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4.1 Eixo 1: Os fatores influenciadores da entrega e submissão à dominação militar

4.1.4 Adesão pelas influências do Outro

Na mesma linha de influências externas, ao serem questionados sobre o que os levou a escolherem ser policial, Malaquias e Euclásio apresentam seus familiares como principais influenciadores. A verbalização de Malaquias começa com uma declaração afirmativa de que

tem “uma família quase toda militar” e segue pontuando o envolvimento parental com a instituição.

Excerto 9

Eu tenho uma família quase toda militar. O meu pai é policial militar aqui em Brasília mesmo, meus tios eram, tenho um primo e, inclusive, tenho primos que entraram no mesmo curso que o meu. E eu tinha duas opções de emprego: o bombeiro e a polícia militar, fiz os dois concursos e passei, mas o da polícia militar chamou primeiro, então eu fui para o primeiro que apareceu. Eu me identifiquei e fiquei, não quis trocar e aí estou até hoje. (Malaquias)

No excerto 9, da fala do policial Malaquias, suas declarações se realizam repetidas vezes por meio do processo relacional possessivo “eu tenho” para expressar a herança familiar do militarismo na família do policial. Os processos materiais explícitos nos verbos “fiz”, “passei”, “fui”, “apareceu” e “fiquei” demostram o desenvolvimento das ações do policial em função de ingressar no grupo dos familiares que já eram policiais. A fala de Malaquias aproxima-se muito das articulações do Lisandro ao apontar as referências familiares como influências para sua escolha profissional. A questão do gênero destaca na fala, pois todas as referências são ao sexo masculino. Discursivamente, a articulação utilizada suscita indícios de reforçar a visão da profissão policial como orientada para homens.

No excerto 9, o ator explora a conjunção aditiva “e” para sequenciar as circunstâncias que envolviam sua escolha profissional, uma vez que “tinha duas opções de emprego: o bombeiro e a polícia militar”. Diferente dos policiais entrevistados, que justificam seu ingresso na PMDF como uma falta de oportunidade, Malaquias evidencia em seu discurso o mérito de ter sido aprovado em dois concursos no mesmo período, o “bombeiro e a polícia militar”.

A conjunção adversativa “mas”, posteriormente complementada pelo elemento textual conclusivo “então”, apresentam-se como recurso que parece justificar a compensação pela escolha selecionada, fundamentada, discursivamente, apenas pelo fato de que a “polícia militar chamou primeiro”.

Reconhecidos os elementos psíquicos que operam nas escolhas dos sujeitos, sejam as relações de identificação, o vínculo, o narcisismo ou a projeção, comentados em análises de excertos anteriores, verifica-se aqui a limitação do policial em creditar sua escolha apenas àquilo que é da ordem do consciente, ignorando a congruência entre os desejos inconscientes e imaginários na construção identificacional do policial. Como menciona Lhuilier (2006), existem muitas realidades além daquelas percebidas no mundo exterior e configuradas pela textura física e social. Existem situações, experiências infantis e da vida pessoal, que fazem a ligação entre o sujeito e suas ações. É de fato um encontro entre o sujeito em ação, a estrutura

simbólica e o segmento da realidade apreendido.

No caso de Euclásio, excerto 10, sua opção por ser policial também recebeu influência da família. Para descrever isso, ele se utiliza da avaliação e da modalidade, de forma a identificar como se deu a influência familiar como principal fator para sua escolha profissional, contribuindo para compreender sua construção identificacional.

Excerto 10

A questão de ser policial não foi escolha minha, isso aqui eu posso dizer, foi meu irmão mais velho, ele é policial aposentado, major. [...] Hoje eu agradeço a ele. Entrei na instituição e estou aqui até hoje, se eu falar que entrei porque gosto do militarismo é hipocrisia, a gente aprende depois, com o tempo, mas quem é Civil, falar que gosta de militarismo não é bem assim. (Euclásio)

Partindo de uma declaração negativa categórica, o ator externaliza que a escolha por ser policial “não foi” sua. Por meio de presunção valorativa, o ator apresenta que “isso aqui eu posso dizer”, subentendendo a impossibilidade de se falar do assunto de outro(s) lugar(es), que não descreve quais. Da mesma forma, o sintagma “eu posso” pode ser visto como marcador da modalidade deôntica6, em que o ator oferta, ou se abre, para a possibilidade de reconhecer que a sua decisão profissional foi feita por seu “irmão mais velho”.

Atribuir ao irmão a responsabilidade da escolha subjaz, per si, uma natureza de submissão do policial. Na fala ele explora elementos discursivos que possam materializar a sua sujeição. Assim, o policial apoia-se nas características objetivas que tornam o irmão discursivamente superior, quais sejam: “mais velho”, “policial”, “aposentado” e “major”. Todos os qualificadores colocam Euclásio em uma situação de inferioridade. O discurso encobre a sua identificação e a idealização do policial pelo irmão, o que o mobiliza psicologicamente para buscar reproduzir aquilo que o irmão representa para ele.

Outra categoria, que se destaca no discurso do excerto 10, refere-se à escolha lexical utilizada para negar que ingressou na PMDF por uma questão de afinidade com o “militarismo”. Para ele, afirmar esse afeto é uma “hipocrisia”. Ao identificar o vocábulo como “falsidade; ação ou efeito de fingir; ou a capacidade para esconder os sentimentos mais sinceros” (Aurélio, 2020), verifica-se que a escolha objetiva parece reforçar a ideia de que sua identificação não é com a instituição militar, mas com o vínculo que ele tem com o irmão. O poder conferido ao irmão sugere que o policial possa acreditar que ser policial também o colocará na posição de superioridade. Se é a polícia que identifica o irmão, é na polícia que ele vai investir o seu ego.

6 A modalidade deôntica se manifesta no eixo da conduta; o produtor a utiliza para impor, obrigar, ou permitir

Ao sumarizar os resultados do eixo 1, referente aos fatores influenciadores da entrega e submissão do policiais à dominação militar, identifica-se que os discursos eminentes sugerem que, ao ingressar na PMDF, nem todos os policiais parecem possuir uma verdadeira identidade com a organização policial. O processo de formação envolve valores, atitudes e normas, que tendem a ser internalizados em todas as esferas da vida do sujeito (Burgi, 2011; Morais & Paula, 2010). Para além das qualificações profissionais, habilidades, técnicas e atitudes, o CFP tem como finalidade a formatação de um estilo de vida particular do serviço militar, pois, como afirma Janowitz (1967, p. 129), “a vida militar é uma vida institucional”.

Os discursos apresentados associam a escolha profissional dos policiais aos aspectos referentes às poucas oportunidades de trabalho, aos benefícios econômicos proporcionados e à segurança que a estabilidade profissional no militarismo pode gerar. Observa-se que poucos entrevistados apresentam a opção pelo trabalho como uma questão vocacional ou de identificação, contrariando estudos que insistem em dizer que ser policial está “impregnado no sangue” (Almeida, 2012; Mello & Nummer, 2017). Relembrando Enriquez (1991), cabe ressaltar que, embora a negação discursiva da vocação, a entrega ao trabalho dá-se por meio de uma vinculação libidinal, que é marcada pelo paradoxo amor e ódio, segurança e perseguição, aproximação e distância e aliança e competição.

É principalmente durante o CFP, sem negar a influência dos demais ritos, símbolos e normas, que, submetidos às rígidas pressões e repressões hierárquicas, os indivíduos se moldam aos preceitos do militarismo. Não obstante, o sintagma “curso de formação” já ecoa como recurso discursivo para a ideia de construção identificacional, um modo de “entrar na fôrma” e construir um novo ser. Observa-se que, embora os sujeitos neguem sua identificação com o militarismo, há um processo de assujeitamento, uma identificação velada que acaba por ser explicitada na rendição aos benefícios que a instituição promove.