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2.4 O trabalho policial: modelo ultrapassado, estigmatizado e identificacional

2.4.3 A construção identificacional do sujeito policial

A variabilidade do olhar social sobre a profissão da polícia, que ora assume o papel de herói, ora de vilão, suscita uma volubilidade das identidades dos agentes policiais, criando identidades fragmentadas, múltiplas, contraditórias e em contínuo processo de transformação (Hall, 2006). Vale lembrar que a identidade profissional que vai sendo construída pelo militar não se descola da sua identidade pessoal, invadindo sua subjetividade, o que Ramos (1989) classifica como um instrumento disfarçado de repressão social. Morais e Paula (2010) corroboram ao identificar que a atuação profissional extrapola o espaço e o tempo de trabalho, interferindo na forma de ser e pensar do policial, atuando na construção social do indivíduo.

Ressalta-se que essas alterações identitárias do policial não podem ser atribuídas apenas à prática profissional, mas a um processo de deslocamento do sujeito de sua condição de cidadão comum para a de “ser policial”. Esse processo de formação identitária tem início nas escolas de formação – ou melhor, de transformação de um sujeito em policial, como afirma

Freitas (2000), e, sendo as organizações espaços de comportamento controlado, é ideal que o controle social passe pelo controle da identidade do indivíduo.

No caso das faculdades de polícia, aqui pontuando estudo de Owen (2016) realizado na Nigéria, verifica-se que elas regimentam, iniciam e transformam seus acadêmicos, suplantando ou complementando suas identidades e considerando que essas identidades sejam incompletas. Como afirma Owen (2016), o processo de formação institui que “a criação de oficiais como sujeitos institucionais, cuja agência é circunscrita por hierarquia e disciplina, é fundamental” (p. 40),

Junto à questão da transformação da identidade, verifica-se o espaço de controvérsias que envolve o ofício policial, “no qual se engendra uma realidade ainda pouco conhecida pela sociedade: a do policial trabalhador, cuja função é conter a violência, mas que, ao mesmo tempo, corre o risco de reproduzi-la e/ou de ser vítima dela” (Spode & Merlo, 2006, 362).

Em estudo sobre o funcionamento dos processos de legitimação e autoridade nas práticas cotidianas da polícia no Norte da Índia, Jauregui (2010, p. 13) caracteriza a polícia como “uma raça estranha de sujeitos que são simultaneamente autoritários, mas também muitas vezes impotentes”, vistos globalmente como “opressores, não os oprimidos; os violadores dos direitos humanos, não os violados; os instrumentos de dominação e poder ilimitado que combatem as insurgências subalternas, não os sujeitos que incitam essas insurgências”.

Lopes Júnior et al. (2011) apontam que a manutenção da ordem pelas polícias deixa marcas profundas em sua interação com outros grupos sociais. Isso se explica pelo fato de que as missões de preservação do direito e da ordem pública, de prevenção da criminalidade e de defesa do regime de normas impostas pelas instituições policiais, por vezes, dificultam os relacionamentos.

Na multiplicidade de identidades, Guest (2012) menciona que, no poema “The uniform”, do policial William Emsden, a identidade do trabalho policial elimina a identidade pessoal. O uniforme aparece como sinônimo da profissão que veste os valores e o mérito do policiamento, ao mesmo tempo que esconde possibilidade de que o policial possa assumir seus valores e sentimentos pessoais. O poema enquadra uma perspectiva de compensação da perda pessoal pelo reconhecimento do policial como objeto de simpatia e ternura, o super-herói social. A dificuldade levantada pelo discurso sentimental no poema refere-se, assim, às idealizações do autossacrifício heroico.

Tambem no contexto da perda da identidade pessoal, pela qual passa um policial, recorre-se ao clássico “O espelho”, escrito no século XVIII, por Machado de Assis. O conto narra a história do personagem Jacobina, sujeito proveniente de uma família humilde que recebe

o cargo de alferes, colhendo dele os louros de uma identificação nobre. No percurso da descrição Assis (2004) relata a impossibilidade de Jacobina se ver no espelho sem que traje seu uniforme de Alferes. Numa perspectiva realista, o conto relata a supressão da identidade interna do sujeito pela identidade atribuída pelo outro em relação àquilo que se transforma a partir do cargo.

Ao estudar as narrativas dos policiais militares em atendimento clínico, Sales e Sá (2016) definem que suas narrativas são objetivadas pelo universo institucional do militarismo, “termo com o qual apresentam o modo de dominação da organização corporativa militar, historicamente marcada pelas exigências de ordem, silenciamento e autoritarismo” (p. 182). Os autores mencionam que a “agência da subjetividade dos atores sociais passa pela análise dos seus modos de percepção, afetos, desejos, pensamentos, medos e formações culturais no campo de suas práticas de poder” (Ortner, 2006 apud Sales & Sá, 2016, p. 182).

Morais e Paula (2010) comentam que, nas organizações militares, a função dos treinamentos ultrapassa o interesse de qualificar o policial, mas intenciona, também, submetê- lo à ideologia dominante, garantindo a dominação do trabalhador e levando-o a desempenhar devidamente o papel que representa. Esse controle do indivíduo passa pelo silenciamento e pela eliminação dos conflitos internos e, conforme os autores apontam, pode ser exercido a partir da “uniformização, reduzindo a complexidade humana, de forma a automatizar o comportamento do indivíduo” (Morais & Paula, 2010, p. 638). Nesse sentido, o trabalhador policial não passa de um recurso, nada mais do que um objeto instrumental entre os tantos outros necessários para o pleno funcionamento da segurança pública (Morais & Paula, 2010; Minayo & Adorno, 2013). As especificidades do trabalho militar parecem apresentar facetas particulares que fazem da ideologia gerencialista apenas mais uma das pressões sofridas pelos servidores da segurança pública. Em meio às tecnologias, modelos e recursos de gestão no contexto militar, verifica-se o direcionamento dos esforços para o alcance dos objetivos institucionais. Muito além da força física e da virilidade, a ideologia militar explora as potencialidades psíquicas dos indivíduos, provocando o adoecimento e fomentando um contínuo processo de introjeção do sofrimento, do abandono e da individualização, mascarados pelo ideal de herói e protetor social. Esses mecanismos são apontados como responsáveis pelo caos social no mundo do trabalho (Enriquez, 1995; Faria & Meneghetti, 2011; Pagès et al., 2006).