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As discussões em volta da construção da Sociologia Clínica têm início na década de 80, por iniciativa de Robert Sévigny, Gilles Houle, Eugène Enriquez e Vincent de Gaulejac. Em 1988, em Genebra, esse grupo de pesquisadores dá início a um grupo de trabalho dentro da Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa (AISLF), o que logo evolui para um grupo de trabalho sobre essa abordagem na Associação Internacional de Sociologia (ISA), sendo reconhecido, em 1992, como comitê permanente de pesquisa nessas duas associações. O primeiro colóquio específico da área foi realizado em 1992, na Universidade Paris VII, sob a coordenação do Laboratório de Mudança Social, e reuniu mais de 150 pesquisadores de cerca de 15 países. É na década de 1990 que a Sociologia Clínica se consagra como uma nova orientação nos campos das ciências sociais (Gaulejac & Roy, 1993; Gaulejac & Roche, 2007; Lévy, 2001; Nunes & Silva, 2018).

A jornada teórica da Sociologia Clínica começa nas fontes da sociologia francesa, influenciada pelos estudos de Émile Durkheim, Marcel Mauss e Georges Gurvitch. Ela acompanha, ainda, os opositores da Faculdade de Sociologia da França, do Freudo-Marxismo e da Escola de Frankfurt; os estudos de Wilhen Reich e Georges Devereux, especialmente no que tange às questões teóricas e clínicas; e as proposições dos precursores da Psicossociologia, Psicologia Social e Socioanálise, que se apoiaram na multireferencialidade, resistiram à oposição entre Sociologia e Psicologia e, acima de tudo, introduziram a abordagem clínica dos campos médicos e terapêuticos nas intervenções sociais (Gaulejac & Roche, 2007).

Para explicar a interação entre o social e o psíquico, premissa básica da Sociologia Clínica, Enriquez (1997b) evidencia a necessidade de unir aspectos inesperados que, aparentemente incompatíveis, “assumem os efeitos de uma mesma lei, as consequências de um mesmo princípio, as respostas a um mesmo desafio” (p. 15).

As interações dessas discussões mostram o quanto “a questão da psique sempre esteve no centro da reflexão sociológica”, bem como ilumina “áreas sombrias das paixões sociais e coletivas, a questão do poder, sentimentos sociais, fenômenos irracionais, relações entre a cena inconsciente e a cena social” (Gaulejac & Roche, 2007, p. 20). Pagès et al. (2006) aprofunda essa relação, a partir dos estudos realizados em uma grande empresa multinacional na década de 1970, afirmando que o inconsciente não pode ser localizado em um ou outro lugar, ele opera e é operado diretamente em todas as relações e práticas sociais, “tanto na família como na

escola, no exército, na Igreja, na empresa, no Estado [...]. É uma instância permanente do sistema social, indispensável à sua análise” (Pagès et al., 2006, p. 230).

Nunes e Silva (2018) e Yzaguirre e Mendoza (2013) descrevem que a Sociologia Clínica se desenvolve a partir do desenvolvimento da Psicossociologia, dadas as convergências ontológicas e epistemológicas que as orientam. O desenvolvimento da Sociologia Clínica se dá a partir do envolvimento de sociólogos com psicólogos sociais franceses e estadunidenses que, em oposição à Psicologia social hegemônica, de base positivista e experimental, desenvolvem a Psicossociologia. Nos Estados Unidos, em oposição à perspectiva experimental da Psicologia Social, a Psicossociologia encontra, no método clínico de orientação não-diretiva, de Carl Rogers, no psicodrama, método terapêutico de J. L. Moreno e na dinâmica de grupo e pesquisa- ação de Kurt Lewin, apoio para o seu desenvolvimento. Na França, é Max Pagès que articula outros pesquisadores do campo da Psicossociologia, que atuam nas organizações tratando de conflitos e desordens psicossociais do ambiente de trabalho, dentre eles Eugène Enriquez, André Lévy, Jean Claude Rouchy, Guy Palmade, Gilles Amado e Jacqueline Barus-Michel.

A Sociologia Clínica não se opõe à Psicossociologia, elas compartilham um projeto de investigação comum, que é a inserção da noção de sujeito do inconsciente para articular aspectos individuais, grupais e societais da relação do homem em sociedade, inaugurando a perspectiva psíquica no campo da Sociologia (Gebrin & Andreotti, 2016; Nunes & Silva, 2018). Bendassolli e Soboll (2011) reforçam a comunhão dessas abordagens, pontuando a preocupação em “investigar as reciprocidades entre o individual e o coletivo, o psíquico e o social” (p. 61) e contribuindo para a compreensão dos “processos grupais, dentro e fora das instituições, oferecendo importantes dispositivos de análise da mudança social” (p. 62),

As similaridades dos campos da Sociologia Clínica e da Psicossociologia levam pesquisadores de ambas as áreas a comungarem eventos, laboratórios e programas de formação, como é o caso do Laboratoire de Changement Social e dos programas de mestrado e de doutorado da Universidade de Paris VII, grande centro de formação de sociólogos clínicos e de psicossociólogos (Nunes & Silva, 2018; Gebrin & Andreotti, 2016).

Para explicar a abordagem clínica na Sociologia, Gaulejac (2008) faz um paralelo entre as perspectivas de Sigmund Freud e Pierre Bourdieu, apontando que ambos articulam uma teoria do homem na sociedade apoiada por uma prática de mudança social. Enquanto Freud busca explicar o comportamento humano à luz do registro intrapsíquico, Bourdieu o faz pelo lado da internalização das estruturas sociais. Embora incorporem e defendam postulados que pareçam distantes, as premissas desses autores se convergem em muitos pontos. Essas convergências favorecem o desenvolvimento da Sociologia Clínica, que torna possível recorrer

às duas abordagens para definir os contornos de uma metodologia inspirada tanto na psicanálise quanto na socioanálise. Na junção dessas abordagens, Enriquez (1997b) afirma a inexistência do indivíduo fora do campo social, uma vez que o ser humano está sempre “divido entre a expressão dos seus próprios desejos (reconhecimento do seu desejo) e a necessidade de se identificar com o outro (desejo de reconhecimento). Só o outro pode reconhecê-lo como portador de desejos e garantir-lhe lugar na dinâmica social” (p. 17).

Gaulejac (2008) descreve que:

É necessário sair da oposição simplista segundo a qual a psicanálise detém as chaves para compreender as profundezas do ser do homem, enquanto a sociologia detém aquelas que abrem o conhecimento do ser da sociedade. Tal divisão de tarefas é talvez conveniente, mas certamente parcial e até truncada, quando nega a presença da sociedade no ser humano e a presença do homem no ser social. (Gaulejac, 2008, p. 11).

De acordo com Pagès et al. (2006, p. 26), a desalienação científica passa pela superação das divisões que a própria ciência cria, seja “entre a ciência fundamental e a aplicada, entre as “exatas” e as humanas, entre a Sociologia e a Psicologia ou entre o Marxismo e a Psicanálise. É a partir dessa superação que se pode apreender um sistema global que escapa às análises parceladas”.

Nessa mesma linha de pensamento, Lhuilier (2010) adverte quanto à necessidade de ir além da simplificação da abordagem clínica como mera oposição à abordagem instrumental positivista. Ou do fato de sair da análise geral para o particular. Ou mesmo de ser qualitativa (baseada na expressão simbólica) e não quantitativa (baseada na medição). Explicações dessa natureza deixam em aberto a questão do regime de produção do conhecimento e a relação dialética entre conhecimento e ação. Isso se justifica porque a “produção do conhecimento é o resultado de uma atividade reflexiva em ação e, inversamente, esta última é uma fonte de validação do conhecimento” (Lhuilier, 2010, p. 227).

A Sociologia Clínica está fundamentada em uma epistemologia de pesquisa do sentido, que leva em conta a dinâmica social da intersubjetividade, buscando compreender a realidade a partir da “articulação entre a estrutura e o ator, o indivíduo e a sociedade, sujeito social e sujeito existencial” (Nunes & Silva, 2018, p. 197). Os autores aludem que o uso da psicanálise na Sociologia Clínica ajuda a pensar o sentido existencial do indivíduo, e o termo “clínica” apropria-se do seu sentido mais original, referindo-se ao ato de aproximar-se do objeto que fala, o que implica “compreender as transformações sociais incluindo a análise das formas regressivas e/ou emancipatórias de nossas sociedades atuais” (Nunes & Silva, 2018, p. 197).

Como afirmam Gebrin e Andreotti (2016), a inscrição epistemológica da Sociologia Clínica consagra um lugar privilegiado à subjetividade na compreensão da realidade social, a partir da introdução da perspectiva clínica no campo da Sociologia e nas ciências humanas.

A nomeação “clínica” dada à Sociologia faz analogia ao campo da medicina, permitindo interpretá-la como uma intenção de ir até o paciente e tratá-lo de perto, uma ideia de proximidade e envolvimento entre pesquisador e atores (Lévy, 2001). O conceito de clínica faz referência àquele que, “dentro das estruturas e relações sociais, se caracteriza por sua capacidade de ser sujeito e ator social. Talvez seja aí que a imagem da clínica tenha toda a sua força, a de colocar em primeiro plano a importância do sujeito existencial no cerne da Sociologia, tanto em nível teórico quanto prático” (Rhéaume, 2009, p. 196). Como um clínico, o sociólogo vai buscar “responder à demanda social analisando as organizações, de dentro, e ajudando os indivíduos a entender melhor as fontes de suas ações” (Moreau, 2014, p. 65).

Para Hanique (2009), o sentido de clínica faz alusão ao momento em que o médico deixa de lado o interesse pela doença e se importa com o paciente, com o que ele tem a dizer sobre sua doença. Essa proposta de trabalho rompe com o método experimental e com a posição do cientista especialista, que confia nas leis para produzir um discurso da verdade. De acordo com Lévy (2001), a clínica envolve uma abordagem individual ou coletiva de sujeitos ou uma organização, às voltas com um sofrimento, em que a escuta “supõe sujeitos vivos, desejantes e pensantes, falando igualmente, tanto para nada dizer quanto para se fazer reconhecer, ou para encontrar um sentido para suas emoções, para suas lembranças ou para sua história, que eles constroem a cada instante” (p. 20). A abordagem clínica percebe o sujeito na sua singularidade, supondo uma démarche do pesquisador, que pouco conhece o espaço do sujeito ou da organização, “esforçando-se para escutar aqueles que tenta compreender, especialmente em seus esforços para dar sentido a suas condutas e aos acontecimentos que tecem sua história” (Lévy, 2001, p. 20).

Como se observa, as raízes da Sociologia Clínica se vinculam a diferentes escolas e áreas das Ciências Sociais e Humanas, especialmente Sociologia Geral, Psicanálise, Psicologia, Psicossociologia, dinâmicas de grupo e Antropologia. Ela lida com a prática ou ação, seja estudando um processo de intervenção ou as dimensões relacionadas à ação ou prática. A Sociologia Clínica está interessada em “compreender a relação indivíduo-empresa, o poder, o controle, o desejo e a autonomia necessária para o indivíduo se fazer sujeito. Faz-se, portanto, a partir da prática social, dos fatos vivenciados nas organizações e no mundo do trabalho” (Linhares & Siqueira, 2014, p. 108). Sua ação busca compreender a dialética entre a história e a historicidade, “entre o indivíduo que é a história e o indivíduo que faz a história, entre os

fatores sociopsíquicos que fundam a sujeição e aqueles que servem de suporte ao indivíduo para que ele advenha como sujeito” (Gaulejac, 2004/2005, p. 73).

Enriquez (1997b) detalha que a ligação entre a realidade psíquica e a realidade histórica, o jogo das pulsões antagonistas e intrincadas, o papel do homem no edifício social, a civilização e a organização como renúncia à satisfação das pulsões e o papel essencial da ilusão na edificação dos vínculos sociais, que são todos elementos que envolvem, ao mesmo tempo, o indivíduo como sujeito e a sua prática social, evidenciando a impossibilidade de dissociação entre o psíquico e o social.

Dada a complexidade da compreensão dos fenômenos sociais, nada objetivos, que resistem a muitas das explicações científicas positivistas, em função da própria estrutura subjetiva de análise, a posição clínica esmera minimizar esses limites e dificuldades. Ancorada no imaginário, na intuição, no trabalho inconsciente, na atividade de elaboração de sentido e nos elementos da subjetividade do indivíduo, a Sociologia Clínica busca compreender a realidade tanto na sua globalidade quanto na sua singularidade (Enriquez, 1997b; Gaulejac, 2004/2005; Gaulejac & Roche, 2007).

Segundo Hanique (2007), a singularidade da Sociologia Clínica pode ser explicada pela sua diferenciação em relação às demais correntes da Sociologia, uma vez que busca compreender o real a partir da articulação entre processos psíquicos e determinantes sociais, afastando-se de uma corrente disciplinar exclusiva e contrariando as regras tradicionais acadêmicas. Pode ser explicada, também, pela relevância atribuída à delicada questão da subjetividade, tanto a do ator como a do pesquisador, colocando-a no centro das reflexões. E, ainda, pelo constante questionamento das condições de produção do conhecimento, o que parece colocá-la “fora de lugar na tessitura usual da voz da ciência” (Hanique, 2009, p. 91).

Considerando as proposições de Gaulejac e Roche (2007), a singularidade da Sociologia Clínica pode ser explicada pelo fato de que ela se afasta dos métodos convencionais para compreender a dimensão existencial das relações sociais, levando cada indivíduo de volta a si mesmo para produzir o significado de sua existência.

A Sociologia Clínica apresenta proposta de retrabalhar as fronteiras entre a psicanálise e a Sociologia, em vista da construção de uma sociologia do sujeito, analisando os processos sociopsíquicos que definem “a existência do indivíduo, sua dinâmica subjetiva, sua inscrição social, suas maneiras de ser no mundo e sua identidade. O social e o psíquico obedecem a leis próprias, se apoiam e se enlaçam em combinatórias múltiplas e complexas” (Gaulejac, 2004/2005, p. 68). Tal fato justifica essa necessidade de romper as convencionais fronteiras, pois:

Se o indivíduo é produto de uma história, essa história condensa, de um lado, o conjunto de fatores sociais históricos que intervêm no processo de socialização e, de outro, todos os fatores intrapsíquicos que determinam sua personalidade. É então necessário analisar os processos sócio psíquicos que fundamentam a existência do indivíduo, sua dinâmica subjetiva, sua inscrição social, seus modos de estar no mundo, sua identidade. Longe de estar em oposição, o social e o psíquico, mesmo que obedeçam às leis propriamente ditas, expandem-se e tornam-se entrelaçados em múltiplas e complexas combinatórias. (Gaulejac, 2009, p. s/n).

No contexto dos Estudos Organizacionais, aparadas as arestas entre a Sociologia e Psicologia, a Sociologia Clínica leva ao seu campo a concepção da organização como um sistema simultaneamente cultural, simbólico e imaginário, como identificado por Enriquez (1997b). Perceber a interação desse conjunto de sistemas, para além da sua capacidade de materializar resultados para organização, é ter a oportunidade de tocar o que, embora discursivamente dito, como “capital da organização”, é desprezado em sua individualidade, simplificado em recurso e ignorado em subjetividade.

Como sistema cultural, a organização é constituída por um conjunto de normas, valores, crenças e práticas sociais dominantes, que orientam a conduta dos seus integrantes. As representações e práticas sociais são contextualizadas, internalizadas e largamente aceitas, fomentando a criação de uma “armadura estrutural”, assumindo a forma de cultura. É ela que influencia as atitudes e os comportamentos dos membros, a partir da criação de expectativas de realização, estabilização de condutas e hábitos de pensamento e ação. A organização torna-se modelo de formação e socialização, excluindo membros desalinhados dos seus ideais e selecionando apenas aqueles que a ela se adequam (Enriquez, 1997a).

Enquanto sistema simbólico, a organização cria ritos, mitos e heróis, que formarão sua memória coletiva, com o objetivo de consolidar a ação dos seus membros. Esse sistema simbólico exerce sobre os atores um controle social real, tanto no nível afetivo quanto intelectual. Embora um sistema simbólico nunca seja totalmente fechado, as organizações “procuram, consciente ou inconscientemente, arquitetá-lo. E isso acontece na medida em que têm receios quanto à sua solidez” (Enriquez, 1997b, p. 34).

Já o sistema imaginário dá sustentação para que os sistemas cultural e simbólico se estabeleçam. Ele pode se desenvolver como imaginário motor – na medida em que a organização permite a criatividade e que os indivíduos não se sintam reprimidos com as regras organizacionais – ou imaginário enganador – na medida em que a organização tenta prender os indivíduos nas armadilhas de seus próprios desejos narcísicos, substituindo o imaginário do

indivíduo pelo dela, seduzindo-o pela ilusão da superpoderosa e ocupando a totalidade psíquica do sujeito (Enriquez, 1997b).

Tendo em vista as observações da Sociologia Clínica como recurso para o estudo da interação entre os determinantes sociais e os determinantes psíquicos do indivíduo, suas postulações parecem atender com destreza aos objetivos do estudo aqui proposto. Pois, ela enxerga as organizações como resultados de fenômenos sociais, que integram os elementos psíquicos do sujeito e suas relações com o outro (Enriquez, 1997b; Hanique, 2009; Lhuilier, 2013), permitindo ressignificar as racionalidades impostas pelo mundo do trabalho e as ideologias institucionais. Além disso, a Sociologia Clínica abre a possibilidade de o pesquisador trabalhar e realizar sua análise numa perspectiva pluridisciplinar, através de diferentes ângulos de compreensão (Gebrin & Andreotti, 2016).

Ponderados os aspectos que norteiam a Teoria Crítica e a Sociologia Clínica, verifica- se a adesão necessária entre a concepção ideológica e epistemológica das teorias e os objetivos propostos para o estudo do adoecimento psicológico e o retorno ao trabalho depois de transtorno mental de policiais militares do Distrito Federal. Como afirmam Sevigny e Sheying (2014), a Sociologia Clínica apresenta-se adequada para estudar aspectos como a experiência pessoal com o transtorno mental e a reabilitação social. Embora existam fatores comuns em todos os processos de reabilitação, alguns deles são mais específicos, como aqueles relacionados às características do transtorno ou à representação da doença no ambiente social do paciente.

Apresentados os aspectos ontológicos e epistemológicos, bem como os pressupostos que norteiam o olhar crítico e socioclínico das organizações, a próxima seção levanta ponderações relativas ao mal-estar no trabalho na sociedade hipermoderna, fonte de sofrimento e comprometimento da saúde mental dos trabalhadores.