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3.4 Sistematização e técnicas de pesquisa: da coleta/geração de dados à análise

3.4.3 Entrevistas individuais

A técnica da entrevista constitui o terceiro recurso metodológico utilizado para coleta de informações. Essa técnica proporciona o acesso a dados particulares de cada sujeito participante da pesquisa que serão úteis para o desenvolvimento e para compreensão das relações estabelecidas entre os atores sociais e a situação pesquisada. “O objetivo é a compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos” (Bauer & Gaskell, 2017, p. 65). O uso das entrevistas permitiu um contato mais próximo com os sujeitos protagonistas da pesquisa, “favorecendo a exploração em profundidade e a observação de nuanças não alcançadas sem a proximidade do contato pessoal” (Lopes, 2008, p. 60).

As entrevistas realizadas seguiram o modelo semiestruturado (Flick, 2009b), uma técnica de geração de dados que proporciona maior flexibilidade ao pesquisador. A dinâmica de sua realização não segue uma sequência engessada de perguntas e respostas. Questões não planejadas previamente e emergentes da fala do sujeito, no momento da entrevista, podem ser aprofundadas, de acordo com a fluência das informações e das suas contribuições para os objetivos da pesquisa. O foco central das entrevistas foram as práticas sociais e os discursos sobre afastamento e retorno ao trabalho dos policiais militares do Distrito Federal, atentando para a desconstrução dos sujeitos e a construção das identidades profissionais desses atores sociais, considerados protagonistas da realidade social investigada.

As perguntas foram norteadas por um roteiro, também chamado por Blauer e Gaskell (2017) de “tópico-guia”, que inclui uma série de questões, sem muita extensão, servindo como referencial para a realização da entrevista, pautando-se sempre pela flexibilidade. A elaboração dos tópicos combinou as leituras previamente realizadas, as observações do campo e as propostas da banca de qualificação. O roteiro tinha a função de guiar a condução da entrevista como um lembrete das temáticas que deveriam ser tratadas. Todas as questões foram abertas, possibilitando que “o informante falasse livremente, sendo realizado apenas o delineamento de uma ‘trilha’, na qual constavam os objetivos de investigação” (Lopes, 2008).

As entrevistas foram realizadas em dois blocos. Em um primeiro momento, depois da primeira semana de observação no CPQV, deu-se início às entrevistas com alguns dos gestores/coordenadores de atividades vinculadas à unidade. Nesse sentido, foram realizadas entrevistas com a Chefe do CPQV, o Chefe da seção de Saúde Mental do CPQV, o Chefe do Serviço de Assistência Religiosa Católica e o Chefe do Serviço de Assistência Religiosa Evangélica. Os objetivos dessas entrevistas voltaram-se especificamente para tomar conhecimento sobre a história do serviço de atenção à saúde mental na PMDF; identificar a percepção dos gestores quanto ao processo de adoecimento mental, afastamento, retorno e acompanhamento do policial; e, por fim, se inteirar das atividades realizadas no CPQV.

O roteiro de entrevista para os gestores (Apêndice A) englobava quatro blocos de questões, com as seguintes prerrogativas de análise: 1) A atenção à saúde mental na PMDF; 2) O processo de adoecimento mental, afastamento e acompanhamento do policial; 3) O retorno ao trabalho depois do afastamento; e, 4) Outras questões que julgar necessário.

Todas as entrevistas foram gravadas com o assentimento dos participantes e realizadas mediante assinatura do TCLE. O Quadro 4 apresenta o tempo de enunciação de cada entrevista.

Quadro 4

Tempo de duração de entrevistas com supervisores

Cod. Função Tempo de

entrevista Tempo médio

01 Chefe do CPQV 53min46seg

52min11seg

02 Chefe da Saúde Mental do CPQV 54min43seg

03 Chefe do Serviço de Assistência Religiosa Católica 45min54seg 04 Chfe do Serviço de Assistência Religiosa Evangélica 53min42seg

Tempo total de entrevista com gestores 206min85seg Média: 3h26seg Fonte: elaborado pelo autor.

Essas entrevistas tiveram duração média de 52 minutos e 11 segundos, com total aproximado de 3 horas e 26 segundos. Ao final de cada entrevista, foram feitos apontamentos

em caderno de campo, com observação quanto ao comportamento e à responsividade do entrevistado com a pesquisa.

A elaboração do roteiro de entrevista com os policiais que retornaram ao trabalho (Apêndice B) contemplou fatos relacionados ao processo de ingresso e envolvimento no trabalho militar e às manifestações e impressões vividas no percurso do adoecimento, afastamento e retorno ao trabalho. Lopes (2008) descreve que, em uma pesquisa dessa natureza, as perguntas abertas apenas delineiam um percurso orientado pelos objetivos da investigação, a liberdade do informante em suas narrativas favorece a apropriação de um maior número de informações subjetivas dos entrevistados em relação às suas vivências.

A organização desse segundo roteiro contemplou cinco blocos temáticos, que permitiram percorrer as práticas sociais envoltas às temáticas: 1) o ingresso na polícia e a construção identificacional do indivíduo; 2) o ser polícia e o contexto do trabalho militar; 3) as influências da organização do trabalho no processo de adoecimento; 4) os aspectos da burocracia, do poder e do gerencialismo na instituição e; 5) o retorno ao trabalho depois do afastamento.

As entrevistas com os policiais também foram gravadas com a autorização de cada participantes e realizadas mediante assinatura do TCLE. O Quadro 5 apresenta o tempo de enunciação de cada entrevista.

Quadro 5

Tempo de duração de entrevistas com policiais Nome fictício Tempo de entrevista Nome fictício Tempo de entrevista Nome fictício Tempo de entrevista

Jade 00:59:24 Hermes 01:14:56 Ametista 00:58:57

Esmeralda 01:01:22 Criso 00:56:33 Espartacus 01:13:43

Berilo 01:07:38 Júlio 01:09:17 Lisandro 00:57:12

Jadson 01:09:46 Olívio 01:08:45 Euclásio 00:51:30 Malaquias 00:57:43 Safira 01:03:02 Leônidas 00:51:34 Rutilo 00:49:18 Alexandrino 00:53:47 Cornélio 01:19:23 Atílio 00:55:05 Theodotus 01:33:27 Jacinto 01:30:40 Tempo total de entrevistas 22:43:02 Tempo médio de entrevistas 01:04:54 Fonte: elaborado pelo autor.

As entrevistas com os 21 policiais militares participantes da pesquisa totalizaram quase 23 horas, com duração média de 1 hora e 4 minutos por entrevistado. Ao final de cada entrevista, foram feitos apontamentos em caderno de campo, com observação quanto ao comportamento e à responsividade do entrevistado com a pesquisa.

Atendo às observações de Souza e Carrieri (2014), a aplicação das entrevistas buscou deixar fluida a conversa com os entrevistados, mantendo o mínimo de interferências possíveis e evitando intervenções que pudessem influenciar ou induzir o depoimento dos sujeitos. As falas por vezes eram alongadas em determinados temas, mas, em hipótese alguma, eram interrompidas, em respeito ao entrevistado e com o objetivo de deixar florescer aspectos que só poderiam ser mencionados quando o policial se sentisse seguro o suficiente para revelar.

Quanto ao local de enunciação das entrevistas, embora a tentativa de que todas fossem realizadas em espaço diferente do CPQV, nem todas tiveram a oportunidade de assim serem feitas. Apesar da disponibilidade apresentada pelo pesquisador em poder ir ao encontro dos participantes, ao facultar o local e o horário para sua realização, alguns policiais solicitaram que fossem no CPQV. Essa escolha era sempre justificada pela proximidade das suas lotações ou acessibilidade econômica e logística.

Ciente das possíveis interferências (Souza & Carrieri, 2014), para minimizar os possíveis ruídos ou as resistências dos entrevistados, por estarem em um espaço que, de certa forma, ainda os vinculava ao espaço do trabalho, o entrevistador se encarregava de realizar as entrevistas em uma sala mais afastada do espaço de uso comum, pedia autorização para fechar a porta e partia sempre da explicação de que não tinha nenhum vínculo com a PMDF, não era do Distrito Federal e que o objetivo da pesquisa relacionava-se a um projeto de doutorado.

Em duas entrevistas, o pesquisador chegou a ser questionado se ele não era membro da corregedoria do Distrito Federal e estava infiltrado na PMDF para coletar informações. Situações dessa natureza eram sanadas com o reforço verbal do não relacionamento do pesquisador com a polícia. Não obstante, esses questionamentos auxiliavam na natureza da pesquisa, pois revelam o receio dos policiais em terem que manifestar suas opiniões em relação ao seu próprio trabalho, fato muito percebido tanto nas entrevistas quanto nas observações nas oficinas terapêuticas. O estado de alerta e a insegurança de que sempre estão sendo vigiados ecoam espontaneamente nas falas, nas ações, no comportamento, nos gestos e nas atitudes que definem o policial militar.

A seleção dos participantes deu-se em três frentes, partindo: 1) da própria observação, em que, nas primeiras semanas, já fora possível conhecer policiais que logo retornaram ao trabalho; 2) da indicação dos profissionais especialistas que atuavam no CPQV por mais tempo e teriam um número maior de possibilidades; e, 3) da indicação dos entrevistados, que, ao final das entrevistas, eram solicitados a indicar algum possível participante. Embora distintas, parte dos entrevistados foram coincidente nas quatro estratégias.

O levantamento inicial de participantes incluía 18 policiais, indicados pelos profissionais especialistas do CPQV. Todos atendiam ao critério básico para participação na pesquisa, ou seja, foram afastados do trabalho por apresentarem algum transtorno mental e retornaram após esse afastamento. Vale ressaltar que outro critério adotado para participação era o de que o retorno ao trabalho não tivesse acontecido em tempo posterior a sete meses. Essa estratégia evitaria que as informações fossem muito remotas, uma vez que a longevidade poderia interferir nas respostas, em função do esquecimento ou mesmo pela naturalização dos comportamentos possivelmente ofensivos, estigmatizantes ou discriminatórios.

De posse dessa lista, entrou-se em contato todos os possíveis participantes, notificando a indicação, a realização da pesquisa, os objetivos e a possibilidade de concessão de uma entrevista de aproximadamente 1 hora. Desse número, 10 se dispuseram a participar da pesquisa. O acompanhamento das atividades no CPQV e a aproximação dos policiais que estavam em acompanhamento psicológico permitiram o contato com outros 11 possíveis participantes. Entre esses, apenas um negou a participação alegando que estaria “dando baixa4” no serviço militar. Quando da solicitação de indicação de algum outro colega de trabalho que pudesse contribuir com a pesquisa, quatro sujeitos foram indicados. Contudo, apenas um se disponibilizou a participar. Ao final do trabalho, o grupo de entrevistados era composto por um número de 21 policiais, cujo perfil pode ser observado no Quadro 6.

Quadro 6

Perfil dos policiais participantes da pesquisa

Nome fictício Idade Estado civil Formação Patente Tempo de

PMDF

Filhos

Jade 47 Divorciada Superior Subtenente 20 anos 2

Esmeralda 28 Solteira Pós-graduação Cabo 6 anos -

Berilo 44 Casado Médio completo Terceiro sargento 16 anos 2 Jadson 51 Casado Médio completo Primeiro sargento 28 anos 2 Malaquias 45 Solteiro Pós-graduado Segundo sargento 24 anos 4 Rutilo 36 Solteiro Superior Terceiro sargento 9 anos - Atílio 47 Casado Médio completo Primeiro sargento 28 anos 2 Hermes 48 Casado Médio incompleto Primeiro sargento 28 anos 1 Criso 34 Casado Superior tecnológico Soldado 5 anos 2 Júlio 48 Casado Médio completo Primeiro sargento 26 anos 2 Olívio 48 Casado Superior Segundo sargento 23 anos 2

Safira 34 Solteira Pós-graduação Soldado 5 anos -

Alexandrino 47 Casado Superior tecnológico Segundo sargento 26 anos 2 Theodotus 42 Casado Médio completo Segundo sargento 22 anos 3 Ametista 44 Casada Pós-graduação Terceiro sargento 17 anos 2 Espartacus 34 Casado Superior completo Soldado 5 anos 2

(continua)

(Continuação)

Nome fictício Idade Estado civil Formação Patente Tempo de

PMDF

Filhos Lisandro 40 Casado Superior Terceiro Sargento 16 anos 2 Euclásio 46 Casado Médio completo Segundo Sargento 24 anos 3 Leônidas 49 Casado Suerior.tecnológico Primeiro sargento 30 anos 2 Cornélio 50 Casado Fundamental Segundo Sargento 26 anos 3 Jacinto 50 Casado Médio incompleto Segundo Sargento 27 anos 4 Fonte: elaborado pelo autor.

Vale ressaltar que o número de respondentes foi condicionado à saturação das informações referentes ao objeto em estudo. Fontanella, Ricas e Turato (2008) apresentam que “o processo de coleta de dados se satura quando há a percepção de que os dados novos a serem coletados (...) não são mais absorvidos na formulação teórica que se processa, não mais contribuindo para seu adensamento” (p. 24). Contudo, considerando as críticas de Carlsen e Glenton (2011), Malterud et al. (2016) e Morse (2015), quanto ao conceito de “saturação” em pesquisa qualitativa, este estudo levou em conta o conceito de poder da informação, proposto por Malterud et al. (2016). O estudo desses autores descrever que a determinação do número de participantes deve ponderar cinco itens, que quando relacionados vão influenciar no poder de informação da pesquisa, quais sejam: 1) o objetivo do trabalho; 2) a especificidade de experiências, conhecimentos ou propriedades dos participantes a serem entrevistados; 3) a teoria disponível sobre o tema tratado; 4) as habilidades do entrevistador na condução da entrevista; e, 5) a escolha estratégica de análise de acordo com a pesquisa em curso. Refletidos esses elementos, considerou-se que 21 entrevistados seria um número suficiente para a proposta de pesquisa.

Dada a necessidade de materialização das falas em textos para análise, todas as entrevistas foram transcritas, gerando um volume de 387 páginas. Para tanto, adotou-se as mesmas convenções de transcrição de Magalhães (2000), explícitas no Quadro 7.

Quadro 7

Convenções de transcrição

Símbolo Correspondência

(...) Interrupção no fluxo da fala // Pausa na fala

Letra maiúscula Ênfase

Entre hifens Repetição ligeira Fonte: Magalhães (2000).

Na próxima seção, buscou-se descrever o processo de construção e organização do texto das entrevistas em corpus para análise.