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2.4 O trabalho policial: modelo ultrapassado, estigmatizado e identificacional

2.4.2 O estigma da profissão: a atividade policial como “trabalho sujo”

A atribuição do termo “trabalho sujo” à classe de policiais dá-se em função da periculosidade e do estigma social existente, que associa seus serviços a crimes, violência, conflitos e marginalização. Esses profissionais, que lidam com “o resíduo da sociedade [...] para ‘filtrar’ as situações indesejadas por essa sociedade” (Poncioni, 2006, p. 175), estão associados a uma definição bastante pejorativa e a uma variedade de outros elementos que justificam a classificação.

Em sua origem, o conceito de “trabalho sujo”, em si, já remete à profissão policial, quando das reflexões de Hughes (1962), citado por Batista e Codo (2018) e Poncioni (2006), em referência às “atividades de extermínio dos judeus pelos agentes militares do regime nazista nos campos de concentração” (Batista & Codo, 2018, p. 73), atividades essas que tinha por fim “‘limpar’ a Alemanha dos indivíduos considerados perigosos e indesejáveis do regime” (Poncioni, 2006, p. 176).

A associação do “trabalho sujo” no contexto policial leva Paixão (1982, citado por Poncioni, 2006) a descrever o policial como “lixeiro da sociedade”, uma representação profundamente vinculada à visão hegemônica de uma sociedade racista, misógina, machista, elitista e preconceituosa. Na “hierarquia de credibilidade” estabelecida pela sociedade brasileira, o lugar reservado ao público atendido pela polícia – os pobres, os negros, os homossexuais, as prostitutas, as “crianças de rua”, os criminosos etc. – é o do descrédito, do desrespeito e do desprezo, por essas pessoas serem considerados de menor importância, haja vista não ocuparem uma posição socioeconômica e cultural de prestígio. Por analogia, a posição da polícia nessa hierarquia não podia ser outra: além de lidar com a marginalidade criminosa, ela lida prioritária e majoritariamente com os “marginalizados” econômica, política e culturalmente por essa mesma sociedade (Ponciano, 2006).

No oposto da concepção de Ponciano (2006), mas sem tirar o caráter sujo do trabalho policial, Dick (2005) utiliza-se do conceito para explorar a dinâmica da reprodução e transformação ideológica e a construção de identidades organizacionais e culturas de grupos de trabalho. O autor apresenta que a designação de “sujo” difere de acordo com a perspectiva do

observador, revelando os limites e o cenário de diferentes ordens morais e sociais e como eles se sobrepõem e competem. “Dentro de certas formas de contexto interacional, a identidade ocupacional compreende um local de contestação por essas diferentes ordens morais e sociais” (Dick, 2005, p. 1365). Ao resistir ao status de "trabalhador sujo", o policial afirma seu poder como agente para redefinir e contestar o significado do que faz. Na definição de Dick (2005), a atividade policial é contaminada com o estigma do “trabalho sujo” justamente pela ambiguidade moral atribuída a algumas de suas tarefas principais e aos grupos com os quais costumam lidar.

Estudos mais modernos incluem outros aspectos para considerar o trabalho da polícia no bojo das ocupações identificadas como “trabalho sujo”, a exemplo dos trabalhos de Wood et al. (2017), De Camargo (2019), Nunes (2018), Morais e Paula (2010), Kilgallon (2019) e Mattos (2012).

Wood et al. (2017) resgatam pesquisas que descrevem a atividade policial como um “trabalho sujo” em função da sua íntima relação com as áreas mais carentes e perigosas das cidades, bem como por se ver responsável por cuidar, frequentemente, de pessoas que não podem cuidar de si mesmos, como mendigos, embriagados, viciados, doentes mentais, idosos, deficientes físicos e muito jovens.

O estudo de De Camargo (2019) aponta aspectos físicos e simbólicos que definem o trabalho policial como um “trabalho sujo”. Embora protegidos, de alguma forma, por um “escudo de status”, policiais são afetados por diferentes tipos de contaminação, seja no trato com cadáveres ou na lida com indivíduos doentes ou rejeitados, em que o uniforme serve, involuntariamente, de veículo de contaminação social. O estigma é associado ao simples fato de esses trabalhadores lidarem com a escória social.

No dilema entre “’trabalho sujo’ ou missão de vida”, Nunes (2018) descreve o ofício policial como sujo, em função da sua relação com a violência, que é reproduzida e legitimada por meio da letalidade. A morte não se trata de uma ação ideologicamente mobilizada no cotidiano dos policiais, mas faz parte da crença de que a missão da polícia é “caçar” bandidos. Isso coloca a disposição homicida como parte central da atividade policial (Nunes, 2018). Apesar dessa identificação, a crença no homicídio como mecanismo legítimo de resolução de conflitos não é comungada entre todos os policiais.

Em Morais e Paula (2010), a atribuição de “sujo” ao trabalho policial é referenciada ao defini-lo como um trabalho que envolve uma tarefa socialmente degradante da sociedade e que lida com a escória do sistema social. Corroborando, Mattos (2012) menciona que a imagem social do militar é, frequentemente, associada a elementos depreciativos num cenário permeado

por sentimentos como medo, insegurança e repressão. Marcados por diferentes violências, esses profissionais tendem a se perceberem hostilizados e mal compreendidos, em permanente descrédito social. O estigma social, que insere a atividade policial nas ocupações menos privilegiadas, leva os profissionais a criarem lógicas pessoais e formas positivas que confiram sentido às suas atividades, influenciando os processos de identificação profissional e social.

Como instigam Minayo e Adorno (2013), parece haver na sociedade uma mentalidade de que o policial nada mais é do que instrumento de produção de segurança pública. O policial encobre a falta do Estado em manter a ordem social, sem comprometer a imagem moral e positiva de que esse Estado necessita, um modo particular de operação do poder disciplinar. Na necessidade de ser bem articulado, o Estado domina seus espaços a partir da delegação do “trabalho sujo” a grupos de pessoas que têm a obrigação da limpeza social. Com isso, garante a normalização e a regulação das condutas, obscurecendo a operação e legitimação do poder.

Para sustentar esse objetivo de manter a ordem do sistema, o Estado utiliza-se do poder disciplinar, de forma a modelar os sujeitos e garantir forte adesão institucional. Os modos de formação operam de forma a minimizar a identidade pessoal e construir uma identidade específica militar.