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4.1 Eixo 1: Os fatores influenciadores da entrega e submissão à dominação militar

4.1.3 A adesão pela idealização e projeção

Diferente do discurso dos policiais até então analisados, Cornélio e Lisandro apresentam a idealização como justificativa principal das suas escolhas profissionais. O processo de idealização refere-se a um modo de identificação no qual as qualidades e o valor do objeto idealizado são elevados a uma condição de perfeição, um mecanismo de “fascinação”, que empobrece o ego do policial e o leva a aderir ao militarismo, por acreditar que ele é capaz de suprir todas as suas necessidades. Ao ser questionado sobre sua opção para ser policial, Cornélio diz:

Excerto 7

Eu, desde pequeno, tinha o sonho de ser policial, eu achava muito bom combater a criminalidade, então a minha opção era ser um policial, inclusive eu fiz concurso primeiramente para Aeronáutica, depois eu fiz para o bombeiro, mas não quis e a opção foi para ser policial militar. (Cornélio)

Através da modalidade subjetiva, marcada pela presença do sujeito em todas as orações verbalizadas, a fala de Cornélio apresenta forte compromisso com as suas declarações. Isso pode ser justificado pela avaliação positiva, com apropriação do juízo de valor “muito bom”, que o policial faz da imagem representativa que ele tinha da instituição militar: “eu achava muito bom combater a criminalidade”.

As articulações discursivas de Cornélio sugerem que a sua escolha profissional se dá a partir de um processo de idealização, visto que o imaginário do policial combatente é idealizado “desde pequeno”. Ao se projetar nesse ideário de herói, que “combate a criminalidade”, o ator parece se identificar com a profissão, o que o leva a criar uma predisposição afetiva e sustentar “o sonho de ser policial”. Essa inclinação para a profissão leva o policial a desprezar outras oportunidades, como verbalizado no “não quis”, insinuando o descarte de outras possibilidades de carreiras profissionais, como a “Aeronáutica” e o “bombeiro”.

No excerto 7, a fala de Cornélio sugere a idealização como principal determinante da sua escolha profissional, o que contribui para maior devoção aos desejos institucionais e subordinação da sua subjetividade. Acreditando no ideário construído, o policial tende a ignorar todos os aspectos negativos que a instituição pode apresentar. Seus desejos de realização levam ao investimento incondicional, a um total abandono e à entrega da subjetividade à instituição, que se apodera do poder concedido e instrumentaliza, o quanto possível, o profissional. Enriquez (1991) e Araújo (2009) mencionam que, na expectativa de realização, as ações dos sujeitos buscam a fusão com a organização, que passa a ocupar o lugar do seu ideal de ego.

Utilizando o discurso de Freitas (2000), respeitadas as devidas proporções, pode-se assimilar a organização militar à empresa moderna, que consegue criar na cabeça de Cornélio uma imagem grandiosa, onipotente e sedutora, disponível apenas para um grupo seleto de pessoas. O imaginário construído no “sonho de ser policial” e por achar “muito bom combater a criminalidade” parece seduzi-lo. A confiança depositada na instituição parece levá-lo a acreditar que ela seria capaz de transformá-lo em um tipo de herói. Contudo, isso não passa de um imaginário enganoso (Enriquez, 1991) que, ao ser desvelado, é responsável por frustração, desencanto e adoecimento mental do policial.

Como afirma Enriquez (1991, p. 287), “a sedução reside na aparência e jogo das aparências”, capaz de seduzir seu admirador e tirar dele qualquer coisa que deseje. A fala de Cornélio pressupõe um processo de sedução, que é sustentado pela imagem que ele mesmo criou da instituição. É possível que esse fascínio o leve a acreditar ser o agente construtor da sua própria vida, mas na realidade é a instituição policial que está o produzindo e modelado até no seu interior (Pagès et al., 2006).

Em sintonia com o discurso de Cornélio, o excerto 8 da fala de Lissandro também apresenta a idealização como justificativa principal da sua opção por ser policial. Ao descrever sobre os motivos que o incentivaram a ser/escolher a profissão, o policial declara:

Excerto 8

A princípio, vocação, vale alguma coisa assim? Eu era criança, meu tio que eu sempre me espelhava, admirava, era policial e eu falei que ia ser policial e cresci com isso na cabeça. Eu sempre fui da roça, vida simples, tinha aquela coisa de militarismo, de achar bonito, gostar e cresci com isso na cabeça, tanto que eu vim pra Brasília depois que eu terminei o segundo grau. (Lisandro)

No caso de Lisandro, o comprometimento com a verdade na troca de informações é realizado por meio da modalidade epistêmica, utilizada como recurso discursivo através do uso da pergunta retórica “vale alguma coisa assim?”, depois de expor que “a princípio” a sua opção por ser policial havia sido “vocação”.

A pergunta retórica parece uma estratégia de ironia, que sugere a construção da ideia de que vocação não seria um parâmetro de avaliação para a escolha profissional, desvelando uma avaliação negativa sutil da profissão. A articulação discursiva sugere uma subestimação da vocação como justificativa para a escolha profissional dos policiais. Essa característica de subestimação da vocação parece insinuar a existência ou a sobrevalorização de outros possíveis valores que determinariam a sua escolha profissional, como, por exemplo, dinheiro, carreiras ou benefícios, conforme mencionado no discurso de outros policiais, que são explícitos ao

revelarem seus interesses com a profissão.

Para explicar sua vocação, no excerto 8, o policial Lisandro utiliza-se de declarações afirmativas com alto grau de envolvimento, revelando um processo de identificação com o “tio”, que “era policial” e no qual ele se “espelhava” e “admirava”. A escolha profissional orientada pela identificação é reafirmada pelo policial ao apresentar, metaforicamente, que “cresci com isso na cabeça”, aludindo a quanto o desejo de ser policial crescia junto consigo desde que “era criança”.

O policial relata sua admiração pela polícia também por meio de um processo de idealização do militarismo. Ao mencionar que “tinha aquela coisa”, a expressão do policial parece entoar o fato de ser policial como algo superior, que concederia a ele um status superior aos demais. O discurso do policial sugere que, “na roça”, onde vivia “uma vida simples”, a condição de ser policial poderia o diferenciar dos demais. É o fato de ser “aquela coisa” que parece atrair Lisandro e levá-lo a “crescer com isso na cabeça”.

A metáfora “crescer com isso na cabeça” faz referência à persistência no desejo de ser policial, o que parece insistir nos pensamentos de Lisandro desde a infância, quando da admiração pelo seu tio policial. Essa persistência parece estar associada ao imaginário criado pelo participante de que, na roça, ser policial é status de ser superior, o que justifica esse primeiro “gostar” da profissão. Como na fala do policial Jacinto, analisada na seção 4.1.1, o discurso de Lisandro também parece tentar traçar uma “saga” de herói, que parte de uma vida humilde para “se fazer” na polícia, se sentir valorizado e reconhecido. A continuidade da fala de Lisandro reforça a persistência e o investimento no desejo de ser policial, descrevendo os passos da sua trajetória, “eu vim para Brasília, depois que eu terminei o segundo grau”.

Há indícios de que o narcisismo também opere na fala do policial Lisandro, quando da sua projeção na imagem do tio, quem ele se “espelhava” e “admirava”. Como no mito de Narciso, o policial parece se apaixonar pela imagem projetada pela polícia, representada na imagem do tio, a de tornar-se, literalmente, “uma pessoa acima das outras, objeto de reconhecimento e de admiração” (Siqueira, 2009, p 88). A projeção que Lisandro faz da polícia insinua que, ao realizar seu sonho, ele poderá se tornar superior aos demais, o que pode levá-lo a fundir-se com o objeto de fascínio e afastar-se de si na esperança da realização do seu sonho. Como afirma Freitas (1999, p. 114), “trata-se de uma verdadeira gestão psíquica do sujeito, na qual todos os caminhos, em última instância, o levam à frustração”. Assim como Narciso, o policial Lisandro também tende a estar condenado a um amor impossível. Ele se desdobrará para satisfazer às elevadas expectativas que ele mesmo criou sobre a instituição, oque reforça essa expectativa, demandando um perfil perfeito e impossível de ser atingido.

Associado à criação imaginária de que ser polícia o torna superior aos demais, o excerto de fala insinua, ainda, que Lisandro projeta na polícia a imagem que ele tem do tio. Isso sugere a criação de um laço social forte, inspirado em um vínculo afetivo familiar. Esses elementos parecem fundamentar as justificativas encontradas pelo policial para a escolha da profissão, o que o leva a investir naquilo que persistia em ficar na sua cabeça. Fazendo analogia às prerrogativas de Enriquez (1991), no que tange ao vínculo libidinal com a organização, é possível que a admiração e amor que o policial tem pelo “chefe supremo”, idealizado na figura do tio, seja o que mobiliza o desejo de se vincular à polícia. Embora não manifeste a relação estabelecida com o tio, ancorando nas análises de Enriquez (1991), sobre a obra freudiana Totem e Tabu, é factível a compreensão de que o vínculo identificacional com a instituição parte do poder libidinal que, de alguma forma, o tio exercia sobre ele, um mix mortífero que pode estar associado ao temor e/ou à admiração.

Ao espelhar-se no tio, imagem corporificada da instituição, o policial declara se render, desde a infância, a construir um projeto de vida fundamentado na fantasia do que é ser polícia, “cresci com isso na cabeça”. À luz da Sociologia Clínica, o encantamento com a instituição alimenta a esperança de uma fusão simbiótica com o objeto desejado, pois é ele que garantirá a sua realização, um investimento alto do psiquismo do policial (Araújo, 2009; Enriquez, 1991, 1997b).

Considerando o adoecimento do policial, é possível sugerir que, ao se deparar com o real do ser polícia, depois de dedicar-se à profissão por 16 anos, e não encontrar os resultados do seu investimento, o que lhe resta é a angústia de uma busca infinita, a frustração de um sonho fracassado e a morte (simbólica) do objeto desejado por toda a vida. O peso desse sofrimento é então somatizado no corpo e os transtornos psíquicos vão maquiar o insuportável dessa relação. Como menciona Freitas (1999), embora o indivíduo desenvolva com a organização uma relação pessoal, acreditando que os afetos são possíveis e recíprocos, “a organização não ama, não tem sentimentos, não tem desejos, não tem angústias, nem remorsos e nem esperanças” (p. 87).