelas silenciosas, junto à Fortaleza.” (VF 45) “a entoar em surdina uma antiga canção de embalar.” (VF 45) “Uma mão lhe chamava à realidade” (VF 45)

“Ficavam assim em silêncio.” (VF 47)

“se internando num silêncio demorado. Depois falou.” (VF 46) “A confissão do velho português” (VF 47)

Assim, as seguintes palavras – escutar, ouvir, chamar, ordenar, barulho, pensar, calar, falar, aviso, silêncio, grito e gritar, dizer, palavras, contar, história, vozes, entoar, surdina, canção de embalar, confissão – constituem elementos de uma mesma cadeia semântica e ilustram a oralidade da cultura em análise.

 Da guerra à esperança

Os temas selecionados ilustram o recurso às realidades do povo. A guerra e as consequências que daí advêm ocupam um espaço predominante. As misérias da guerra estão documentadas em Terra Sonâmbula. O livro abre sobre o desespero da viagem que se segue “a guerra tinha morto a estrada” (TS 9). As personagens, o velho Tuahir e o jovem Muidinga, “murchos e desesperançados” (TS 10), fogem da guerra civil e dos “bandos” ou “bandidos armados”. Selecionam como espaço um “machimbombo”, calcinado e cheio de corpos carbonizados, restos de uma tragédia ainda em curso. Mas é

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Para facilitar a leitura, marcámos a negro as palavras que mais diretamente se ligam à categoria discursiva da fala.

137 também nesta paisagem apocalíptica que encontram alguma esperança nos diários de Kindzu.

A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos.153 A escrita, através desses diários, dá força à espiritualidade desse povo, na figura dos “naparamas”, guerreiros abençoados pelos feiticeiros, os únicos capazes de destruir os guerrilheiros. Acentua a importância das estórias e das suas oralidades e, ao mesmo tempo, a crença e a esperança que assolam o imaginário, como realça a última página de TS.

Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez.154

É também a dialética entre a morte e o renascer que surge em A Varanda do Frangipani. A Fortaleza surge como simbolizando essas dialéticas. Como refere Rothwell (2004: 38):

Couto, at times, distorts the unity between the two and, in the process, foregrounds the obfuscating function inherent in any language system. The most obvious example is his treatment of the narrative’s location – the “fortaleza“, or fortress, at São Nicolau – which is both a signifier that changes signifieds and a signified that changes signifiers.

A Fortaleza de São Nicolau simboliza a guerra e a avassaladora destruição que deixou atrás de si. Na obra de Mia Couto funciona como asilo para velhos. A trama superficial – investigação de um crime – cruza-se com um crime contra a humanidade, contra o povo de Moçambique –, a destruição das memórias e das tradições do povo moçambicano levadas a cabo pela colonização e pela guerra da independência.

Mas existe uma esperança - uma “magrita frangipaneira” que recebe o “morto” do sonho ou o “sonho do morto”. E existe também uma varanda que preserva a memória de tempos idos, reconstruindo a história do espaço que ilustra a polivalência

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Terra Sonâmbula, p. 14.

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A realidade da guerra não destrói a magia da vida e do reencontro. Depois da guerra fica a esperança que resulta da capacidade de o ser humano ser capaz de se reconstruir e de se reencontrar nos espaços putrificados que resultaram da guerra. É um renascimento que floresce da poesia das palavras e das memórias genuínas que se desencadeiam quando a realidade ofusca a felicidade. É o remédio contra a tempestade que “ribombeia” e faz estremecer as entranhas de Moçambique.

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dos espaços e ao mesmo tempo regista a história do povo de Moçambique. E aqui vemos o papel da literatura e de MC enquanto “contador de estórias” e de histórias.

[A varanda] já assistiu a muita história. Por aquele terraço escoaram escravos, marfins e panos. (...). Nos fins do tempo colonial, se entendeu construir uma prisão para encerrar os revolucionários que combatiam contra os portugueses. Depois da Independência ali se improvisou um asilo para velhos. (VF 13)

As memórias da varanda condensam as memórias do povo e ao mesmo tempo a destruição das próprias estórias através da destruição da identidade dos próprios espaços. Veja-se como a Fortaleza, em poucas linhas, preenche uma história de muitos anos e recupera funções diferentes.

Padilha, citada em Rothwell (2004: 170), argumenta que o “postocolonialism brings us answers” e são os texto de autores como Mia Couto que nos trazem respostas, que nos elucidam sobre a realidade de África.

Couto’s use of dreams as a mechanism to imagine a better tomorrow and, simultaneously, to come to terms with the horrors of a previous era, is a strategy founded on the temporal fusion of past with future (…).

Os autores constroem a esperança num outro amanhã, alicerçado no passado, forjado nesse passado, e na relação desse passado com o presente. É através dessa dialogia que se pode construir um mundo novo.

 Das tradições orais ao provérbio – a voz proverbial

A predominância da oralidade no grande continente africano tem a ver com a realidade do espaço, como já referimos, com condições históricas, sociais e políticas e com a própria identidade africana. As tradições orais ocupam, nas obras de Mia Couto, um lugar de referência e constituem veículos de saberes passados que se entrelaçam com o presente e o futuro.

Os provérbios representam, desde a Antiguidade, pedaços de discursos ancestrais e reconhecidos como tal, condensando matrizes de saber que se propagam de geração em geração. É o saber dos mais velhos que se cristaliza em fórmulas, é a

139 experiência de vida, material e espiritual, que passa para os mais novos através de uma forma concisa que utiliza estratégias que facilitam a memorização155.

O provérbio ganha vida no discurso, através do uso, e só aí retoma o seu valor discursivo e atualiza o seu verdadeiro sentido. A ausência de uso de um determinado provérbio num determinado período de tempo, mais ou menos longo, poderia levar ao seu desaparecimento. No entanto, a existência de dicionários e outras obras lexicográficas, bem como a investigação em paremiologia preservam a vida destas estruturas na tessitura linguística. Existem, todavia, outras formas para manter vivas as parémias. Destacamos, entre outras, a língua publicitária156 – “O sol nasce igual para todos. A sombra é que pode ser melhor para alguns” (Pestana, Hotels & Resorts) – e a língua literária157, que ilustramos com exemplos de Mia Couto – “saber de quantas cascas se faz um ovo” (C 76), “antes comprometido que com o peru metido” (C 127), “contra argumentos não há factos” (C 179).

A obra de MC é rica em linguagem proverbial. O provérbio desempenha, ao longo de cada narrativa, funções identitárias entre os vários espaços e as personagens que se cruzam na malha da narrativa. Estas estruturas enraízam ainda mais a pertença identitária e linguística e acentuam os traços entre a ficção e a realidade158, entre a história e a estória, entre as vivências e as memórias.

A linguagem proverbial assume na escrita de MC formas múltiplas, formas essas inerentes ao próprio conceito de provérbio. O provérbio ocupa, hoje em dia, um lugar cada vez mais importante na investigação159 linguística e nas suas diversas disciplinas.

155

Refira-se, por exemplo, a construção binária do provérbio, o recurso a aliterações ou a jogos fónicos, a existência de uma forma discursiva completa que se encaixa num outro discurso e, entre outros, a rima e o ritmo.

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Referimo-nos aqui ao uso do provérbio pela publicidade, sobretudo na sua forma desconstruída. Cf. Grunig (1990).

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Proust (1954 : 781-782), em Le temps retrouvé dá conta da profusão de fraseologias: “D’abord avez vous remarqué ce pullulement d’expressions nouvelles qui, quand elles ont fini par s’user à force d’être employées tous les jours (...), sont immédiatement remplacées par d’autres lieux communs? Autrefois je me rappelle que vous vous amusiez à noter ces modes de langage qui apparaissaient, se maintenaient, puis disparaissaient: ‘Lui qui sème le vent récolte la tempête, les chiens aboient, la caravane passe, travailler pour le roi de Prusse’. Hé bien, depuis, hélas! que j’en ai vu mourir!”

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A tradição oral moçambicana é rica em linguagem proverbial. Cf. “Os provérbios angolanos na literatura oral” de Luís Kandjimbo, in http://www.angola-saiago.net. Exemplos de provérbios registados: “o osso não é deitado fora da carne, a pessoa não é sepultada com vida”, “a pele humana caracteriza as pessoas, a pele dos animais tem um nome diferente”, “secou a nascente do rio, as pessoas mudam de lugar”, “alveja-se o animal, não se apedreja a pessoa”.

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Cf. os estudos de paremiologia e a investigação desenvolvida nessa área. A título de exemplo referimos a Associação Internacional de Paremiologia (AIP) que existe desde 2008 e que se propõe investir na realização de estudos, de conferências internacionais e de investigação paremiológica, com

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O carácter diverso e multilingue, a interação entre o monolinguismo e o polilinguismo, os jogos linguísticos – fonéticos, fonológicos, semânticos, sintáticos, morfológicos – interessam a comunidade linguística.

Esta diversidade surge sempre que se fala sobre a oralidade do provérbio e a sua função no discurso oral. Como o sugerem Visetti e Cadiot (2006: 346), o provérbio “oscila” entre uma noção e o seu contrário, entre uma realidade e outra que lhe é oposta, entre uma verdade ou outra:

Il [le proverbe] oscile entre disposition et norme, habitude et obligation, routine et rite, perception et croyance, cliché et prescriptions, figement de la norme et réouverture de l’interprétation.

No entanto, é a escrita que lhes dá voz e projeção, que surge como o instrumento necessário para a expansão das oralidades do povo moçambicano e da cultura que daí emana. A identidade do povo surge recriada através de múltiplas formas de expressão. Destacaremos, para ilustrar essas formas populares, o provérbio e as “estórias”, contadas por interpostas pessoas. As duas variantes discursivas representam as vozes do povo de Moçambique e ajudam a reconstruir os valores que as guerras não conseguiram derrubar e que despertam as memórias dos homens.

O provérbio, ou a linguagem proverbial, pode ser definido no sentido lato por uma estrutura polilexical que tem valor de frase genérica e uma moral de verdade geral e que apresenta um carácter fixo e anónimo160, tem nas obras de MC um lugar de destaque e de verdade assumida e partilhada.

MC tem consciência da importância dos provérbios nas suas obras, tanto na forma-padrão, como “transgredindo” a forma-padrão:

No meu ofício de escritor servi-me imenso de provérbios. Não apenas os reproduzi como trabalhei na sua desconstrução com o intento de os tomar como entidades móveis que não devem ser sacralizadas. Quase sempre me deixei embalar na poesia dessa inventividade mas creio nunca ter sucumbido perante a tentação de os folclorizar.161

sede em Tavira, o número crescente de colóquios, congressos, conferências tendo por tema a paremiologia e a fraseologia e o número de publicações nessa mesma área

160

Cf. as seguintes reflexões propostas por Kleiber (2000: 41). « Les proverbes ne sont pas des phrases épisodiques : ils renvoient, (...) a ‘un certain état de choses, général, habituel ou courant’. Leur domaine, ce n’est pas celui de la contingence, de la factualité, de l’accidentel des occurrences spécifiques d’individus ou d’événements, mais bien celui du niveau gnomique (...) des phrases génériques, où les relations exprimées sont, même s’il subsiste un lien indirect, devenues en quelque sorte indépendantes des situations particulières. »

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“Saudação improverbial do escritor moçambicano Mia Couto”, Atas do 3º Colóquio Interdisciplinar sobre Provérbios. Tavira, 8-15 Nov. 2009, p. 564. In http://www.aip-iap.org/pt/publications.

141 Vejamos algumas das ocorrências de provérbios que ilustram as oralidades nas obras de MC e suas respetivas funções discursivas. No livro UVF, de certa maneira, alguma da linguagem proverbial utilizada como epígrafe na introdução dos capítulos perde o seu valor de anonimato ou é circunscrita a um determinado espaço, neste caso a cidade em que ocorre a história, Tizangara, ou a determinadas personagens (Cf. por exemplo a personagem de Sulplício em que é a própria fala da personagem que se torna proverbial, UVF 213).

Uns sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver. Outros não sabem e acreditam. Esses não vêem mais que um cego. (Provérbio de Tizangara) (UVF 57)

O macaco ficou maluco de espreitar por trás do espelho. (Provérbio) (UVF 91) As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão. (Provérbio africano) (UVF 121)

Para além dos provérbios, o autor faz ainda apelo a outro tipo de estruturas que denomina “dito”, “crença” “depoimento” ou “palavras de”, ilustradas com os exemplos que seguem.

O mundo não é o que existe, mas o que acontece. (Dito de Tizangara) (UVF 15) O que não pode florir no momento certo acaba por explodir depois. (Outro dito de Tizangara) (UVF 23)

Deus me deu tarefa de morrer. Nunca cumpri. Agora, porém, já aprendi a obediência. (Palavras de Dona Hortência) (UVF 45)

Os factos só são verdadeiros depois de serem inventados. (Crença de Tizangara) (UVF 111)

A vida é um beijo doce em boca amarga. (Depoimento do feiticeiro) (UVF 145)

 A “hibridez”, ou o “hibridismo”, cultural e linguística

Os textos de Mia Couto são textos que se apresentam como textos híbridos, tanto a nível linguístico como cultural, onde as línguas entram em diálogo umas com as outras, transportando assim a hibridez cultural. Esta hibridez que invade o Continente Africano constitui um elemento importante dos textos pós-coloniais como afirma Afonso (2007: 549):

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A hibridez surge como a característica fundamental da estética pós-colonial, originando interacções entre sistemas linguísticos, religiões bíblicas e crenças animistas, imaginários e cosmogonias que impregnam o racionalismo ocidental do poder sobrenatural dos espíritos.

Glissant (1995: 45) realça a importância dos imaginários das línguas e a impregnação necessária que implica obrigatoriamente o contacto entre línguas:

On est obligé de tenir compte des imaginaires des langues (…). Quand on voit