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unidades polilexicais

1.2 Criatividade e Tradução

1.2.4 Travessia teórica

A história da tradução confunde-se com a história da compreensão, com uma história da hermenêutica. Traduzir é compreender o texto original, num ato de leitura plural. Wuilmart (2000: 44) num artigo que tem como título “Traduire c’est lire” afirma a importância da leitura, que se desdobra, segunda a autora, em duas fases – a impregnação e a restituição. A autora utiliza a metáfora da escultura para mostrar que traduzir é «trair naturalmente» porque a diferença entre as línguas é intransponível. A língua é pois o reflexo do pensamento e da expressão:

La restituition d’une figure de marbre dans un autre matériau, disons le bois. Le sculpteur qui, à l’aide de son ciseau, tente de reproduire la figure dans du bois se heurte à la même difficulté que le traducteur.

Os dois materiais, o mármore e a madeira, metaforizam as duas línguas no processo tradutológico. Os materiais são diferentes nas texturas, nos odores e nas sensações.73

Se o tradutor for um tradutor « cibliste »74, que traduziremos por “tradutor-alvo”, será fiel à sua própria língua, respeitando a matéria da sua língua e indo de encontro ao leitor da tradução, como o enunciava já Schleiermacher75 :

Mais alors, quels chemins peut prendre le véritable traducteur qui veut rapprocher réellement ces deux hommes si séparés (…) ? À mon avis, il n’y en a que deux. Ou bien le traducteur laisse l’écrivain le plus tranquille possible et fait que le lecteur aille à sa rencontre, ou bien il laisse le lecteur le plus tranquille possible et fait que l’écrivain aille à sa rencontre. (sublinhado nosso)

A primeira proposta de Schleiermacher corresponde aos «sourciers», os tradutores-fonte, de Ladmiral. Poder-se-ia trazer para a discussão o conceito de fidelidade e dir-se-ia que para os «ciblistes» a fidelidade é para com o leitor, para os «sourciers» a fidelidade é para com o autor, o que torna a noção de fidelidade ambígua e complexa, divergindo de conteúdo, em função das orientações escolhidas pelo tradutor.

Regressemos à compreensão e à fase da impregnação, que a teoria da tradução tem, segundo Wuilmart, abordado muito pouco, e que desempenha, do nosso ponto de

73 Wuilmart (2000: 45). 74 Cf. Ladmiral (2014). 75

Berman (1985: 299), “Les différentes méthodes du traduire”, com o título original – Ueber die verschiedenen Methoden des Ubersezens”. Sublinhado nosso.

65 vista, um papel fundamental no processo tradutológico. Wuilmart (2000 : 46) diz « On ne traduit pas un auteur, mais un texte ». A impregnação é o encontro com esse texto e com tudo aquilo que o caracteriza, é a interpenetração do texto literário à procura incessante de indícios, i.e., de todos os indícios que enriqueçam e explorem o sentido do texto.

E é na leitura que essa impregnação se opera, constituindo o momento fulcral de apropriação do sentido. Wuilmart (2000 : 48) metaforiza esse momento único :

Traduire c’est d’abord et avant tout lire. C’est lire correctement avec l’œil de l’exégète averti, avec l’oreille de l’interprète musical, avec la sensibilité déployée de l’artiste dont les cinq sens sont aux aguets.

As discussões em crítica de tradução mostram-nos um campo de investigação dividido em dois grandes paradigmas, que muito se aproximam das duas orientações expostas por Schleiermacher, embora em contextos diferentes, e recorrendo a uma terminologia diferente, que resulta da abertura de novos paradigmas teóricos resultantes da evolução do próprio pensamento.

É nossa intenção resumir, em traços largos, e iniciando a viagem com Schleiermacher, as posições terminológicas do século XXI76, de modo a delinear o campo teórico em que nos situamos. Por outro lado, esse resumo permitir-nos-á perceber, de forma mais objetiva, a evolução do pensamento sobre a tradução.

Partimos do pressuposto de que é necessário construir uma história da tradução baseada nos princípios que norteiam a sua evolução e não na simples repetição ou alteração de conceitos terminológicos. A mudança dos conceitos nem sempre levou a uma modificação profunda do discurso sobre a tradução. Para nos situarmos e elaborarmos um enquadramento teórico para o nosso trabalho, temos de olhar para os diferentes discursos de acordo com aquilo que cada um desses discursos trouxe para a tradução propriamente dita. Propomo-nos enunciar de forma objetiva alguns dos pressupostos e também algumas das interrogações que norteiam a abordagem teórica deste trabalho.

- A prática da tradução é inseparável do discurso teórico. É através da prática, que surge no início, sob forma de leitura, que se elabora a teorização do ato tradutológico.

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- O binómio teoria/prática é substituído pelo binómio experiência/ reflexão.77

- Se acreditamos que é a experiência que motiva a reflexão, então é o texto que determina, de um ponto de vista teórico, as opções do tradutor.

- Por outro lado, essas opções não se mantêm homogéneas ao longo de todo o texto. Acreditamos que o discurso teórico, no ato experiencial de tradução, é heterogéneo dentro de um mesmo texto e depende das opções de escrita do autor do texto original.

- Com isto pretende-se dizer que é o texto, e logo o autor desse texto, que motivam a teorização subjacente ao ato tradutológico.

- O texto literário pressupõe uma outra língua, uma terceira língua ou terceira voz (que é a língua ou a voz do autor).

- O texto literário é idiossincrático, autónomo, livre, único.

- Tanto a terceira língua ou a terceira voz como a autonomia, liberdade e unicidade têm de ser características inerentes ao texto traduzido. - A leitura, a compreensão e a hermenêutica têm de fazer parte

intrínseca do ato de tradução e do discurso teórico sobre tradução. - A formação do tradutor tem de ter em conta a sua formação como

leitor e esta formação é indissociável da sua formação como tradutor. - A formação linguística (lexical, fraseológica, prosódica, retórica) é

também inseparável da formação do tradutor. O tradutor tem de ser capaz de observar e agir sobre a língua, reconhecendo a sua flexibilidade e maleabilidade e de ter uma forte capacidade metalinguística.

- O texto literário situa-se no campo de alteridade em relação à língua natural.

- Assim, esse campo de alteridade sobrepor-se-á ao campo etnocêntrico, e determinará algumas das opções em tradução.

- No entanto, falar de sobreposição é falar da dominação de um sobre o outro e nunca de uma exclusão. Alteridade e etnocentrismo encontrar-

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O binómio Experiência /Reflexão tomámo-lo a Berman (1985) e é apresentado pelo autor nessa ordem, primeiro surge a experiência e é da experiência que decorre a reflexão.

67 se-ão na tradução de um mesmo texto e na pena de um mesmo tradutor, sem, de modo algum, denotarem incoerência por parte do tradutor, mas são antes o resultado da leitura do texto-fonte e das opções do autor.

- O discurso que elaboramos sobre tradução baseia-se na existência de um critério de dominância, a dominância da alteridade. No entanto, existem elementos que são inerentes à própria língua original e que devem ser respeitados na outra língua.

- As opções, as escolhas são comandadas pelo texto original.

- O tradutor deve dispor de uma variedade rica de opções e a seguir negociar essas opções com o próprio texto, pesando essas opções nos pratos de uma balança.

- A tradução (de um texto particular) é um campo híbrido, transcultural, mestiço onde confluem as várias línguas e a variedade de teorias existentes. A tradução é híbrida porque a língua sobre a qual se baseia a tradução é já por si um objeto híbrido e transcultural. - A criatividade linguística do texto original não é um simples exercício lúdico com a língua, um jogo de diversão com as alterações morfológicas, sintáticas ou semânticas ou um teste para mostrar a capacidade de criação lexical.

- A criatividade é a ação literária sobre a língua para construir um objeto prático capaz de conter aquilo que o autor quer dizer, isto é, a sua mensagem.

- As transgressões ou subversões (ou outras palavras que mostrem esta ação de transformação) são usadas como integrando a escrita de um determinado texto e acreditamos que todos os textos literários têm, em campos de intervenção diferentes, essas transgressões ou subversões.

- É nosso desejo alargar o conceito de transgressão (com este ou com outro nome – recordemos que a literatura usou o termo desvio (em francês écart) para mostrar um distanciamento em relação à língua comum e sobretudo para mostrar que a língua literária é diferente), que se poderia traduzir na enunciação seguinte: os textos literários

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caracterizam-se por um maior ou menor distanciamento linguístico da língua comum. Ou formulado de outra maneira, o texto literário caracteriza-se pela sua criatividade linguística.

- Assim, o distanciamento linguístico da língua natural, ou, de forma, mais sintética, a criatividade linguística, podem constituir critérios determinantes para a caracterização do texto a traduzir.78

- As observações que propomos apenas são válidas para o texto literário. No entanto, acreditamos que a criatividade linguística, pensada de forma mais abrangente, é um parâmetro válido para todos os tipos de tradução e diferenciador de algo próximo de uma tipologia de textos, ou de uma tradução funcional.79

Propomos de seguida organizar uma viagem através da teoria e, como referimos anteriormente, iniciamos a viagem por Schleiermacher, prolongando até às propostas teóricas mais contemporâneas do século XXI. Referiremos apenas os autores e os principais conceitos que lhes estão associados e que serão objeto de uma reflexão a seguir.

Autores Conceitos de base, comentários

SCHLEIERMACHER, Friedrich (2003, tradução de José Miranda Justo). Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. (Título original: Ueber die Verschiedenen Methoden des Uebersezens). Edição bilingue. Porto: Porto Editora.

(escrito em 1813, conferência proferida na Real Academia de Berlim)

Mediação entre o autor do texto original e o leitor do texto traduzido;

Dois métodos de traduzir : aproxima-se o leitor do autor (privilegia-se o

estranhamento) ou aproxima-se o autor do leitor (nacionaliza-se o texto).

BENJAMIN, Walter. «Die Aufgabe des Übersetzers, Gesammelte Schriften», «A tarefa do tradutor »

in BRANCO, Lúcia Castello (org.)

Compreensão e hermenêutica; A tarefa do tradutor;

A “forma” do texto e fidelidade;

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Pretendemos mostrar que a criatividade linguística, ou outro campo afim que tenha em conta comparações entre a língua comum e os textos literários, através da análise da criatividade da escrita de Mia Couto, constitui um critério objetivo. Deste modo, e embora se situe fora do âmbito deste trabalho, a criatividade linguística, na formação em tradução literária, deveria constituir um campo de conhecimento que deveria integrar os saberes da formação dos tradutores literários.

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69 (2008). A tarefa do tradutor, de Walter

Benjamin. Quatro traduções para o português. Edição bilingue. Belo Horizonte: Fale/UFMG.

A alteridade do original;

A essência da forma do original; Traduzibilidade e tradução. JAKOBSON, Roman. “On Linguistic

Aspects of Translation” in BROWER, R. A. (ed, 1959). On Translation.

Cambridge: Harvard University Press.

Tradução intralinguística; Tradução interlinguística; Tradução intersemiótica.

VINAY E DARBELNET (1958).

Stylistique comparée du français et de l’anglais. Montreal : Beauchemin.

Tradução direta (possibilidade de

preservação de estruturas da língua-fonte); Tradução oblíqua (estruturas da língua- alvo);

Tradução linguística e tradução literária; Procedimentos técnicos de tradução : empréstimo, decalque, tradução literal, transposição, modulação, equivalência e adaptação.

NIDA, Eugène (1964). Toward a Science of Translating with Special reference to Principles and procedures Involved in Bible Translating. Leyde : E. J. Brill.

Equivalência dinâmica; Equivalência formal;

Outros tipos de equivalência. CATFORD, J. C. (1965). A Linguistic

Theory of Translation. Oxford: Oxford Univ Press.

Correspondência formal (preserva a estrutura da língua-fonte);

Equivalência textual (recurso a uma estrutura da língua-alvo);

Tradução livre e tradução literal; Intraduzibilidade linguística e intraduzibilidade cultural. MOUNIN, Georges (1955). Les Belles

Infidèles. Essai sur la traduction. Paris: Cahiers du Sud.

MOUNIN, Georges (1963). Les problèmes théoriques de la traduction. Paris: Gallimard.

Les verres transparents e les verres colorés;

Tradução fiel e tradução infiel; As belas infiéis;

Linguística e tradução; Tradução literal; Tradução livre.

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MESCHONNIC, Henri (1973). Pour la poétique II. Épistémologie de l’écriture poétique de la traduction. Paris: Gallimard.

Traduction du décentrement ou du dépaysement et traduction annexion; Descentramento e anexionismo. Mechonnic: um “sourcier”. LEFEVERE, André (1975). Translating

Poetry, Seven Strategies and a Blue-print. Amesterdão: Van Gorcum.

Sete estratégias para a tradução de poesia: tradução fonémica;

tradução literal; tradução métrica; de poesia para prosa; tradução rimada;

tradução em verso branco; interpretação.

STEINER, G. (1975). After Babel: Aspects of Language and Translation. Oxford: Oxford University Press.

Teoria da linguagem e teoria da tradução; Periodização da tradução;

Organização diacrónica;

Tradução enquanto processo natural; Topologias da cultura.

POPOVIC, Anton (1976). A Dictionary for the Analysis of Literary Translation. Edmonton, Alberta: Universidade de Alberta. Tipos de equivalências: equivalência linguística; equivalência pragmática; equivalência estilística; equivalência textual (sintagmática). BASSNETT, Susan (1980, trad. 2003).

Translation Studies. London : Routledge. Tradução portuguesa: Estudos de Tradução. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Descodificação e recodificação; Noção de equivalência;

Perdas e ganhos;

Traduzibilidade e intraduzibilidade.

BERMAN, Antoine (1985): «La

traduction et la lettre ou l'auberge du lointain», in Les tours de Babel. Essais sur la traduction. Mauvezin : Trans- Europ-Repress.

Tendências deformantes da tradução, a analítica da tradução;

A letra do texto-fonte;

Tradução ética e ética da tradução;

71 Lexicalização e tradução;

Tradução livre e tradução literal. Berman: um “sourcier”

BALLARD, Michel (1994, 2e éd.). La traduction de l’anglais au français. Paris: Nathan.

Teoria e prática da tradução; Abordagem pedagógica; Tradução e criatividade.

LEDERER, Marianne (1994). La

traduction aujourd’hui. Le modèle interprétatif. Paris: Hachette.

Desverbalização e reverbalização; Tradução linguística;

Equivalência e correspondência; Tradução do sentido, tradução interpretativa;

Língua e discurso. TOURY, Gideon (1995). "The Nature and

Role of Norms in Translation". In Descriptive Translation Studies and Beyond. Amesterdão-Filadélfia: John Benjamins.

Aceitabilidade vs adequação; Norma e tradução;

Normas e leis (sociolinguísticas e tradutológicas);

Estudos de tradução; Teoria dos polissistemas. VENUTI, L. (1995). The Translator’s

Invisibility: a History of Translation. Londres e Nova Iorque: Routledge.

Tradução domesticante vs tradução estrangeirizante;

Visibilidade e invisibilidade do tradutor. NORD, Christiane (1997). Translating as a

Purposeful Activity. Functionalist Approaches Explained. Manchester: St Jerome Publisching.

Teoria funcionalista da tradução; Teoria do skopos;

Tradução como ação; Tradução como interação;

Teoria funcionalista e tradução literária. SERRAS PEREIRA, M. (1998). Da

língua de ninguém à praça pública. Lisboa: Fim de Século.

Língua de ninguém e metamorfose; Tradução e hermenêutica;

Multiplicidade das línguas;

Limites e impossibilidade da tradução; A tradução poética.

FROTA, Maria Paula (2000). A singularidade na escrita tradutora –

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linguagem e subjectividade nos estudos de tradução, na linguística e na psicanálise. Campinas, SP: Pontes.

Singularidades na tradução Erros, lapso e singularidade Tradutor-amante

Tradução e psicanálise BARRENTO, João (2002). O Poço de

Babel. Para uma poética da tradução literária. Lisboa: Relógio d’Água.

Tradução e leitura; Terceira voz;

“Lei” da hospitalidade;

Metáfora arqueológica da tradução; Tradução e globalização;

Tradução e poesia;

Traduzibilidade e intraduzibilidade; Tradução: amor e sedução.

LADMIRAL, J.-R. (2014). Sourcier ou cibliste. Paris: Les Belles Lettres, Col. Traductologiques.

Ciblistes – tradutor-alvo; Sourciers – tradutor-fonte. Ladmiral - um “cibliste” CAMPOS, Haroldo de (1992) . “Da

tradução como criação e crítica”. In Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo: Editora Perspectiva.

Transcriação;

Relação de isomorfia entre os textos e tradução icónica;

Obliteração do original; Da releitura ao novo texto; O silêncio na tradução.

Quadro nº 1 – Travessia pela teoria da tradução

Os estudos sobre tradução foram evoluindo em função dos objetos de estudo e das posições teóricas assumidas pelos teóricos da tradução e ao mesmo tempo pelas escolhas feitas pelos próprios tradutores. Das opções anotadas, no quadro anterior, interessa-nos destacar, mais especificamente, os autores que orientaram e orientam a nossa reflexão e que nos permitem elaborar as ideias fundamentais que norteiam o raciocínio que nos propomos defender em tradução, dado que defendemos que o texto literário é um texto criativo.

O texto literário apresenta graus diferentes de criatividade e, por outro lado, os objetos em que se gera a criatividade também são diferentes. Poder-se-ia falar, por

73 exemplo, de uma criatividade neológica, que passa pela criação de palavras novas, de uma criatividade semântica, que pode passar pela alteração da extensão semântica existente, pela criação de novas significações ou alteração das significações existentes, de uma criação fraseológica, que invista na criação de novas colocações, locuções e qualquer outro tipo de fraseologia. No entanto, os exemplos apontados apenas dão conta de uma pequeníssima parte dos tipos de criatividade do texto literário, dado que nele cabem todas as ações transformadoras da língua pelo sujeito e aí acreditamos estar perante possibilidades infinitas, dada a capacidade de recursividade da própria língua, da sua infinitude e do papel ativo dos sujeitos sobre ela.

Assim, defendemos que a língua da tradução é uma espécie de terceira língua, heterogénea, aberta, onde cabem todos os discursos literários que emanam em sincronia num determinado espaço. Mas ao afirmarmos a existência da terceira língua, salientamos que a terceira língua só existe em tradução, em termos abstratos, porque a sua existência é real em todas as línguas originais (neste caso, para o que nos interessa aqui, em todos os textos literários dessa língua original).

A língua original é composta por uma heterogeneidade de textos ou discursos. Os textos literários constituem um dos conjuntos, que se distinguem pela literariedade do autor e pelas opções linguísticas que estão na base do projeto literário do autor. Traduzir é, antes de mais, preservar as opções literárias do autor, realizadas linguisticamente, fazer passar para a língua da tradução a «língua» do autor original, i. e., guardar, na língua da tradução, a terceira língua, ou terceira voz, do original.

Identificada e aceite a existência da terceira língua no texto literário, cabe-nos agora refletir sobre os meios que nos permitem guardar a terceira língua literária no processo de tradução. A terceira língua literária está diretamente dependente do conceito de criatividade. Traduzir a terceira língua é ler a criatividade, desverbalizando80 a terceira língua, de modo a identificar os procedimentos criativos e o papel que

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Para os termos de “desverbalização” e de “reverbalização” cf. Lederer (1994: 22) e Delisle (1984: 81), respetivamente. A “desverbalização” é um processo cognitivo, definido por Lederer nos seguintes termos: “Chacun peut constater que les énoncés oraux sont évanescents. Nous retenons en gros le récit qui nous est fait, mais nous oublions la quasi-totalité des mots qui ont été prononcés. Le fait est patent dans l’oral: les signes du discours disparaissent avec le son de la voix qui les émet, mais l’auditeur, et l’interprète, conservent un souvenir déverbalisé, un état de conscience de l’idée du fait évoqué”. A “reverbalização” é a reexpressão em tradução e é definida por Delisle (1984: 81): “La recherche de la formulation la plus pertinente s’opère plus ou moins à tâtons par les mécanismes conscients et subconscients de la pensée. Les informations sont convoquées ou évoquées par la mémoire encyclopédique. Au cours de cette exploration, les solutions intermédiaires que le traducteur rejette comme insatisfaisantes sont autant de jugements portés sur l’inadéquation d’un contenu et d’une forme (…)”.

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desempenham na construção do ato literário. Depois da desverbalização, e analisados os sistematismos do autor, através, por exemplo, de «glossários» incompletos, ou de recolhas ou levantamentos – de palavras, de conceitos, de fraseologias, de figuras de retórica, de isotopias, de descrições… de ritmos, de melodias, de pontuações, de entoações… – passa-se à fase da reverbalização na língua da tradução, baseada na leitura do texto original.

As orientações que selecionámos, na defesa do texto original, apontam fundamentalmente para a visibilidade do autor, que denota a sua presença através das opções do tradutor em defender e assegurar a sua presença no texto traduzido (Venuti 1995). Mas a visibilidade do tradutor é condicionada e orientada pela visibilidade do autor na língua-fonte.

De um ponto de vista pedagógico, a reflexão exposta tem implicações na formação pedagógica dos tradutores e dos cursos de tradução a nível universitário. No elenco curricular de um curso de tradução devem constar disciplinas que exercitem a leitura tendo em conta a impregnação dos textos e a variedade de textos, literários e não literários, e fomentando atividades pedagógicas de síntese, resumo, comentário, dissertação. É através de disciplinas que formem para a leitura que o aprendente é capaz