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2.6 Atravessamentos do trabalho militar: o controle pela burocracia e pela ideologia

2.6.2 Ideologia gerencialista: poder e controle via subjetividade e afeto

Os conceitos que perfazem a ideologia gerencialista têm como base os estudos críticos de origem francesa, muito orientados pelos trabalhos de Max Pagès e outros pesquisadores, no final da década de 1970, e evoluídos nos estudos de Aubert e Gaulejac (1991); Enriquez (1991, 1997b, 2007) e Gaulejac (2007, 2014). A essência da sua formação é a crítica ao gerencialismo, ideário de reforma do Estado que se fundamentava na cultura do empreendedorismo e no esforço do trabalho (Bendassolli, 2007; Paula, 2005). Baseado no individualismo, no culto à excelência, na ambição criativa, na inovação, na independência, na flexibilidade e na responsabilidade pessoal, o gerencialismo contribuiu para “fixar no imaginário social fantasias de oportunidade de progresso e crescimento” (Paula, 2005, p. 37).

Estudos organizacionais críticos, de origem predominante francesa, têm discutido o aprisionamento do indivíduo à organização, pela via do psiquismo e do vínculo afetivo dos trabalhadores. Esses estudos têm inspiração no olhar crítico do gerencialismo. Para tal feito, desfazem do olhar economicista e buscam fontes, principalmente, na psicanálise, na Sociologia Clínica, na Psicossociologia e na Psicologia. Eles buscam analisar o mal-estar do trabalho na

sociedade hipermoderna (Aubert & Gaulejac, 1991; Gaulejac, 2007, 2014; Pagès et al., 2006); a precariedade subjetiva dos trabalhadores (Linhart, 2014); a ideologia, o poder e o vínculo social nas organizações (Enriquez, 1991); as patologias e o adoecimento no trabalho (Gaulejac, 2007; Lhuilier, 2010); entre outras temáticas que perfazem os vínculos sujeito-organizações.

O poder das organizações em subordinar o sujeito aos seus objetivos encontra força no desejo narcísico do indivíduo. Na expectativa de realização, ele se entrega à instituição, confiante de que vale a pena investir todos os seus esforços no seu objeto de idealização. Ele se entrega à organização por acreditar que encontrará nela o reconhecimento do seu desejo e o desejo do seu reconhecimento. Enxerga-se aceito em suas diferenças e desejos, ao mesmo tempo que se identifica com os desejos da organização (Enriquez, 1997b), o típico controle pelo amor, uma identificação total com o objeto amado.

Para Enriquez (1991), “o objeto que nos serve de objeto idealizado, que podemos amar e admirar, é o que surge no lugar de nós mesmos, enquanto objeto admirável, investido pela libido” (p. 67). A organização constrói um imaginário social enganoso, que prende os sujeitos em seus próprios desejos narcísicos; um modo de idealização doentio, que pede aos indivíduos para idealizá-la, identificar-se com ela e lhe entregar todo o seu amor e devoção, incondicionalmente. Juntos esses mecanismos concorrem para a criação do mito coletivo, impedindo outras visões de mundo ou outros comportamentos. Os valores, as normas, os ritos, os mitos e os símbolos institucionais vão sendo introjetados na mente e incorporados no comportamento, aplacando resistências e as possibilidades de um sujeito autônomo e autorreferenciado. Edifica-se um verdadeiro corpo social, em que a semelhança buscada, aliada à igualdade leviana, pode dar lugar “a uma linguagem hermética e a condutas normalizadas”, ou ainda, à “formação de indivíduos uniformes, homogêneos, inventores de normas rígidas e profundamente interiorizadas, às quais cada um deverá se submeter” (Enriquez, 2001, p. 67). A ideologia gerencialista cria ilusões e mascara um sistema de poder e dominação. A partir da ideologia, identifica-se um processo de “coisificação” do indivíduo. As organizações se encarregam de criar contínuos instrumentos de controle, que manipulam o comportamento dos indivíduos e de sua subjetividade (Siqueira, 2009). Centrados em si, esses indivíduos deixam de interrogar o funcionamento da organização, “particularmente sobre a violência que nela reina” (Gaulejac, 2007, p. 189).

Impulsionados pelos desejos de realização e pela ideologia do sucesso, os trabalhadores esquecem suas limitações e banalizam o sofrimento. Eles são aprisionados na necessidade de mostrar resultados e serem fiéis à organização. Na busca de suprir as carências dos trabalhadores, as organizações se apresentam como grandes protetoras, procurando captar os

anseios narcísicos de seus membros e prometendo-lhes ser fonte de reconhecimento, de amor e de identidade, podendo preenchê-los e curá-los de suas imperfeições e fragilidades. Seduzidos pelas promessas, os indivíduos caem na armadilha da autorrealização e na ilusão de que a instituição é capaz de suprir suas demandas de ego. Com os trabalhadores aprisionados nas fantasias das organizações, as ações coletivas são corroídas pelas ambições individuais. O anseio pelo sucesso incita a rivalidade, o individualismo e os comportamentos antiéticos e desleais. A dependência do outro se torna sinônimo de vergonha, alimentando a corrosão do caráter e afrouxando os “laços de confiança e compromisso” (Sennett, 2009, p. 33).

Além de manipular os afetos, a manipulação dos mecanismos psíquicos também influencia o comportamento, apresenta-se como forma apropriada de se exercer poder. No contexto policial, o controle pode ser alcançado pela saturação e pela dissuasão. Pela saturação, ele conduz as manifestações e condutas dos policiais, que não conseguem encontrar palavras para julgar ou expressar seus pensamentos. O discurso doutrinado, repetido infinitamente, tem mais do que a intenção de condicionar, mas de inscrever comportamentos. Saturados em seus espíritos, os policiais tornam-se apáticos, prontos a fazer simplesmente o que lhe é pedido. Já pela dissuasão, torna-se possível incutir no inconsciente do trabalhador condutas que permitam o alcance dos objetivos organizacionais sem a necessidade do uso de força física ou imposição. Essa é uma ameaça velada, capaz de desenvolver comportamentos motivados pelo medo, pela apreensão e pela insegurança (Enriquez, 1991). Esses mecanismos agem sobre os indivíduos e grupos para provocar neles atitudes e comportamento, que convém à organização.

Apoiados na burocracia, esses valores controlam, simbólica e materialmente, os policiais por meio de manuais, regimentos, regulamentos, uniformes e códigos de ética e de postura. Eles concretizam uma variedade de práticas e rituais utilizados pela hierarquia da organização. A normatização dos comportamentos militares prescreve e condiciona expressões linguísticas, normas de vestuário (Regulamento de Uniformes), saudações militares (Regulamento de Continência), condutas de socialização e comportamento do indivíduo militar (Regulamento Disciplinar do Exército), todas com um caráter educativo e punitivo (Seligmann- Silva, 2011).

Em linhas gerais, a ideologia gerencialista opera a partir da manipulação do psiquismo, criando vínculos que fantasiam a realização do ego, seja pelo poder simbólico que concede, pelo sentido atribuído aos salários, pelas possibilidades de carreira ou seja por outras estratégias de persuasão (Gaulejac, 2007; Pagès et al., 2006; Siqueira, 2009). Para obter o vínculo afetivo e alcançar condutas performáticas, as organizações se envolvem em: a) criar um imaginário enganoso de realização, por meio de amor e devoção; b) silenciar a vida interior do sujeito,

impedindo-o de enxergar o seu próprio eu; c) psicologizar os problemas, suscitando o sentimento de culpa e vergonha pelo não alcance dos resultados esperados pela instituição e pela sociedade; e d) embutir um senso de herói criativo, levando-o a correr riscos que comprometer sua vida (Enriquez, 1995).

Se não atende às demandas da instituição, o trabalhador perde o reconhecimento, fere sua base narcísica e instaura os distúrbios somáticos e psicossomáticos, como as perturbações psíquicas, digestivas, dermatológicas, cardiovasculares e comportamentais (Gaulejac, 2007). É a partir dos laços sociais rompidos, imersos no isolamento e focados na promessa de que “tudo pode”, incutida pela organização, que se vê aumentar o adoecimento dos indivíduos pela via do trabalho.

Muito além da força física e da virilidade, a ideologia gerencialista explora as potencialidades psíquicas dos sujeitos, provocando o adoecimento e fomentando um contínuo processo de introjeção de sofrimento, abandono e individualização, mascarados pelo ideal de herói, de sucesso e de realização. Esses mecanismos são apontados como responsáveis pelo caos social e pelo grande mal-estar no mundo do trabalho (Enriquez, 1995; Faria & Meneghetti, 2011; Gaulejac, 2007; Pagès et al., 2006)

Ponderadas as relações entre o trabalho e os mecanismos de dominação adotados pelas organizações, a próxima seção se dedica à discussão sobre os efeitos adoecedores dessa relação, tratando, especificamente, a saúde mental no trabalho e, na sequência, os fatores de adoecimento provenientes do contexto do trabalho policial.