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4.1 Eixo 1: Os fatores influenciadores da entrega e submissão à dominação militar

4.1.2 A adesão pela oportunidade, segurança e estabilidade

O fator segurança também é apresentado como justificativa para a escolha profissional da militar Ametista, embora reconsidere a sua opinião ao redirecionar a fala e eleger a identificação como influenciador da escolha.

Excerto 4

A minha escolha? [pausa] A princípio foi por ser um cargo efetivo, um cargo que tem estabilidade, a princípio. E, depois, eu me identifiquei com a profissão, algo que eu achava que tinha interesse, que tinha interesse pela profissão. (Ametista)

No fragmento de fala, a pergunta retórica “a minha escolha?”, acompanhada de uma pausa para resposta, apresenta-se como um movimento que mobiliza a reflexão da policial. A escolha pela marcação temporal “a princípio” e “depois”, que procede da fala da policial, remete a um processo de mudança em relação àquilo que mobilizou a sua primeira opção pela PMDF, o “cargo efetivo, um cargo que tem estabilidade”. Contudo, a conjunção aditiva “e” não instaura uma mudança em relação ao elemento para escolha profissional, mas a introdução de um novo elemento para compensar a escolha profissional posteriormente, ou seja, “a identificação com

a profissão”. Em linhas gerais, verifica-se que o interesse primordial, que fundamenta a escolha de Ametista por ser policial, é a estabilidade que a profissão oferece e não a sua identificação com ela.

A repetição do sintagma “a princípio” no início e no final da oração reforça a ocorrência de uma mudança de valor. Contudo, a articulação discursiva de Ametista não é suficiente para eliminar a condição de que a estabilidade no trabalho sobrepõe a identificação com a profissão. Nesse sentido, a pausa funciona como um recurso argumentativo para elaboração de um discurso que não negasse o interesse pelo “cargo efetivo” e pela “estabilidade” e, ao mesmo tempo, não ferisse a necessidade de identificação com a sua profissão. Ao conduzir o discurso para essa relação, a policial parece querer representar uma posição mais sensata, senão ética, da necessidade de identificação do policial com a atividade.

Atenta-se para o fato de que, após a descrição da sua identificação “com a profissão”, a policial modaliza subjetivamente sua fala ao apresentar que “achava que tinha interesse”, o que reforça a articulação discursiva de que sua opção por ser policial é sustentada pela “estabilidade” de um “cargo efetivo”. Contudo, seu discurso dissimula a necessidade que a própria policial enxerga de que é preciso ter alguma identificação com a profissão. A pouca ou nenhuma identificação com o trabalho tornam o trabalho algo ainda mais penoso e violento.

Entre outras locuções que expressam as influências para a escolha profissional do militar, orientadas pela segurança e estabilidade, o excerto 4, do discurso de Safira, chama a atenção por apresentar indícios de tão pouca afinidade com a profissão. Questionada sobre os fatores que influenciaram sua opção pelo militarismo, a policial responde:

Excerto 5:

NUNCA que eu sonhei, NUNCA. ISSO NUNCA PASSOU PELA MINHA CABEÇA. Foi mais pela questão de vaga, de oportunidade, de tempo. (Safira)

O que se apresenta mais relevante na fala da policial é a circunstância de tempo e frequência, representada na modalidade categórica negativa “NUNCA”, três vezes. A palavra é apresenta em destaque, dada a entonação da policial, numa tentativa de enfatizar o vocábulo. Essas circunstâncias parecem querer evidenciar a ausência de qualquer vínculo afetivo e emocional com a instituição. Para reforçar a provável desaprovação e o afastamento afetivo, a policial faz uso do processo mental cognitivo “sonhei”, complementando a conotação negativa da frase.

O pronome demonstrativo “isso”, atribuído ao ingresso na PMDF, também permite insinuar um possível desgosto da policial com a instituição. O uso do pronome “isso” também

parece uma tentativa de Safira de menosprezar o fato e diminuir sua proximidade com aquilo a que ela se refere. Esse afastamento também pode ser observado na continuidade da fala, em que a metáfora “passou pela minha cabeça”, também usada com forte entonação e prolongamento, parece querer reforçar que a escolha da policial se afasta totalmente dos seus desejos, da sua ideia ou imaginação, insinuando que estar na polícia não fazia parte dos seus sonhos, “nunca que sonhei”. As notas de campo reforçam o discurso de Safira ao mencionarem, em alguns apontamentos das oficinas, que a policial manifestava “insatisfação” com o trabalho que realizava e que seu objetivo era a carreira de Polícia Rodoviária Federal. A descrição desse objetivo pode ser observada em outro trecho da entrevista, em que a policial afirma: “Eu já tava estudando para outros concursos, mas o foco já era Polícia Rodoviária Federal”.

Para justificar a escolha profissional, embora a negação da afinidade, a policial se ancora nas circunstâncias materiais “de vaga, de oportunidade e de tempo”. Essas justificativas insinuam a submissão do desejo e da satisfação pelo trabalho frente aos benefícios que o trabalho pode gerar (Pagès et al., 2006; Enriquez, 1991; Gaulejac, 2007). Nesse sentido, Lhuilier (2013) comenta que “a falta de conteúdo simbólico envia a uma confrontação solitária com o real, sem meios de torná-lo seu, sem meios de significá-lo” (p. 486).

O excerto 5 da fala de Safira chama atenção pela ressonância e pelo impacto que a policial tenta passar com a sua verbalização. O destaque da entonação de voz ecoa como expressão de desprezo e apatia ao trabalho, encontrando apenas a razão da oportunidade uma justificativa para se manter e sobreviver do trabalho. A verbalização apresenta indícios de que a policial nega o trabalho como uma expressão de desejo e realização, o que pode inibir sua satisfação pessoal e lhe gerar desconfortos. A policial parece colocar o trabalho apenas no campo da utilidade, no sentido de troca de interesses, o que o coloca a cumprir apenas a “função específica do homem social” (Meyerson, 1987, citado por Lhuilier, 2009, p. 87), circundando apenas o sentido da redenção (Dujarier, 2009), da servidão (Gaulejac, 2011) e do sofrimento (Dejours, 1992).

Por sua fala, o militar Atílio também se soma ao grupo de policiais que ingressam na PMDF por uma questão de oportunidade e estabilidade. Ele aponta três fatores influenciadores da sua escolha profissional: a questão da segurança, as garantias da estabilidade, por meio do “emprego fixo”, e a vocação, sendo esse último explorado no agrupamento de falas da subseção posterior.

Excerto 6:

Na época [década de 90] não tinha muita opção não, não tinha outra opção não, foi mais a necessidade mesmo na época. [...] Foi em 92. É que nem eu te falei, a oportunidade de você ter um emprego fixo, um emprego que te dá condições de você ter um plano de carreira, de você poder almejar outras coisas, era mais isso mesmo. Que nem eu te falei, na época a gente não tinha muita opção e eu acredito que seja um pouco também de vocação, porque muitas pessoas naquela época, eu conheço muitas pessoas que passaram e não quiseram, que não tinha vocação, não quero ser pé de bota. Mas eu acho que foi mais isso mesmo, necessidade, um momento difícil, antigamente as coisas... Abrir um leque, antigamente tudo era mais difícil, de lá para cá as coisas mudaram muito. (Atílio)

O excerto 6 explora o contexto econômico da época para amparar a justificativa do policial para o ingresso na PMDF. Isso pode ser observado a partir das descrições temporais “naquela época”, “foi em 92” e “antigamente”. Esses recursos discursivos sugerem que a conjuntura econômica exerceu influência na sua opção pela PMDF, levando-o a apresentar a “oportunidade de você ter um emprego fixo” como determinante da sua escolha. Entre os atributos que asseguram a escolha, o policial apresenta a segurança que a PMDF oferece, materializada no discurso por meio da oração avaliativa “um emprego que te dá condições de você ter um plano de carreira, de você poder almejar outras coisas”. Na sequência, a fala sugere a conclusão com a expressão “era isso mesmo”. No entanto, o discurso é continuado apresentando que “seja um pouco de vocação também”.

O ator emprega o processo relacional “ter” repetidas vezes, recurso que é utilizado para descrever o acesso à “oportunidade” de realizar um concurso público em um momento de escassez de oportunidade de trabalho, o que pode ser observado na oração “na época a gente não tinha muita opção”.

Ao fazer referência a “muitas pessoas que passaram [no concurso] e não quiseram [seguir a carreira militar]”, o policial aciona a negativa da metáfora “não quero ser pé de bota”. A metáfora “pé de bota”, da ordem do discurso militar, sinônimo de policial de baixo escalão, gambé, coxinha, verme (Dicionário informal, 2020), reforça a ideia de que a escolha profissional do policial foi uma questão de falta de oportunidade.

A expressão sugere que o fato de não ter um emprego, de não encontrar outras alternativas e de confiar que a PMDF permitiria “ter um plano de carreira” e “poder almejar outras coisas” levou Atílio a aceitar e se assujeitar a ser visto como um “verme” (uma vez que o termo vem da ordem do discurso militar), fato a que outras pessoas, que também passaram no concurso, não estiveram dispostas se a assujeitar. Nessa instância do discurso, faz-se interessante observar que, embora a instituição ofereça a todos os mesmos atrativos de sedução para ingresso, não são todas as pessoas que se deixam ludibriar pelo “canto da sereia” (Oliveira,

2015) e conseguem se desvencilhar, não se sabe até que ponto e até quando, das armadilhas sedutoras das instituições militares. A excerto 6 da fala de Atílio sugere a compreensão de que, embora enfrentassem a mesma conjuntura econômica e os mesmos desafios impostos “naquela época”, houve pessoas que não se deixaram levar pela oportunidade de “ter um emprego fixo” ou pela possibilidade de um “plano de carreira”.

Em vista da Sociologia Clínica, verifica-se que a fala de Atílio traz à superfície o histórico problema social do desemprego, especialmente na década de 1990, um dos responsáveis pelo assujeitamento e pela mobilização do ser humano à adesão voluntária das ideologias organizacionais. No desafio da empregabilidade em um mercado em que a relação oferta e demanda de emprego se apresenta cada vez mais desproporcional, o que resta aos indivíduos é se submeterem a concorrer com as disponibilidades ocupacionais oferecidas. “Em um mundo que valoriza eficiência e desempenho, responsabilidade e iniciativa, ser desempregado é ser improdutivo, impotente, insuficiente e incapaz, condenado por não ter valor de uso, torna-se um complemento indesejável” (Lhuilier, 2009, p. 86)

Na instância do desemprego, garantir o seu lugar já alimenta o ego e dá energia para que novos investimentos narcísicos sejam acionados. Uma vez membro da instituição, a mobilização do trabalhador vai ser ativada pelo vínculo social estabelecido e pelo desejo de realização. Como afirma Enriquez (1991), o vínculo “criado produz indivíduos talhados sob o mesmo molde, experimentando entre si apenas sentimentos positivos (eles se amam como são amados). Os sentimentos hostis, que poderiam nascer pelo simples fato de que todo sentimento é ambivalente são projetados contra os grupos externos” (p. 65). A partir do vínculo, o esforço do sujeito vai se orientar para ganhar o reconhecimento da instituição, tornando-se como um pedaço dela, legitimando a força da ideologia gerencialista.

Os traços do gerencialismo, que reforçam o vínculo dessa relação, sobressaem no discurso na descrição dos atrativos que o policial visualiza para se enlaçar com a instituição, sendo “a oportunidade de você ter um emprego fixo, um emprego que te dá condições de você ter um plano de carreira, de você poder almejar outras coisas”. Eles são mecanismo de sedução que alimentam a necessidade do sujeito de “ter” algo mais que lhe complete, obter aquilo que lhe falta, e encobrem a possibilidade de existência de algo que possa contrariar seu desejo de realização. Como menciona Pagès et al. (2006), no caso da empresa TLTX, a organização se apresenta como uma imensa máquina de dar prazer ao indivíduo e, dessa forma, adquire um imenso poder sobre ele. Em troca do amor recebido, cabe ao policial satisfazer às exigências da instituição, caso isso não ocorra, é dela o direito de retirá-lo. A organização é, simultaneamente, tentadora e ameaçadora.

Retomando a questão da vocação e a resistência de “pessoas” em permanecer na PMDF, no excerto 6 o policial argumenta: “E, eu acredito que seja um pouco também de vocação, porque muitas pessoas naquela época, eu conheço muitas pessoas que passaram e não quiseram, que não tinha vocação: “não quero ser pé de bota”. O emprego do conectivo “e” e a circunstância “também” sugerem o esforço que o ator empreende para demarcar a vocação como justificativa para escolha profissional. Essa posição é sustentada pelo uso do processo mental cognitivo “eu acredito”, que coloca em evidência a posição do ator em relação aquilo que ele pensa sobre o fato. A credibilidade apresentada é cerceada pelo moderador “pouco”, evidenciando que a vocação não teve tanta influência na sua escolha profissional.

Para explicar que sua escolha profissional também foi influenciada “um pouco” por uma questão vocacional, Atílio faz uma declaração afirmativa, com alto envolvimento com aquilo que diz, por meio do processo mental cognitivo “eu acredito”. Embora o comprometimento do policial com a fala, o caráter vocacional apresentado não parte de uma inclinação natural e espontânea para a profissão, mas da sua resistência em manter-se engajado tendo em vista as “muitas pessoas que passaram e não quiseram” continuar. A rejeição das outras pessoas à instituição é reforçada pela expressão “não quer ser pé de bota”.

É possível que o fato de a vocação apresentar-se como “pouco” influente na opção de ingresso e permanência no trabalho policial, tanto para os que se justificam pelos salários e benefícios recebidos quanto para os que se justificam pela oportunidade e estabilidade, reforce a ideia de que os processos de socialização organizacional e doutrinação têm papel preponderante no alinhamento das pessoas à instituição.

A identificação policial requer a incorporação de comportamentos e atitudes que serão transmitidas por meio da ideologia militar na tentativa de superar essa “pouca vocação” e fortalecer os vínculos de respeito, obediência e disciplina aos ditames institucionais. Contudo, considerando os indicadores de afastamentos e remanejamentos na PMDF (PMDF, 2019), parece que esse processo de socialização e o modus operandi da transmissão da cultura policial têm perdido seus efeitos na sociedade moderna e diante dos propósitos de ingresso dos seus membros, requerendo o repensar e a criação de novas formas de articulação e/ou doutrinação de novos integrantes.