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a língua de Mia Couto

3.2 A língua descrita por Mia Couto

A análise de um número significativo de entrevistas181 dadas por Mia Couto, ao longo de vários anos, permite-nos descrever e interrogar as posições do autor sobre o seu próprio processo de escrita, i.e., sobre a escrita enquanto processo construtivo, inovador e criativo. Lidas as entrevistas, optou-se por não fazer uma diferenciação entre as entrevistas dadas entre 1990 e 2000 e as entrevistas posteriores a essa data, na medida em que, excetuando as entrevistas que coincidem com a publicação do livro Jesusalém (2009) e posteriores, as entrevistas anteriores não apresentam diferenças significativas em relação aos argumentos apresentados sobre o processo de escrita. Por outro lado, o número de entrevistas aumenta consideravelmente no final dos anos noventa182.

A palavra brincriação183 e seus derivados são usados, por nós, num sentido lato, o de ação deliberada e consciente sobre a palavra, qualquer que seja o processo criativo utilizado, e não apenas como uma palavra representativa das amálgamas.

De seguida, detemo-nos sobre a palavra “brincriação” e seus derivados, de acordo com o uso que o autor faz dessas palavras ao longo das suas obras. Começaremos pelo levantamento dos contextos em que ocorrem e dos valores semânticos que lhes estão associados.

Este olhar sobre a amálgama justifica-se, do nosso ponto de vista, e como já referido anteriormente, tendo em conta que esta palavra é utilizada resumindo, de certa forma, o processo criativo e artístico da escrita de Mia Couto.

Apresentam-se, de seguida, os contextos em que surgem todas as palavras da mesma família da palavra “brincriar”:

- “Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas brincriações” (TS 10). “Muidinga se meninou outra vez”, mas a solidão transformou-os, novamente, por oposição, em “murchos e desesperançados”. A

brincriação é aqui associada à recuperação da infância passada.

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As entrevistas, em jornais e online, estão identificadas na bibliografia e numeradas.

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Mia Couto publicou a sua primeira obra em poesia em 1983, Raiz de Orvalho, o primeiro livro de contos, Vozes Anoitecidas, foi publicado em 1986 e o segundo, Cada Homem é uma Raça, em 1990. O primeiro romance foi publicado em 1992. Isto permite justificar a concentração das entrevistas na segunda metade dos anos noventa.

183

Do ponto de vista morfológico, a palavra “brincriação” corresponde a uma amálgama [brincriar+criação].

157 - “Os presentes se riam, sem dar outro crédito que não fosse o de brincriação”. O léxico utilizado neste contexto mostra precisamente o ambiente festivo associado à palavra em análise: “festa”, “levantar o copo”, “festejosos” (TS 138).

- “Por um instante, Muidinga receia que o tio deseje quebrar aquele fingimento, cansado da ilusão. Mas não, o velho prossegue a brincriação. E começa a palhaçar, cambalhotando, para lhe fazer soltar gargalhadas” (TS 168). Tuahir ajuda Muidinga a reencontrar a sua infância e as brincadeiras a ela associadas.

- “Assim, pondo a terra a girar, em brincriação de menina, fechou os olhos com doçura. No real, ela seguia dançando, rodando até desmoronar em pleno chão.” (TS 206). A brincriação remete aqui para a ilusão própria de uma menina.

- “Mas Sombrinha não deixou de rimar com a alegria. Afinal, era ainda menos que adolescente, dada somente a brincriações.” (CNT 14). A palavra transporta a alegria própria das brincadeiras das crianças.

- “Vem ver o filho, escutar as suas brincriações.” (CNT 164).

- “Um escritor pode brincar com as palavras, criando. Pode brincriar” (C 163). Neste caso, a palavra é ela própria definida pelo autor. O ato de criação é também um jogo com as palavras.

O quadro nº 6 resume os vários contextos que acabámos de apresentar.

Palavra Cat. Gram. Contextos Referência Significado

Brincriar V “um escritor pode brincar

com as palavras, criando. Pode brincriar”

C 163 Criatividade

Brincriação N “Os presentes se riam, sem

dar outro crédito que não fosse o de brincriação”. “Por um instante, Muidinga receia que o tio deseje quebrar aquele fingimento, cansado da ilusão. Mas não, o velho prossegue a brincriação. E começa a palhaçar, cambalhotando, para lhe fazer soltar gargalhadas.”

“Assim, pondo a terra a girar, em brincriação de menina, fechou os olhos com doçura. No real, ela seguia dançando, rodando

TS 138 TS 168 TS 206 Jogo Brincadeira Brincadeira

158

até desmoronar em pleno chão.”

Brincriações N “Quando iniciaram a viagem

já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas brincriações.”

“Mas Sombrinha não deixou de rimar com a alegria. Afinal, era ainda menos que adolescente, dada somente a brincriações.”

“Vem ver o filho, escutar as suas brincriações.” TS 10 CNT 14 CNT 164 Ilusões Brincadeiras Brincadeiras

Quadro nº 6 – Da brincriação aos contextos

A palavra brincriação (nome de ação de brincriar) remete para o universo infantil de brincadeiras184, e ilustra também a ideia de festa ou brincadeira de adultos185, a brincriação é aqui associada ao riso e às gargalhadas. A palavra aparece quase sempre associada a um contexto de meninice, trazendo às personagens em cena a recuperação de um estado passado ou um ambiente de ilusão186.

Assim, é possível resumir os contextos de brincriação a duas ideias principais. Por um lado, o uso da palavra brincriação remete para o jogo, a brincadeira, a invenção, e por outro lado, sugere a criatividade linguística, que surge associada a um regresso à meninice, que aqui se poderia metaforizar como a meninice da língua de Moçambique. O PM está em construção, um processo de crescimento paralelo ao crescimento do país. A língua alberga nela as particularidades de um povo em devir, centrado numa multiplicidade de experiências e em constante simbiose com o português. A criatividade e a inovação mostram a procura existencial e experiencial de um povo à procura do futuro, de um amanhã incerto. A língua pretende, assim, registar nela as mudanças em curso de um país em movimento.

A língua de MC encontra-se no entrelaçar da poesia e da prosa. Como o próprio autor afirma “porque a realidade que eu quero revelar é uma realidade que só pode ser contada através de certo sentido mágico e de certa transgressão de fronteiras, entre o

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Cf. a personagem Muidinga (TS), a personagem Sombrinha (TS) ou o filho (CNT).

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“O velho prossegue a brincriação”, Terra Sonâmbula.

186

Cf. Muidinga, o menino abandonado, trazido de novo à vida pelo velho Tuahir, ou Euzinha, que através de uma brincriação ilusória, se apega à vida, Terra Sonâmbula.

159 verso e a prosa, a escrita e a oralidade. E a poesia ajuda a fazer essa desmontagem”. (E.7)187. A desarrumação da linguagem, o trabalho sobre a forma, permite fazer penetrar na língua padrão uma outra realidade, vinda de um outro tempo e espaço. O manuseamento da língua, o exercício formal e criativo, o acrescento de novos significados, são elementos que implementam na língua um ambiente mágico e desconcertante, permitindo a entrada de novas realidades e estabelecendo um diálogo construtivo entre prosa e poesia. As “transgressões” assumem um papel decisivo no raiar de uma nova língua, uma língua prenha de muitas outras línguas, inchada de tantas novas representações, reflexo de outras visões, vindas de outros tempos e espaços.

Debrucemo-nos agora sobre as entrevistas dadas pelo autor. Far-se-á o levantamento das ideias-chave que apresentaremos sob forma de pergunta e discutir-se- á a escrita e as brincriações do autor.

(i) Como nasceu o processo artístico e criativo de Mia Couto?

Numa entrevista (E.29), a propósito da publicação de O Fio das Missangas, o jornalista dirige aproximadamente essa pergunta a MC. A resposta é clara e incisiva - “A palavra não se inventa. Ela se descobre, removendo a carga de poeira que resulta da utilização funcionária da linguagem e da vulgarização de algo que é um milagre que fazemos todos os dias, a toda a hora”. O autor refuta o uso funcional da língua e a banalização, defende uma língua nova e novas “descobertas”188

. Primeiro, construiu, pela aproximação aos grandes autores “transgressores” (Luandino Vieira, Guimarães Rosa), como foi referido anteriormente, a capacidade de reinventar, através da língua, novas formas de dizer e novas formas de pensar, para nelas caberem “as coisas que eu quero dizer” (E.8), centradas na cultura africana, no povo genuíno de Moçambique, que falava, como o autor tão bem nos diz, nessa mesma entrevista, através da boca de uma camponesa idosa “aqui nós falamos português corta-mato” (E.8). Depois, assumiu a liberdade de abrir brechas profundas na norma do português, à imagem do que já fazia

187

A associação da poesia e da prosa surge inscrita nas obras em prosa de Mia Couto. Esta relação reflete a dialogia realidade/ficção e verdade/mentira, como se pode apreciar no excerto de EA 69: “Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira de encantamento a verdade se casa à estória”.

188

A palavra “descobre-se”, como diz o próprio autor (Cf. C 163, “(…) palavra descobre-se, não se inventa”). O autor procura uma língua em que as palavras ganhem novo alento, novos significados. Mas para isso é necessário descobrir de novo as palavras, todas as suas polissemias, as suas nuances, para com elas poder brincar e agir, tanto na textura como no significado.

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Luandino Vieira, “foi o primeiro sinal de autorização de como eu queria fazer” (E.8), refazendo a língua, trazendo para o interior dessa língua pedaços de outras línguas. “Em Moçambique a língua é um caldeirão a ser cozinhado, fruto de uma fusão de culturas. É uma coisa muito plástica e que, além de plástica, é muito bonita” (E.20). MC decide transpor para a língua esse “caldeirão de culturas”, essa plasticidade e beleza que a poesia lhe trouxe. “A poesia foi uma escola da desobediência, da transgressão” (E.16). A língua que emerge das suas obras constrói-se na confluência destas várias ideias.

A escrita de MC não deve ser pensada como um ato isolado e individual, mas como inscrevendo-se numa “corrente d’escrita”189 da africanidade (Luandino Vieira), e também fortemente visível em vários autores brasileiros (Haroldo de Campos, Guimarães Rosa ou Manuel de Barros) (E.8 e E.9). Por outro lado, a escrita é a procura de uma língua original, capaz de abarcar as novas visões do mundo do sujeito-escritor. Como o próprio MC afirma: “Um escritor não explica essa construção da linguagem. Não é uma particularidade minha essa reinvenção. Todo o escritor está perante o idioma com esse desafio: como o converter numa língua que é sua? Como ele imprime nesse corpo social a marca da sua individualidade? E se recebo a inspiração de uma língua – que é a portuguesa – que está sendo visitada por povos, culturas – que são as moçambicanas – e que tendem a amolecer a norma e mestiçar gramáticas” (E.26). A língua tem essa capacidade plástica de se deixar moldar, para nela caberem outras categorias. Escrever passa por uma apropriação da língua, por um jogo sobre a sua própria maleabilidade, de forma a poder inscrever nela o seu cunho pessoal, a marca da sua individualidade, mas, simultaneamente, “dialogando sempre com os diversos passados que constituem o passado de Moçambique”190

.

O autor procura uma língua original, ou a “língua perfeita” segundo Umberto Eco191, i.e, a lingua mater. É a ideia de uma língua, originária e matriz, perfeita e total, da qual derivam todas as outras línguas. Reencontramos em MC o mito de Babel e da poliglossia, da origem e da diversidade das línguas, que é possível comparar, não obstante as proporções, à filosofia subjacente à ideia da existência de uma língua originária que em tempos foi, de certa maneira, coincidente com a língua hebraica.

189

O termo “corrente de escrita” vem dos encontros de escritores da Póvoa de Varzim, Correntes

d’escritas. Cf. www.cm-pvarzim.pt. 190

Cf. Maquêa (2007: 170) que atribui a MC um lugar central na construção do conceito de “moçambicanidade”.

191

161 Esta língua deverá ser capaz de dizer os afetos do povo moçambicano e deixar penetrar a cultura desse povo, porque o português, tal como existe, seria incapaz de traduzir a expressividade e a força desses afetos. A “nova” língua de MC, que resulta do diálogo entre várias línguas, todas elas propulsoras de novas sensibilidades, necessita de se abrir a uma outra natureza, inexistente no português, com a sua força, os seus fenómenos, os seus elementos naturais ou míticos, particulares ou universais. Resumindo, estamos aqui perante a ideia da multiplicidade das línguas e do emergir da tradução, numa perspetiva intralíngua e interlínguas. A língua de MC é já o resultado duma miscigenação de culturas, uma miscelânea de línguas que se interpenetram para juntas construírem uma nova língua, plural e multifacetada. Mia Couto introduz aqui, de forma não verbalizada, o carácter insuficiente das línguas para traduzir os mundos possíveis e a necessidade de manter a liberdade das línguas, rompendo com as fronteiras linguísticas.

(ii) Poder-se-á pensar a escrita de MC como um simples exercício linguístico, uma “brincriação” sobre a forma?

A escrita de MC não é uma brincriação formal, um exercício lúdico sobre a forma, um florilégio de palavras e de sons, como é visível nas palavras do autor “agora ao que oponho resistência é reduzir o processo de criação do meu texto a um exercício meramente linguístico, estilístico, estético ou qualquer coisa assim” (E.9). A sua escrita resulta numa exuberância lexical, numa capacidade criativa extraordinária, mas advém de um trabalho árduo sobre a forma e o significado, pensada como um exercício discursivo, portador de sentido, mensagem e moralidade, isto é, condensando nesse discurso os valores semântico-linguísticos que fazem dele um ato de comunicação bem- sucedido. Estamos perante um processo de criação literária, um exercício linguístico necessário que abre na língua novos significados capazes de trazer para o português a cultura do povo de Moçambique, as suas representações e categorizações, a sua oralidade, i.e., a cultura de um povo situado num outro espaço e tempo e que apresenta variações192, tanto sociais como linguísticas, em relação ao português.

192

Brito (2002) analisa dados de fala espontânea em jornais de Maputo apontando os desvios produzidos em relação às orações relativas, mais especificamente as orações de genitivo. Conclui que dadas as regularidades encontradas, o PM estará num processo de mudança, que não é arbitrário, “mas obedece a princípios gramaticais gerais, a propriedades comuns a outras línguas e a regularidades que uma análise linguística permite evidenciar” (336). A autora enumera um conjunto de aspetos que distinguem o PM do português padrão, dos quais destacamos os seguintes: construções típicas de sujeito nulo; ausência de

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Mia Couto diz-nos que “a poesia não é tanto um género literário, é um modo de olhar e sentir o mundo” (E.25). Os poetas operam transgressões na língua poética para nela inserir algo de diferente, capaz de conter os sentimentos, as emoções que eles querem transmitir. Não é um mero exercício formal, não são simples exercícios linguísticos, conscientes e voluntários. Como afirma o próprio autor, não são meros artifícios.

(iii) Será que as “transgressões” da língua de MC são ditadas pelas ideias que o próprio autor quer transmitir e que não são passíveis de serem traduzidas pelo português padrão?

A escrita de MC193 e as suas brincriações constituem a essência da interação entre a forma e o conteúdo, a forma e o significado, e resultam numa mais-valia semântica. “O português de Moçambique, sendo o mesmo de Portugal, não fala àquela cultura. Senti desde sempre necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana” (E.16). Cada língua traduz as suas representações do mundo. “As alterações da língua portuguesa têm uma lógica que ultrapassa o domínio linguístico e que traduz uma outra apreensão do mundo e da vida” (E.6). A realidade africana, e mais especificamente a realidade moçambicana, constitui essa outra realidade que necessita de um alargamento das fronteiras linguísticas do português para nele caber.

A “transgressão” é um ato voluntário e consciente e nasce do confronto com a incapacidade de o português transmitir a carga semântica das representações da realidade moçambicana, do seu povo, das suas crenças e mitos. Segundo o autor, “eu preciso desta outra língua porque quero dizer uma coisa que está oculta, uma coisa que só pode ser dita dessa outra maneira” (E.4). E é através dessa outra língua que o autor consegue preservar a essência do outro, a sua diferença, as suas crenças, os seus

infinitivo flexionado em vários contextos; tendência para a supressão do artigo no SN; tendência para a construção de duplos objetos; uniformização dos clíticos OI e OD e instabilidade na colocação dos pronomes; tendência para a supressão dos clíticos reflexos ou ocorrência de clíticos não argumentais (simpatizar-se com alguém/preferir-se); alteração da posição normal dos clíticos em frases com auxiliar e tendência para ênclise em orações complexas; tendências diferentes do PE nas orações relativas; o uso recorrente da preposição “em” com valor locativo (ele já chegou em casa).

193

A escrita de MC constitui um conjunto de ações sobre a língua, i.e., o hiperónimo, e as ações do autor sobre a língua constituem os hipónimos.

163 sentires, a sua raça ou cor, investindo, assim, nessa outra língua o conceito de alteridade194, enquanto conceito de aproximação entre povos e línguas.

(iv) Retomando a ideia da tradução, será MC um passador195 cultural?

As brincriações pressupõem o transporte de cultura e de diálogo entre o português padrão e o português de Moçambique. “Posso funcionar como uma espécie de tradutor, não de línguas mas de intimidades. Tenho a password, tenho acesso a esses universos e, muitas vezes, sinto-me como um contrabandista” (E.10).

A língua de MC apresenta-se como uma língua em que o processo tradutológico é desde logo visível. A escrita vive de transferências, positivas, neste caso, de umas línguas para as outras. Instaura-se um diálogo entre as culturas e as línguas. Veja-se, a título de exemplo, algumas das características citadas por MC (E.7), que ilustram o diálogo entre o PM e algumas das variedades linguísticas de Moçambique. “Por exemplo a utilização do gerúndio, alguma coisa se está fazendo, no sentido da percepção de uma dinâmica. As construções da forma passiva, eu fui batido. Outro exemplo: o carro dormiu fora (...) este jornal não trabalha, o que é uma forma muito feliz, porque os jornais trabalham”. As marcas de oralidade, ou desvios diversos, assumem também um papel importante na escrita de MC, como é visível nos seguintes exemplos (E.6): todos partiram, um após nenhum, o colar que foste dada, nem isto guerra nenhuma não é, o lugarzinho no enquanto.

Em O Último Voo do Flamingo encontra-se a personagem do tradutor, que se apresenta como o tradutor de Tizangara logo no início do livro - “Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara (...) Agora vos conto tudo por ordem de minha única vontade”. O seu papel consiste em relatar factos

194

Vários teóricos da tradução se debruçaram sobre o conceito de “alteridade”. Benjamin (1980) em A

Tarefa do Tradutor traça os alicerces de uma tradução voltada para o texto de partida. Derrida (1996) e

Ricoeur (2004 a) refletem sobre as novas conceções da língua trazidas pela tradução. Barrento (2002), em

O Poço de Babel, fala-nos da lei “da hospitalidade” e Berman (1984), em L’épreuve de l’étranger, define

a tradução como o lugar da criatividade e da alteridade, da abertura ao Outro, ao estrangeiro, “La traduction n’est pas une simple médiation: c’est un processus où se joue tout notre rapport avec l’Autre”, (p. 287).

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O termo passador é aqui tomado no sentido do passador de fronteira, aqueles que entre os anos 50 e 70 “abriam” caminhos “clandestinos” aos emigrantes portugueses. A fronteira de Vilar Formoso, foi un desses palcos. O filme de Carlos Domingomes "Au revoir Portugal!", Filmotaurus Produções, sobre a emigração portuguesa que foi para França entre 1950 e 1974, retrata esses percursos. Cf. ainda, por exemplo, o livro de Magalhães (2010) Longe do meu coração.

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verdadeiros ocorridos, mas como ele próprio nos diz “[...] o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram” (UVF 11).

O tradutor de Tizangara, e o próprio Mia Couto, são tradutores de realidades, de mundos, de espaços ficcionais, de diversidades, de um outro olhar sobre as coisas e o mundo, que uma única língua não consegue exprimir. O tradutor é o símbolo da multiplicidade das línguas. A escrita de MC é a ilustração dessa multiplicidade.

(v) Onde nascem as “estórias” do escritor e as suas oralidades?

A escrita é quase sempre apresentada como diferida, “escrevo pelas mãos dos outros” (E.4), ou resultante das memórias de outros, “histórias contadas por outros”, ou ainda “a reinvenção ou recriação da oralidade” (ibid.) trazida por personagens oriundas de lugares ficcionais de Moçambique. MC resume assim esta variedade de vozes – “[a língua] é feita de vozes, é feita de oralidade. Isso transporta para a infância, para encantamentos e instantes de fantasia que vivi na minha vida, e que ainda hoje são o meu chão” (E.9). As vozes196