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A neologia de autor: esboço de uma proposta de classificação

a língua de Mia Couto

3.5 O artesão da palavra e a reinvenção da linguagem

3.5.1 A neologia de autor: esboço de uma proposta de classificação

O estudo da neologia de um autor permite um estudo mais profundo da cultura inerente ao seu texto, levando, deste modo, a uma melhor compreensão do texto e logo da tradução propriamente dita. Uma parte significativa dos neologismos recenseados na obra de MC é criada pelo autor.

Partindo da definição de neologia de Alves (2007: 78), que considera “neológicas as unidades lexicais (formalmente novas ou que recebem novo significado) criado em um determinado momento histórico-social, que, em função de diversas razões (necessidade de nomeação de objetos ou factos novos, sobretudo), determina essa criação”, as criações de Mia Couto não correspondem a verdadeiros neologismos, na medida em que cumprem uma necessidade literária e efémera.224 Da mesma forma, Guilbert (1975: 31), ao falar da inclusão das regras de produção no sistema social da língua, afasta parcialmente algumas225 criações do tipo das de Mia Couto do conceito de neologia. «La néologie lexicale se définit par la possibilité de création de nouvelles unités lexicales, en vertu de règles de productions incluses dans le système lexical».

No caso de Mia Couto estamos perante a criação literária, que se apresenta, por vezes, marginal em relação ao sistema da língua. O autor procura uma maior expressividade para a língua que vai transmitir as suas mensagens.226

Substituímos o termo de neologia/neologismo por criatividade, eventualmente neológica, mas sabendo de antemão que as palavras criadas pelo autor, se enquadram dentro da neologia estilística ou criatividade de autor e que estas palavras, em grande

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É muito provável que a maioria dessas palavras nunca venha a fazer parte do léxico da língua. No entanto, seguem os mesmos princípios de formação formal dos neologismos que serão aceites pela língua. A esse respeito, Villalva (2008: 51) diz que “Não existe uma só maneira de gerar neologismos, alguns são palavras inventadas ou criadas, de forma mais ou menos aleatória, a partir de palavras já existentes; outros são palavras introduzidas na língua por empréstimo a outras línguas; e outros ainda são palavras formadas a partir de recursos morfológicos disponíveis na língua”.

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Algumas das novas palavras criadas por MC não obedecem aos modelos já existentes na língua, como pode ser ilustrado pelas amálgamas. Estes exemplos não se encaixam nos modelos morfológicos já existentes em português.

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Como afirmam Pruvost e Sablayrolles (2003: 4), “les mots sont nés de la volonté de représenter les choses, les idées et les faits par des sons, des signes qui en sont les substituts.”

181 parte, não integrarão o léxico da língua, mas integram um determinado discurso, situado num tempo e num espaço determinados.

Neste caso, a criação neológica está intrinsecamente ligada ao autor, ao ato criativo, a uma dada situação e a um determinado contexto. A sua validade pode não sair das fronteiras linguísticas de um determinado discurso. Muitos destes casos são usos inéditos que podem surgir uma única vez, sendo, por conseguinte, difícil atribuir - lhes a denominação de neologismos227.

Para que uma palavra se torne neologismo228 tem de ter algum uso e alguma recetividade junto dos falantes. A ausência do uso e da receção faz dessa palavra uma palavra inédita, única, mas não um neologismo. Poder-se-ia então afirmar que para que o neologismo exista são necessários dois critérios: o critério novidade (é uma palavra nova) e o critério uso (a palavra nova tem de ser usada e assim ter alguma recetividade e aceitabilidade junto dos falantes). Se essa receção não acontecer, a palavra não chegará a ser um neologismo. Como afirmam Pruvost e Sablayrolles (2003: 15), o neologismo tem de ser aceite pela comunidade:

Le néologisme a ses tribunaux où, selon le moment, la fonction, le temperament et l’humeur des juges, les neologismes sont testés, examines, discutés, ou excommuniés. La presse, les dictionnaires, la littérature, les institutions représentent autant d’instances où la néologie fait intervenir, dans un bouillonnement fructueux pour la langue, autant de sages conseillers que de cassandres et de thuriféraires.

Uma grande parte das palavras de Mia Couto corresponde a criações e têm um uso circunscrito à receção dos leitores da obra e ao momento da leitura.

Interessa-nos descrever a língua de Mia Couto não enquanto enriquecimento das línguas, mas pela relação que se vai estabelecer entre a criatividade, a língua de partida e a língua de acolhimento e como é que estas noções vão interagir na língua da tradução, partindo do pressuposto que nos interessa, muito particularmente, a relação entre a criatividade e a tradução.

Para isso, analisaremos a língua de MC, tentando elaborar uma tipologia geral dos fenómenos criativos, resultantes do trabalho criativo do autor. Esta tarefa pressupõe

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Daí a designação de “hápax” que corresponde ao uso inédito de uma palavra num determinado momento discursivo.

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Pruvost e Sablayrolles (2003: 11) realça a mesma ideia na afirmação seguinte: “Chaque langue et par conséquent chaque système linguistique est articule de manière à permettre la créativité lexicale, avec un arsenal diversifié de procédés morphologiques et sémantiques”.

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fazer o levantamento dos fenómenos criativos que resultam da ação do autor sobre a língua.

A tipologia, que vamos propor, baseia-se em outras tipologias já existentes – Guiraud (1973), Guilbert (1975), Benveniste (1974), entre outros. Dada a multiplicidade de fenómenos a descrever, optámos por uma classificação geral capaz de abranger o máximo de fenómenos criativos do autor. Com esta tipologia pretende-se mostrar a diversidade e o trabalho criativo do autor. Analisaremos posteriormente as razões que teriam levado a essa riqueza criativa.

Partimos da proposta de Guilbert (1975)229 e da subdivisão elaborada pelo autor em quatro formas de neologia. Esse quadro é adaptado à realidade das criações neológicas de Mia Couto. Com base na proposta de Guilbert e na subcategorização em tipos de neologia – fonológica, neologia sintagmática, neologia semântica e neologia de empréstimo – e das propostas apresentadas pelo autor optámos por elaborar uma classificação abrangente para albergar o máximo de categorias.

Substituímos o termo “neologia” por “criatividade”, como já referido. Reservamos o termo neologia para os empréstimos que ainda não estejam atestados no corpus de referência do português – neologia de empréstimo. No entanto, uma grande parte dos termos já faz parte do uso do português de Moçambique

Dada a diversidade das criatividades de Mia Couto não é fácil elaborar uma classificação que tenha em conta os vários processos criativos. Vamos partir da classificação proposta por Guilbert e propomos a introdução de algumas adaptações.

As listas elaboradas que permitem construir a classificação são constituídas por lexemas, na sua grande maioria, criativos. Todos esses lexemas resultam da aplicação de um processo que integra a língua, neste caso, o português europeu, mas que aplicados a uma determinada base, transformam o novo lexema num produto criativo.

A mesma palavra ou expressão pode pertencer a mais do que uma categoria. Por exemplo, na categoria da criatividade de palavras inserem-se as amálgamas, e os mesmos lexemas surgem também na categoria da criatividade semântica, porque pressupõem a construção de um novo significado.

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Alves (2007: 89) reforça a importância da tipologia neológica proposta por Guilbert (1975), a mais seguida pelos estudos lexicográficos, segundo a autora. Alves acrescenta um novo item à tipologia de Guilbert – A neologia textual.

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Criatividade fonológica

A criatividade fonológica compreende os fenómenos que poderiam pertencer a uma subcategoria da oralidade. Esta categoria compreende as alterações de fonemas: cobiri (cobre), sacudu (sac à dos); vários fenómenos de ordem histórica, que aconteceram num dado tempo e espaço em outros lexemas da língua, numa perspetiva diacrónica, mas que na neologia de autor são criados em sincronia, como as aféreses que representam perdas de fonemas em início de palavra: diministrador, carretar; a introdução de vogais de ligação na fusão de palavras, como, por exemplo, em surdimudo; a reduplicação de sílabas como em tontonto e as construções onomatopaicas como ilustra o exemplo Ouooh.

Alteração de fonemas: cobiri (cobre), sacudu (sac-à-dos), custumunha (testemunha), dólingui (darling).230

Fenómenos de ordem histórica:

Aférese: joelhamento, diministrador231 Vocalização: maufeitor, mautrapilho Ditongação: escãozelado, mãojerico Sonorização: esgazelado

Introdução de vogais de ligação: surdimudo, monstriforme

Reduplicação ou redobro de sílabas232: tontonto, choris-choris, tchó-tchó-chós

Processo de aglutinação de compostos sintagmáticos233: fidamãe, fidaputa

Criatividade de palavras

Nesta categoria inserem-se os lexemas que tradicionalmente fariam parte da categoria de formação de palavras e que corresponderiam à formação de uma palavra, simples ou complexa.

Assim, é possível subdividir esta categoria nas seguintes subcategorias:

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Cf. respetivamente CHUR 153, C 33, CHUR 153 e MMQ 12.

231

Cf. diministrador , UVF 78.

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“Processo de criação de palavras que consiste na repetição de uma palavra já existente (cai-cai) ou parte de palavra (vóvó). Cf. Villava (2008: 54). Para choris-choris e tchó-tchó-chós ver VF 42.

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- Derivação: prefixação, sufixação e parassíntese; - Composição234;

- Amálgama.

As palavras formadas a partir destes processos serão palavras criativas (neologia de autor), não estando atestadas no corpus de referência. Os processos de formação de palavras são os existentes para as outras palavras do português, mas os resultados desses processos correspondem a palavras novas.

 Derivação

Prefixação:

Adjetival – desumbilical, indignatário; Nominal – desparadeiro, inaposento; Verbal – despergaminhar, despropositar Sufixação:

Adjetival – carinhenta, estreloso Nominal – branqueza, meninagem Verbal – pensamentar, bonitar-se

Adverbial235 – alvoradamente, aniversariamente

 Composicionalidade:

gémeas-gemidas, ajunta-brasas lei-de-fora

 Amálgamas:

Adjetivos: curvilinda, caracoladinho Nomes próprios: Tristereza, Agualberto Nomes: chilreino, sozinhidão

Verbos: salpingar, pedinchorar

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Usa-se a composição neste contexto, em sentido lato, com junção de dois ou mais lexemas sem alteração dos seus radicais.

235

Poucos são os exemplos de criatividade que operam sobre a categoria do advérbio. Cf. ainda

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Criatividade sintagmática

A criatividade sintagmática alberga as unidades consideradas discursivas e pluriverbais. Desta categoria fazem parte as fraseologias que obedecem ao critério de lexicalização (no português) e que apresentam diferentes graus de opacidade semântica. Contrariamente às outras categorias em que apenas foram selecionados os lexemas criativos, desta categoria fazem parte unidades discursivas normativas e unidades discursivas criativas, porque uma grande parte das unidades criativas constroem-se com base em fraseologias existentes na língua e desconstruídas pelo próprio autor.

Nesta categoria, englobamos os tipos de fraseologias seguintes: - Expressões idiomáticas - Provérbios - Locuções - Metáforas - Metonímias - Comparações - Anteposição do adjetivo236

Para cada um desses tipos apresentam-se exemplos de unidades discursivas normativas, padrão, e unidades discursivas criativas, ambas retiradas das obras em análise.

Criatividade sintagmática Expressão idiomática-padrão

Andar com a cabeça na lua Não passar da cepa torta

Expressão idiomática criativa Sentir a alma tombar aos pés Não ver nem nariz nem palmo Provérbio padrão

Amor com amor se paga

Não corras atrás da galinha já com o sal na mão

Provérbio criativo

Mais vale uma mão no pássaro O prometido não é de vidro

Locução-padrão Locução criativa

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Integramos nesta categoria a anteposição do adjetivo pois pressupõe a intervenção da sintaxe, frequentemente usada por Mia Couto para reforçar a subjetividade e a expressividade do adjetivo.

186 Pedir licença Dar à luz Chapar as palmas Alisar compostura Metáfora-padrão Encolher os ombros

Transformar-se no seu braço direito

Metáfora criativa237 As casas fecharam as pálpebras Endomingar a conversa

Metonímia-padrão Cortar a palavra

Trocar palavras

Metonímia criativa Jurar fidelidade às garrafas. Compor de risos238

Comparação-padrão Dobrado como um caniço Como peixe dentro de água

Comparação criativa239

Tristonho como tartaruga atravessando deserto

E os sonhos são como as nuvens: nada nos pertence nem a sua sombra

Construção-padrão do adjetivo Acento circunflexo Tinta roxa Bons conhecimentos O novo Horácio Anteposição criativa240 Adoentado destino Luzidiurnas carnes

Quadro nº 7 – Criatividade sintagmática

Criatividade semântica

A categoria da criatividade semântica refere-se a alterações de significados existentes. Incluem-se aqui processos de mudança semântica que pressuponham a atribuição de uma nova significação a um dado segmento fonológico, que pode já existir na língua, e nestes casos, estamos perante a neologia semântica, ou palavras e unidades fraseológicas criativas que auferem também da atribuição de um novo significado.

237

Cf. CHUR 66 e CNT 216.

238

Esse compor de risos remete para a alegria (C 100).

239

Cf. UVF 113 e VF 106, respetivamente.

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