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A alma ambígua: a essência indivisível e a parte divisível da

5. A POSIÇÃO INTERMEDIÁRIA DA ALMA

5.1. A alma ambígua: a essência indivisível e a parte divisível da

No tratado IV 2 [4] Sobre a essência da alma, livro I (ΠΕΡΙ ΟΤ΢ΙΑ΢ ΧΤΦΗ΢ ΠΡΨΣΟΝ) após distinguir a natureza da alma e do inteligível da natureza sensível no tratado IV 7 [2], cronologicamente anterior, Plotino procura precisar melhor a natureza

da alma a partir de sua posição intermediária entre o inteligível e o sensível. Para tanto,

parte de um novo método (cf. IV 2 [4] 1,1-10). O tratado IV 7 [2] é inspirado,

sobretudo, no dualismo ontológico presente no Fédon e no Fedro de Platão; já o tratado

IV 2 [4] é inspirado fundamentalmente na exegese que Plotino faz de Timeu 35 a, que

apresenta a alma com uma essência dupla: como uma essência indivisível e uma

essência que se divide nos corpos171.

Segundo essa primeira abordagem da exegese plotiniana desse trecho do Timeu,

a natureza sensível é primariamente divisível (πρώτως εἶναι μεριστὰ), ou o divisível primário; isto significa, segundo Plotino, que no sensível existem partes desiguais entre

si e desiguais em relação ao conjunto. Além disso, a natureza sensível ocupa um lugar

próprio no espaço, não podendo estar em vários lugares ao mesmo tempo; e possui

magnitude, o que resulta que suas partes devem ser não apenas desiguais entre si, mas

menores que o todo e que o conjunto (cf. IV 2 [4] 1, 12-17). Em contrapartida, há

necessariamente uma natureza contraposta, conforme Plotino buscou demonstrar no

tratado IV 7 [2]. Trata-se de uma substância que não admite divisão nem sequer pelo

pensamento, é indivisa e indivisível (ἀμέριστος); não ocupa lugar e, portanto, não

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possui partes desiguais e isoladas do conjunto: ―É uma substância que se mantém sempre invariável como um centro comum a todas as partes consecutivas que o

rodeiam...‖ (cf. IV 2 [4] 1, 18-25)172. Trata-se do que, inspirado em Platão, Plotino chama de inteligível (νοητ῵ς).

No entanto, entre o primariamente indivisível (o inteligível) e o primariamente

divisível (o sensível), segundo Plotino, existe do lado do sensível outra natureza

imanente aos corpos sem ser primariamente divisível, ainda que se faça divisível nos

corpos. Podemos chamá-la de a natureza secundariamente divisível. Trata-se da forma

imanente dos corpos e de todas as qualidades somáticas, como as cores e a doçura, que,

a despeito de não existirem sem os corpos, existem inteiras simultaneamente em muitos

corpos distintos e em cada ponto dos corpos que se fazem presentes, sem ser, contudo, o

mesmo ―ente‖ em todas as partes; uma vez que a cor ou a doçura de dois corpos distintos, ainda que sejam idênticas, não são numericamente as mesmas173:

Tais são as cores e as qualidades todas, isto é, toda forma que seja capaz de estar inteira simultaneamente em muitos pontos distantes sem ter parte alguma que experimente a mesma afecção que outra pelo fato de que outra a experimente. E precisamente por isso é preciso definir também dita forma como totalmente divisível (IV 2 [4], 1, 38-42)174.

No entanto, próxima à natureza indivisível existe também outra substância

―procedente daquela e que recebe dela a indivisibilidade‖ (cf. IV 2 [4], 1, 42-44)175

.

Podemos chamá-la de a natureza secundariamente indivisível. Trata-se de uma natureza

intermediária, que está no meio de ambas: ―da indivisível e primária e da que,

172 ... ἀεὶ κατὰ τὰ αὐτὰ ἔχουσα οὐσία, κοινὸν ἁπάντων τ῵ν ἐφεξῆς οἶον κέντρον ἐν κύκλῳ... 173 Cf. também IV 2 [4], 1, 47-53. 174 οἶα χροιαὶ καὶ ποιότητες π᾵σαι καὶ ἑκάστη μορφή, ἥτις δύναται ὅλη ἐν πολλοῖς ἅμα εἶναι διεστηκόσιν οὐδὲν μέρος ἔχουσα πάσχον τὸ αὐτὸ τῶ ἄλλο πάσχειν· διὸ δὴ μεριστὸν πάντη καὶ τοῦτο θετέον. 175 ἔχουσα μὲν τὸ ἀμέριστον ἀπ᾿ ἐκείνης, προόδῳ...

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superposta aos corpos, é divisível nos corpos176‖ (cf. IV 2 [4], 1, 44-46). Essa natureza, que é a alma, apesar de divisível nos corpos é indivisível em si mesma, uma vez que não

deixa de ser una estando presente no corpo inteiro (cf. IV 2 [4], 1, 4, 53-59). Com

efeito, a natureza divisível e indivisível da alma não é una como o contínuo, tendo

partes distintas, mas ―... é divisível porque está em todas as partes do corpo em que está, mas é indivisível porque está inteira em todas elas e inteira em qualquer ponto daquele‖ (cf. IV 2 [4], 1, 63-67)177. A alma não só está inteira em todas as partes do corpo, como as qualidades somáticas, mas é una e a mesma em todas elas; diferentemente das

qualidades e da forma imanente que, apesar de estar presente na totalidade de um corpo,

não possui unidade178.

Nesse sentido, a alma está dividida e não dividida. Na verdade, em si mesma,

não está dividida, já que permanece inteira consigo. A sua divisão se dá em sua relação

com o corpo, uma vez que o corpo não pode recebê-la indivisamente. Ora, essa

constatação nos leva a concluir, segundo Plotino, que a divisão é uma afecção própria

dos corpos e não da alma (cf. IV 2 [4], 1, 72-77). Contudo, ainda que indivisível por

natureza, a alma é passível de divisão. E, nesse sentido, não é nem puramente

indivisível nem puramente divisível, mas ambas as coisas ao mesmo tempo. Caso

contrário, se a alma fosse totalmente una e indivisa não haveria nenhum conjunto e

nenhum composto passível de ser animado por ela: ―... mas que a alma, situando-se em

uma espécie de centro, haveria deixado sem animar toda a massa do animal respectivo‖

176

...τοῦ τε ἀμερίστου καὶ πρώτου καὶ τοῦ περὶ τὰ σώματα μεριστοῦ τοῦ ἐπὶ τοῖς σώμασιν. Isto é, da natureza que é secundariamente divisível: a forma imanente e as qualidades dos corpos.

177

ἀλλὰ μεριστὴ μέν, ὅτι ἐν π᾵σι μέρεσι τοῦ ἐν ᾧ ἔστιν, ἀμέριστος δέ, ὅτι ὥλη ἐν πάσι καὶ ἐν ὁτῳοῦν αὐτοῦ ὅλη.

178 Em outras palavras, a cor e a forma das folhas de uma árvore, ainda que sejam idênticas, não são as

mesmas numericamente, nem possuem unidade. Em contrapartida, a alma da árvore (como fonte de sua vitalidade, unidade e organização) não só está presente inteira em toda a extensão da árvore, mas é una e a mesma em cada ponto.

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(cf. IV 2 [4], 2, 35-39)179. Por essa razão, Plotino afirma a natureza ambígua e paradoxal da alma, ainda que isso resulte em certa perplexidade:

A conclusão é que a alma tem que ser assim: <una e múltipla>, <dividida e indivisível>180, e que não se deve ser incrédulo como se fosse impossível que uma mesma e só coisa esteja em muitas partes. Porque se não admitíssemos isto, deixaria de existir a natureza que dá coesão e que governa todas as coisas, a que, abarcando todas as coisas, as mantém juntas e as conduz com sabedoria (φρονήσεως), sendo múltipla, é verdade, visto que os seres são muitos, mas sendo una a fim de que o princípio de coesão seja uno, pois é a alma a que, graças a sua própria unidade múltipla, fornece vida a todas as partes, enquanto que, graças a sua unidade indivisível, as conduz sabiamente (cf. IV 2 [4], 2, 40-48)181.