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2.6 Atravessamentos do trabalho militar: o controle pela burocracia e pela ideologia

2.6.1 Burocracia: poder e controle via técnica e racionalização

Olhar a burocracia sob uma perspectiva crítica implica ultrapassar a tradição convencional dada ao conceito, e “transcender o hábito de caracterizá-la a partir do tipo ideal weberiano” (Paula, 2002), e levar em consideração o modo como ela se estrutura e se sedimenta na sociedade. Não se nega a ambiguidade das suas funções, seja como conjunto de técnicas de organização, que permite uma coordenação planejada, seja como parte das relações capitalistas de produção, em que funciona como um meio de exploração e controle coercitivo (Adler, 2003). Como afirmam Goldman e Van Houten (1980), análises críticas apresentam um modo mais apropriado para examinar as tendências nas relações de trabalho e as incertezas organizacionais. Isso implica afastar-se da concepção abstrata e funcional da burocracia, frequentemente encontrada nos Estudos Organizacionais, e percebê-la como “um sistema de condutas significativas e não só um sistema de organização formal” (Tragtenbert, 2006, p. 188), mesmo porque a questão da burocracia não consiste na promoção de eficiência puramente técnica (Adler, 2003; Edwards, 1979; Goldman & Van Houten, 1980).

Faz-se necessário retratá-la de forma mais profunda, refletindo os aspectos da sua materialidade (Faria & Meneghetti, 2011; Adler, 2003); das relações sociais que nela se reproduzem (Motta,1979a; Zimbalist, 1975); e do seu poder funcional, político e histórico de dominação (Tragtenberg, 2006), como fenômeno historicamente situado (Paula, 2002). Importante perceber a burocracia enquanto tipo de dominação, que dissimula uma relação de servidão (Ramos, 2006).

Ao descrever que as teorias administrativas devem olhar para a burocracia enquanto mecanismo de poder, para atingi-la enquanto estrutura, Tragtenberg (2006-1971) revela a ambiguidade ideológica e operacional que a encobre, o que Adler e Borys (1996) descrevem como “uma máscara cerimonial”, que oculta sua face ora coercitiva, ora capacitadora. A análise de Tragtenberg (2006) avança quanto à enumeração dos critérios constituintes da burocracia e a estuda em função da sua dinâmica interna, maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e aumenta seu poder (Tragtenberg, 2006).

Historicamente, a burocracia nasce com o surgimento do Estado, onde encontra sua forma mais acabada. Tal fato implica dizer que seu conceito opera entre o interesse particular e o geral, envolvendo não apenas uma questão de eficácia, mas, sobretudo, uma relação essencialmente política, de poder e liberdade. Ao se legitimar como representante legal da burocracia, o Estado funda seu poder sobre o controle de todos, controlando todos os aspectos

da vida, “os detalhes do comportamento social, econômico, político, sexual e afetivo” (Weffort, 2006).

Enquanto mecanismo de dominação e poder, a organização burocrática vigora desde o modo de produção asiático. Ela vai avançando no seio das organizações, criando formas flexíveis de adaptação (Motta, 2001; Paula 2002; Sennet, 2009; Zimbalist, 1975) e harmonias administrativas, que dissimulam seu real significado. Como forma organizacional e de classe social, “a burocracia protege uma generalidade de interesses particulares” (Tragtenberg, 2006, p. 28), o que a leva a encontrar conflitos, tanto na sua operacionalização e funcionamento quanto na sua relação com os grupos e classes sociais. De acordo com Motta (1979a), a burocracia, desde sua função patrimonial, cultiva o sigilo “na ocultação das suas intenções” (p. 64).

Ao definirem a burocracia como estrutura de dominação, Faria e Meneghetti (2011), Goldman e Van Houten (1979), Motta (1981) e Tragtenberg (2006) apresentam que ela se consolida como forma organizada de controle social do Estado. Dessa forma, Motta (1981) a descreve como “uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas fica a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos racionais” (p. 7).

Segundo Motta (1981, p. 7), a sociedade é um conjunto de organizações burocráticas, submetidas à grande organização que é o Estado. Essa sociedade apresenta características que garantem o comportamento disciplinado e padronizado dos seus membros, quais sejam: a) a confiança e o conformismo, baseados na garantia do emprego e do trabalho assalariado para boa parte das pessoas; b) a manipulação das necessidades individuais, que aumentam em função do poder de compra e do consumismo; c) a perda da significação intrínseca do trabalho; d) a impessoalidade propagada nas grandes organizações, que acabam promovendo o isolamento das pessoas; e) a vida em comunidade perde o seu sentido; e f) o comportamento passa a ser caracterizado como uma irresponsabilidade social.

A burocracia também pode ser identificada como um processo de alienação. De acordo com Faria e Meneguetti (2011, p. 438),

a alienação se confirma na medida em que o indivíduo interioriza o modo burocrático de pensar. A relação entre burocracia e alienação é, então, ressaltada. A inculcação ideológica, a submissão, os comportamentos padrão e o disciplinamento não são decorrentes apenas da forma objetiva como a burocracia se institui na organização. A burocracia investe também no controle intersubjetivo, e esse movimento é essencial para que o controle possa ser efetivo.

A efetividade da burocracia é alcançada pela peculiaridade das suas características, que, embora atravessada por disfunções, permitem sua concretização como aparelho de dominação e controle, partindo de comportamentos metódicos, prudentes e disciplinados (Motta & Pereira, 2004). A disciplina assume natureza relevante na sustentação dos propósitos e da eficácia da burocracia e, para alcançá-los, ela depende da inculcação de atitudes e sentimentos apropriados a seu funcionamento. Sua sustentação está na obediência e dedicação dos indivíduos aos padrões e deveres estabelecidos (Motta, 1979a). Faria e Meneghetti (2011) compartilham dessa ideia ao apresentarem que “organizações burocráticas servem de unidades de dominação, sendo, igualmente, responsáveis pela inculcação ideológica, pela adoção da submissão, pelos comportamentos controlados e socialmente aceitos, todos entendidos como naturais. Assim, a organização burocrática configura-se numa estrutura de controle e poder” (p. 434), que reduz a singularidade do ser humano (Ramos, 2006-1946).

Motta (1979a) discorre que o caráter dominador da burocracia se relaciona à ação comunitária de Weber, em que “uma comunidade social, aparentemente amorfa, chega a se transformar em uma sociedade dotada de racionalidade” (Weber, citado por Motta, 1979a, p. 22). A manifestação dessa dominação pode ser percebida na relação de mando e subordinação emergente. Esse tipo de dominação, que embora seja uma forma de poder, diferencia-se dele, pois o dominado parece adotar como sua a vontade manifesta do dominante. Diferente da dominação, o poder preza a realização da própria vontade, mesmo que contra a dos demais agentes da ação comunitária.

No contexto das distinções da burocracia como aparelho de dominação e controle, Faria e Meneghetti (2011) apresentam que a dominação vai se caracterizar como um caso especial de poder, considerando que:

Uma relação hierárquica se estabelece, definindo postos e níveis de autoridades, além de um sistema de mando e subordinação com gerência das atividades e tarefas delegadas por autoridade. Nesse contexto, a administração é formalizada por meio de documentos, que acabam por regular a conduta e as atividades das pessoas. O treinamento é fundamental nas burocracias especializadas devido às especificações das atividades e dos trabalhos. O treinamento especializado volta-se para generalizar o cargo e transformá-lo em profissão. (Faria & Meneguetti, 2011, p. 427).

Em síntese, a burocracia não se esgota enquanto fenômeno meramente técnico; mas é, acima de tudo, um fenômeno de dominação. Em consonância com Motta (1979a), desde os estudos mais remotos, verifica-se que ela consiste em “uma construção conceitual a partir de certos elementos empíricos que se agrupam, logicamente, em uma forma precisa e consistente, mas que, em sua pureza, nunca se encontram na realidade” (p. 22).

No contexto da organização militar, modelo típico de burocracia, a hierarquia assume papel significativo, estabelecendo uma relação de vigilância e disciplina, o que, juntamente com o salário, auxilia a garantir a submissão (Faria & Meneghetti, 2011). Para Goldman e Van Houten (1979), além da hierarquia, a divisão do trabalho, de definição das regras e procedimentos, o uso de sigilo e acumulação de conhecimento e a manutenção de divisões étnicas e sexuais na força de trabalho, também, funcionam com estratégias que, ancoradas na burocracia, são utilizadas para controlar a força de trabalho.

Amparadas no formalismo, na impessoalidade e no profissionalismo, as organizações militares encontram na burocracia uma forma de administração heterônoma, que nega a autonomia individual ou social, e assume autoridade de caráter monocrático, ou seja, obedece ao princípio da unidade de comando. Sua formalidade se expressa em um sistema exaustivo de normas, regras e jurisdições, que definem precisamente as relações de autoridade e subordinação, com atividades distribuídas de forma sistemática em função de alcançar seus objetivos. A administração é planejada e organizada formalmente, e a execução das atividades atingida através de documentos escritos (Motta & Pereira, 2004).